Talvez a primeira coisa que nos vem à mente quando falamos sobre blockchain seja a bitcoin, mas a tecnologia vai muito além das criptomoedas. Aplicações baseadas nessa tecnologia estão começando a aparecer no âmbito da medicina veterinária, forçando profissionais a enfrentar mais esse desafio. Mas, para entender o que é blockchain, é preciso considerar a computação como um conjunto de processos que podem ser executados por um conjunto de máquinas localizadas em um data center ou por um conjunto de máquinas espalhadas pela internet.
A maioria dos sistemas de gestão de clínicas veterinárias, por exemplo, funciona online, oferecendo o que conhecemos como “aplicações hospedadas em nuvem”, ou seja, é necessário estar conectado com a internet para poder acessar as fichas dos pacientes, registrar um atendimento clínico ou extrair um relatório financeiro. Essas operações são realizadas usando um navegador como o Google Chrome, ou mesmo um software para acessar sites na internet. Nesse formato de computação, todos os dados ficam armazenados em um servidor instalado fisicamente em um data center. Os três principais fornecedores de computação em nuvem, Amazon AWS, Microsoft Azure e Google Cloud, têm centenas de data centers espalhados pelo mundo, cada um dos quais contêm milhares de computadores operando 24 horas por dia, sete dias por semana. É o que chamamos de computação centralizada. Usando um exemplo mais próximo da realidade do dia a dia do veterinário, o VetGo, sistema de gestão de clínicas veterinárias mantido pela NetVet, está hospedado no data center da Microsoft localizado em São Paulo.
Em contraponto a esse formato centralizado de computação, que concentra enorme poder de processamento nas mãos de poucas empresas, Satoshi Nakamoto 1 desenvolveu em 2009 a blockchain, uma tecnologia baseada em computação descentralizada. O termo “blockchain” vem do inglês e significa “cadeia de blocos”. De uma forma mais abstrata, a cadeia de blocos é um protocolo de confiança formado por um conjunto de informações interligadas, de modo que o bloco seguinte precisa estar ligado intrinsecamente ao bloco anterior para continuar a construção da cadeia. Nesse novo formato, o processamento não é realizado em um servidor, mas em vários computadores espalhados pela internet. Essa tecnologia se popularizou em razão da sua implementação em um sistema mundial de transações financeiras realizadas por meio da criptomoeda digital bitcoin, idealizada por Nakamoto. A cada transação financeira envolvendo uma fração da bitcoin, uma chave criptografada é gerada, tornando a transação segura. Esse código passa por uma série de servidores que o validam, tornando-o inviolável, imutável e resiliente, condição que viabiliza uma transação financeira segura, rápida e sem intermediários 2.
Em diversos países vêm surgindo iniciativas de utilização desse tipo de tecnologia na área da medicina humana, indicando um caminho totalmente novo para a tecnologia da informação também na medicina veterinária. As mais promissoras aplicações dessa tecnologia estão ligadas à gestão de dados sensíveis coletados na relação entre veterinário e paciente, como o prontuário clínico. Entretanto, diversas iniciativas nas áreas de capacitação profissional e identificação animal também mostram potencial para serem adotadas em larga escala muito em breve.
Prontuário clínico descentralizado
Pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Universidade de Ontário (Ontario Institute of Technology – OIT) publicaram em abril de 2019 uma revisão detalhada sobre pesquisas em andamento relacionadas ao uso da blockchain na área da saúde 3. Nessa revisão, os autores selecionaram 65 trabalhos, publicados entre 2016 e 2018 em 23 países, a maioria em periódicos da China (17) e dos Estados Unidos (15).
O estudo mostra que a blockchain tem sido muito usada na área da saúde, incluindo gerenciamento de registros médicos eletrônicos de medicamentos e da cadeia de fornecimento farmacêutico, pesquisa e educação biomédica, monitoramento remoto de pacientes, análise de dados de saúde e medicina legal, entre outros.
É importante salientar que essas aplicações baseadas na blockchain ainda estão em estágio inicial, e mesmo os protótipos já desenvolvidos são apenas para fins experimentais, com funcionalidades muito básicas.
Entre as vantagens que estariam relacionadas à adoção dessa tecnologia, os pesquisadores destacam a descentralização, a alta disponibilidade, a robustez e a segurança do sistema. Um aspecto polêmico abordado no estudo é a questão da privacidade dos dados. Na maioria dos trabalhos analisados, os autores caracterizam o ecossistema e o papel dos usuários (pacientes, médicos, laboratórios, universidades e empresas) em diferentes cenários, avaliam quem deveria estar no controle dos dados e definem as regras de acesso às informações armazenadas.
Os desafios apresentam particularidades regionais. A Regulamentação Geral de Proteção de Dados (General Data Protection Regulation – GDPR) da União Europeia, por exemplo, estipula que o usuário tem o direito de solicitar a exclusão completa e permanente de todos os dados, e isso não é possível em sistemas baseados na blockchain. Embora seja possível que o usuário assuma o controle dos dados por meio de senha pessoal e intransferível, as informações nunca serão excluídas, justamente por não estarem gravadas em um computador central, mas espalhadas em computadores conectados à internet.
Tudo indica que iniciativas como essas serão comuns na área de medicina veterinária em um futuro próximo, levando empresas desenvolvedoras de sistemas de gestão de clínicas e hospitais a uma mudança profunda na maneira de lidar com os dados do prontuário clínico. Na próxima edição continuaremos a análise.
Referências
1-Bitcoin: A peer-to-peer electronic cash system. https://bitcoin.org/bitcoin.pdf
2-Blockchain e a perspectiva tecnológica para a administração pública: uma revisão sistemática. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2020190171
3-Blockchain technology in healthcare: a systematic review. https://dx.doi.org/10.3390%2Fhealthcare7020056