![Na rotina do SUS, sabe-se que a maioria dos cães que mordem são conhecidos, muitas vezes da própria
casa ou de um vizinho ou parente. No entanto, esse
dado não consta na ficha do Sinan. Créditos: Fernando Gonsales](https://www.revistaclinicaveterinaria.com.br/wp-content/uploads/2025/02/Mordeduras.jpg)
Os cães foram os primeiros animais a serem domesticados pelo homem, e embora não haja consenso a respeito da data ou da localização, sabe-se que a interação do homem com os animais é antiga 1. Se por um lado essa interação tem demostrado efeitos benéficos para ambas as partes, por outro lado tem trazido problemas de grande importância para a saúde pública, como por exemplo, os agravos causados por mordeduras 2.
As mordeduras de cães vêm sendo relatadas desde a Antiguidade, quando já eram temidas em razão da transmissão de doenças como a raiva, primeira enfermidade registrada na história 3. O filósofo Hipócrates descreveu a sintomatologia da raiva em seu livro Ares, água e lugares destacando a influência do ambiente na ocorrência da doença 3. Na Idade Média, episódios de mordeduras eram frequentemente relatados nas cidades medievais, principalmente pela invasão de cães ou lobos raivosos nos povoados, causando surtos de raiva em toda a Europa 4. A partir do Renascimento, a base científica permitiu o encaminhamento de estudos sobre a raiva, e no século XIX, a elucidação do seu ciclo de transmissão foi conduzida por Pasteur 3,4.
Para permitir um melhor entendimento da importância que as mordeduras de animais têm para a saúde pública, descrevemos neste artigo a ocorrência de atendimentos antirrábicos em Curitiba, causados em sua maior parte por mordeduras de animais, e as ações de prevenção que envolvem a participação fundamental do veterinário clínico de pequenos animais.
Atualmente, os agravos associados às mordeduras de cães têm causado grandes preocupações em relação à saúde pública no mundo, principalmente devido ao risco potencial de transmissão da raiva, que tem letalidade de quase 100% 5. No Brasil, no período de 2011 a 2016, foram notificados 16 casos de raiva humana, sendo os cães responsáveis pela transmissão em 44% dos casos 6.
Além disso, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem arcado com custos elevados relacionados à conduta em casos de possível exposição ao vírus da raiva (soro e vacinas), ao tratamento da ferida consequente da mordedura e das infecções bacterianas secundárias, e ao comprometimento físico e psicológico associado ao episódio traumático, afetando assim o direcionamento de recursos que poderiam ser aplicados de forma mais eficiente na prevenção 7-9.
Compreender a epidemiologia dos acidentes por mordeduras tem sido imprescindível para estabelecer medidas efetivas de prevenção. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), em diversos municípios brasileiros o atendimento antirrábico, decorrente na sua maioria de mordeduras de cães, é o agravo de notificação mais frequente. Em Curitiba, foram registrados 54.337 atendimentos antirrábicos na população residente entre os anos de 2010 e 2015, com uma média de 10.867 atendimentos por ano, com seus respectivos impactos no setor da saúde. Sabe-se que, mesmo sendo o agravo de maior notificação, esse dado está subnotificado, pois muitos casos de acidentes por mordeduras não chegam aos serviços de saúde. Neste estudo, a espécie agressora predominante foi o cão, com 51.146 casos (94,13%), seguido do gato, com 2.809 (5,17%), e do morcego, com 177 casos notificados (0,33%).
Na rotina do SUS, sabe-se que a maioria dos cães que mordem são conhecidos, muitas vezes da própria casa ou de um vizinho ou parente, porém esse dado não consta da ficha do Sinan. Tal informação, se fosse registrada, poderia gerar uma economia de recursos, uma vez que os 10 dias de observação preconizados poderiam ser seguidos, e o uso do soro e da vacina poderia ser utilizado de forma mais apropriada em grande parte dos casos.
Observa-se nos mapas epidemiológicos de Curitiba a distribuição de residentes por bairros, renda média e atendimentos antirrábicos entre os anos de 2010 e 2015 (Figuras 1-3). Os bairros de menor renda (Figura 1) e os de maior concentração populacional (Figura 2) foram os de maior ocorrência do número de atendimentos antirrábicos (Figura 3). Nos bairros de menor condição socioeconômica, é comum ser maior o número de cães semi-domiciliados e comunitários, o que pode ter causado um maior número de mordeduras. A ocorrência de mordeduras de cães em carteiros em Curitiba foi correlacionada com a renda e a densidade populacional, sendo observada maior ocorrência de casos em bairros com maior densidade populacional, e, inversamente, menos mordeduras com o aumento da renda mediana mensal do chefe de família 10.
O médico-veterinário clínico de pequenos animais tem um papel fundamental no incentivo à vacinação antirrábica e na orientação das condições de observação do animal agressor. Embora ele não seja o responsável pelo tratamento de pessoas acometidas por mordeduras, deve ter conhecimento dos protocolos de atendimento médico, incluindo o antirrábico, para que possa prestar orientação aos proprietários nesses casos. Orientações básicas, como a lavagem imediata com água e sabão de ferimentos causados por mordeduras e a necessidade de buscar atendimento específico junto aos serviço de saúde10, são simples e podem ajudar a diminuir ainda mais o risco de ocorrência de problemas decorrentes das mordeduras 11.
As mordeduras chegam a representar 1% dos atendimentos de emergência nos hospitais 12. As crianças correm alto risco de serem atacadas por cães, sendo a faixa etária mais acometida a de 5 a 10 anos. Tais resultados podem estar relacionados à maior liberdade e movimentação das crianças de maior faixa etária, que utilizam como área de lazer e convívio os quintais das casas, as ruas e as praças 13. De forma geral, os tutores de cães não têm conhecimento do comportamento dos animais e das práticas de segurança relativas à interação entre os cães e os filhos 14.
Os episódios de mordeduras estão inseridos em um contexto em que a resposta do animal ocorre de forma agressiva perante uma situação particular 12, destacando-se alguns fatores desencadeadores, como o sentimento de posse ou de proteção em relação à residência, ao proprietário, aos filhotes ou ao alimento, dominância, alteração hormonal, reação de medo associada à presença de outras pessoas, cães ou ruídos de fogos de artifício e trovões, maus-tratos, postura de dor, dentre outras linguagens corporais que podem indicar uma situação de desequilíbrio do animal, além do livre acesso dos cães às vias públicas 2.
É importante lembrar que, em alguns casos, o comportamento agressivo, assim como qualquer outra forma de conduta animal, pode ser ensinado ou causado propositalmente, e que a agressividade resulta da interação de diversos fatores biológicos, psicológicos, sociais e ambientais, e em especial dos vínculos com as pessoas 14. Algumas raças têm sido apontadas como as que oferecem maior ou menor risco de morder pessoas (Figuras 4, 5 e 6), e a Lei Municipal de Curitiba para Cães Ferozes (Lei Municipal n. 9.394/1999) considera cães violentos – independentemente do porte e que somente podem ser conduzidos em parques, praças e vias públicas usando coleira, guia e focinheira, para garantir a segurança das pessoas – os integrantes das raças mastim-napolitano, bull terrier, american staffordshire, pastor-alemão, rottweiler, fila-brasileiro, doberman e pitbull.
Raça | Fatal %1 | AKC2 | p |
Pit-bull | 18,8 | 0,23 | 0,000 |
Rottweiler | 10,9 | 2,3 | 0,000 |
Pastor-alemão | 8,2 | 4,9 | 0,009 |
Husky-siberiano | 6,8 | 1,3 | 0,000 |
Malamute | 5,5 | 0,2 | 0,000 |
Chow-chow | 3,8 | 0,2 | 0,000 |
São-bernardo | 3,4 | 0,5 | 0,000 |
Dobberman | 2,4 | 1,2 | 0,070 |
Akita | 2 | 0,4 | 0,000 |
1) um cão envolvido. 2) AKC registro, 2002. 3) bull+stafforshire bull terriers
Figura 4 – Algumas raças mordem relativamente mais do que o esperado da média dos cães. Estudo feito com o Kennel Clube dos EUA em 2002 e apresentado pelo dr. Alan Beck em sua visita ao Brasil em 2011 *.
*Alan M. Beck and Larry T. Glickman, 2007
Raça | Fatal %1 | AKC2 | p |
Sem raça definida | 13 | 493 | 0,000 |
Golden-retriever | 1 | 5,9 | 0,000 |
Labrador-retriever | 0,7 | 4,4 | 0,002 |
Buldogue | 0,3 | 1,6 | 0,080 |
1) um cão envolvido. 2) AKC registro, 2002. 3) APPMA 2002
Figura 5 – Algumas raças mordem relativamente mais do que o esperado da média dos cães. Estudo feito com o Kennel Clube dos EUA em 2002 e apresentado pelo dr. Alan Beck em sua visita ao Brasil em 2011 *.
*Alan M. Beck ; Larry T. Glickman, 2007
Raça | 1079-84 | 1985-90 | 1991-96 | Total |
Pit-bull | 17 | 29 | 14 | 60 |
Rottweiler | 1 | 5 | 23 | 29 |
Pastor-alemão | 8 | 7 | 4 | 19 |
Husky-siberiano | 5 | 4 | 5 | 14 |
Malamute-do-Alaska | 5 | 3 | 4 | 12 |
Doberman-pinscher | 1 | 6 | 1 | 8 |
Chow-chow | 1 | 2 | 5 | 8 |
Dog-alemão | 5 | 3 | 4 | 12 |
São-bernardo | 4 | 0 | 0 | 4 |
Akita | 0 | 1 | 3 | 4 |
Figura 6 – Embora seja difícil obter dados epidemiológicos de mortes causadas por cães, estudos das décadas de 1980 e 1990 mostraram que há predisposição de algumas raças. Estudo apresentado pelo dr. Alan Beck em sua visita ao Brasil em 2011 *
*Alan M. Beck and Larry T. Glickman, 2007
Assim, outra função importante do médico-veterinário clínico de pequenos animais é auxiliar a entender o comportamento do animal, uma vez que ele é o profissional mais habilitado para esse fim. Conhecendo as situações em que ocorrem as agressões e compreendendo suas causas, consegue auxiliar os tutores de cães a se prevenir, contribuindo para que tenham uma relação saudável com esses animais.
Pensando em um programa de prevenção às mordeduras, as medidas mais eficazes para a redução de ocorrência envolvem ações continuadas de educação em guarda responsável associada ao registro, à identificação de animais e à legislação aplicável, além da orientação da população quanto às medidas preventivas com base no comportamento natural dos cães 15. A prevenção dos agravos deve ser realizada de forma abrangente e envolvendo diversos campos de atuação, com o desenvolvimento de um trabalho educativo com as crianças, seus responsáveis e a população em geral. Deveriam ser abordados temas de conscientização dos riscos e da gravidade do acidente por mordedura, destacando-se que a prevenção pode ser feita e tem sido plausível a obtenção de bons resultados 8.
Em conclusão, apesar da subnotificação observada nos acidentes por mordeduras, o SINAN tem sido a principal fonte de investigação desse agravo. Entretanto, a ficha epidemiológica deveria ser complementada de forma a promover uma abrangência maior de dados relevantes que especifiquem a situação de domicílio do animal agressor, a sua relação com a vítima e a forma como a agressão ocorreu, sendo essas informações fundamentais para delinear o perfil do animal agressor e da vítima, e consequentemente subsidiar estratégias para os programas de prevenção desses acidentes e de educação em saúde como um todo 17.
Referências sugeridas
01-SILVA, D. P. Canis familiaris: aspectos da domesticação (origem, conceitos, hitóteses). 2011. 46 f. Monografia (Bacharelado em Medicina Veterinária) – Universidade de Brasília, Brasília, 2011.
02-MUNDIM, A. P. M. ; SCATENA, J. H. G. ; FERNANDES, C. G. N. Agressividade canina a seres humanos: reação normal ou alteração comportamental motivada pela raiva? Clínica Veterinária, v. 67, n. 1, p. 84-88, 2007.
03-BABBONI, S. D. ; MODOLO, J. R. Raiva: origem, importância e aspectos históricos. UNOPAR Cinetífica Ciências Biológicas e da Saúde, v. 13, p. 349-356, 2011. Disponível em: <https://repositorio.unesp.br/entities/publication/75dc1a37-b13b-47cc-8950-756dab54ed45>.
04-SCHNEIDER, M. C. ; BURGOA, C. S. Tratamiento contra la rabia humana: un poco de su historia. Revista de Saúde Pública, v. 28, n. 6, p. 454-463, 1994. doi: 10.1590/S0034-89101994000600010.
05-BRASIL. Ministério da Saúde. Guia de Vigilância em Saúde/Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 812 p.
06-BRASIL, Ministério da Saúde. Vigilância em saúde: zoonoses. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. 100 p.
07-CHANG, Y. F. ; McMAHON, J. E. ; HENNON, D. L. ; LaPORTE, R. E. ; COBEN, J. H. Dog bite incidence in the city of Pittsburgh: a capture-recapture approach. American Journal of Public Health, v. 87, n. 10, p. 1703-1705, 1997. doi: 10.2105/AJPH.87.10.1703.
08-DEL CIAMPO, L. A. ; RICCO, C. G. ; ALMEIDA, C. A. N. ; BONILHA, L. R. C. M. ; SANTOS, T. C. C. Acidentes de mordeduras de cães na infância. Revista de Saúde Pública, v. 34, n. 4, p. 411-412, 2000. doi: 10.1590/S0034-89102000000400016.
09-WHO. WORLD HEALTH ORGANIZATION. Centro de Prensa – Nota descriptiva nº 99 – Rabia. 2015. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs099/es/. Acesso em 27 agosto 2016.
10-OLIVEIRA, E. A. ; MANOSSO, R. M. ; BRAUNE, G. ; MARCENOVICZ, P. C. ; KURITZA, L. N. ; VENTURA, H. L. B. ; PAPLOSKI, I. A. D. ; BIONDO, A. W. Neighborhood and postal worker characteristics associated with dog bites in postal workers of the Brazilian National Postal Service in Curitiba. Revista Ciência e Saúde Coletiva, v. 18, n. 5, p.1367-1374, 2013. doi: 10.1590/S1413-81232013000500022.
11-DEL CARLO, R. J. ; CONCEIÇÃO, L. G. Mordidas: implicações, tratamentos e orientações. Revista CFMV, ano XXII, n. 68, p. 45-49, 2016.
12-RUSKIN, J. D. ; LANEY, T. J. ; WENDT, S. V. ; MARKIN, R. S. Treatment of mammalian bite wounds of the maxillofacial region. Journal of Oral and Maxillofacial Surgery, v. 51, n. 2, p. 174-176, 1993. doi: 10.1016/S0278-2391(10)80017-5.
13-SERPELL, J. ; JAGOE, J. A. Early experience and the development of behaviour. In: SERPELL, J. The domestic dog: its evolution, behaviour and interactions with people. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. p. 79-102. ISBN: 978-0521425377.
14-REISNER, I. R. ; SHOFER, F. S. Effects of gender and parental status on knowledge and attitudes of dog owners regarding dog aggression toward children. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 233, n. 9, p. 1412-1419, 2008. doi: 10.2460/javma.233.9.1412.
15-BEAVER, B. V. Comportamento canino: um guia para veterinários. 1. Ed. São Paulo: Roca, 2001. p. 189-249. ISBN: 978-8572413169.
16-CURITIBA. Câmara Municipal de Curitiba. Lei N. 9.394, de 15 de abril de 1.999. Determina que os proprietários de cães de raças notoriamente violentas e perigosas coloquem o equipamento de segurança chamado focinheira nos animais quando transitarem em parques, praças e vias públicas de Curitiba. Curitiba, 1999.
17-FORTES, F. S. ; WOUK, A. F. P. F. ; BIONDO, A. W. ; BARROS, C. C. Acidentes por mordeduras de cães e gatos no município de Pinhais, Brasil, de 2002 a 2005. Archives of Veterinary Science, v. 12, n. 2, p. 16-24, 2007. doi: 10.5380/avs.v12i2.9904.