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Uso do Código Xv nos trabalhos médico-veterinários em desastres

Uma ferramenta de auxílio na busca e no salvamento de animais

Matéria escrita por:

Lara Diniz Pereira, Aldair Junio Woyames Pinto

24 de jul de 2024


Introdução

Após o furacão Katrina, um dos desastres mais mortíferos e destrutivos da história dos Estados Unidos, a Agência Federal de Gestão de Emergências (Fema) daquele país implementou como ferramenta de trabalho um sistema de marcações na busca e no salvamento conhecido como X-code. Esse sistema desempenhou um papel crucial nas operações, marcando residências para indicar número e situação de vítimas encontradas, riscos internos e externos das estruturas, além de marcar data da vistoria e a equipe responsável. Essas informações para operações de busca e salvamento são cruciais para maximizar o trabalho, gerando eficiência na resposta frente a um desastre. Entretanto, para que essas informações sejam úteis é preciso que sejam rápidas e fáceis de fazer, ler e interpretar. As marcações são feitas (nas paredes externas e/ou nos telhados) nas residências e nos estabelecimentos afetados, após a verificação pelas equipes de resgate, e servem para comunicar as informações encontradas. Essas informações indicam às demais equipes que naquela casa já houve uma verificação, otimizando os trabalhos. Para isso, essas marcações precisam ser grandes, bem localizadas e de cores contrastantes com a superfície na qual forem aplicadas. De acordo com o Field Operations National Guide ¹ da Fema, a tinta spray laranja parece ser a cor mais facilmente vista na maioria das paredes e telhados. Essas marcações foram importantes para as equipes de resgate e para os voluntários que trabalharam no Katrina, e atualmente são difundidas nos treinamentos e trabalhos de equipes de busca e salvamento urbano em situações de desastres.

O uso de códigos para essa função já existia antes mesmo do Katrina. Em inundações e enchentes nos Estados Unidos o uso do X-code foi relatado, por exemplo, na passagem do furacão Floyd em 1999 e em 2008 no furacão Ike no Texas. Em 2016 em Greenville, Carolina do Norte, após a passagem do furacão Matthew, também há relatos do uso do X-code como ferramenta auxiliar de busca e salvamento. A compreensão do contexto histórico e a funcionalidade do sistema X-code ou do uso de códigos em desastres permite o compartilhamento de informações valiosas sobre o gerenciamento de desastres e de protocolos de resposta a emergências nos países do primeiro mundo. Entretanto, é escassa a literatura sobre códigos envolvendo busca e salvamento de animais de companhia, de produção ou de animais silvestres resgatados por equipes especializadas.

Atualmente, com as inundações e enchentes que acometeram o Rio Grande no Sul no Brasil em maio de 2024, estima-se que mais de 22 mil animais foram resgatados em situações de vulnerabilidade, risco e urgência ligadas ao desastre. Tanto as vítimas diretas (que sofreram a ação das forças das chuvas e elevação das águas) quanto as vítimas indiretas (animais errantes, soltos em via pública) foram abrigadas em centros de triagem, abrigos de campanha e postos de atendimento médico-veterinário montados de maneira emergencial, por voluntários, para conter as consequências sociais causadas pelas enchentes. Existe uma estimativa declarada pelo governo do estado de que mais da metade desses animais não retornarão ao lar de origem. Isso se deve, dentre tantos outros fatores, à incapacidade de rastrear a localização original dos animais e de seus tutores. Outro fator importante é a falta de organização e integração dos trabalhos das equipes de resgate de animais. 

Uma estrutura unificada e alinhada entre as equipes nas buscas de resgate e salvamento de animais, com a formação de estrutura de sistema de comando de incidentes poderia ser eficiente na identificação e na localização de animais socorridos e suas características, facilitando localizar seus responsáveis e minimizar o surgimento de animais abandonados, perdidos ou errantes.

Percebe-se que a uniformidade técnica nas ações de busca e salvamento de animais no Brasil e no mundo precisa ser estudadas, proposta e utilizada. Assim, o presente texto tem o objetivo de adaptar o sistema do X-code Fema propondo o sistema Código Xv, aplicado na gestão de informações sobre animais, como ferramenta para otimizar os trabalhos de busca, resgate e salvamento em desastres.

 

X-code (Código X) da Fema

O sistema de Código X da Fema é um método padronizado usado pelas equipes de busca e resgate para comunicar informações sobre edifícios que foram inspecionados após um desastre. Esse sistema envolve marcar estruturas com um “X” grande e preencher quadrantes específicos com detalhes críticos:

• Quadrante superior: data e hora da pesquisa;

• Quadrante esquerdo: identificador da equipe ou unidade;

• Quadrante direito: perigos dentro da estrutura;

• Quadrante inferior: número de vítimas encontradas.

Esses códigos são cruciais para coordenar esforços, garantir a segurança do pessoal de resgate e proporcionar uma comunicação clara no meio do caos de uma zona de desastre. 

Nos primeiros dias após o furacão, o X-code tornou-se essencial para organizar os esforços caóticos de busca e resgate. Equipes de todo o país chegaram para ajudar e o sistema de codificação uniforme foi fundamental para garantir uma resposta coordenada. A uniformidade e a padronização de todas as equipes de resgate permitiu que as operações de busca e salvamento se expandissem para quase todos os edifícios das áreas afetadas de Nova Orleans e região. Isso ajudou a acompanhar o progresso e a evitar pesquisas redundantes. Entretanto, os maiores desafios vieram com as falhas de comunicação, pois houve casos de marcações incorretas, entre outras, que por vezes geraram confusão e atrasos nas buscas. Contudo, a eficácia global do sistema foi reconhecida nas extensas e complexas operações de busca e salvamento.

 

Principais desafios encontrados nas informações do resgate de animais em enchentes e inundações no Rio Grande do Sul

As equipes de busca e salvamento de seres humanos enfrentaram desafios na organização integrada, na logística de busca e na otimização do tempo de resposta. Esses três fatores culminam no principal problema na construção de um Sistema de Comando Integrado (SCI) imediato, de onde partem as tomadas de decisões a respeito do quê, de quem, de quando, de onde e de como fazer as buscas e os salvamentos. Essas informações permitem que as equipes sejam objetivamente direcionadas a atender localizações diferentes, evitando gerar duplicidade de busca em uma área e ausência de busca em outra.

No caso do Rio Grande do Sul, foi perceptível que, em poucos dias, todos os abrigos de animais resgatados estavam superlotados, mas ainda existiam muitos resgates a serem feitos. Isso se deveu à falta de organização conjunta inicial das equipes e à falta de políticas públicas de planos de manejo e prevenção a desastres envolvendo animais. Além disso, houve casos de animais errantes de áreas não afetadas e de animais comunitários de áreas protegidas das enchentes que foram levados aos abrigos.

Teria sido fundamental analisar a procedência dos animais que foram resgatados em número bastante elevado, vindos de várias frentes de trabalho. Muitos dos animais resgatados foram inicialmente distribuídos sem critérios de classificação de vítimas (urgências, emergências, animais saudáveis etc.) e sem orientação quanto à localização exata do resgate.

Na cidade de Novo Hamburgo, após os dez primeiros dias do rompimento do dique de São Leopoldo, os abrigos recebiam apenas animais com localização exata e que haviam sido retirados de áreas de risco. É importante analisar como podemos melhorar as formas de resposta frente a desastres usando sistemas semelhantes ao X-code para maximizar as ações envolvendo busca e salvamento de animais.

 

O código Xv

O código Xv é uma proposta de ferramenta de uso veterinário, usada para nortear equipes de busca e salvamento de animais em áreas de enchentes e inundações a respeito das principais ações executadas pelas equipes naquele local, bem como sobre as demandas dos dias consecutivos. Assim como no X-code, a marcação em “X” divide o código em 4 quadrantes que separam as seguintes características:

• Quadrante superior: data e hora da pesquisa;

• Quadrante esquerdo: identificador da equipe ou da unidade de resgate;

• Quadrante direito: situação encontrada e executada pela equipe no local;

• Quadrante inferior: contabilização das ações do quadrante direito.

Assim, antes de passarmos para a construção do código Xv, é preciso adicionar as siglas e legendas que serão utilizadas no quadrante direito, da situação. Trata-se de legendas baseadas nas principais ações realizadas durante o trabalho do GRABH tanto em Santa Catarina em 2023, quanto no Rio Grande do Sul em 2024.

 

Siglas referentes à situação

• SN (suporte nutricional): utiliza-se quando as vítimas foram, apenas alimentadas;

• R (resgatado): utiliza-se quando as vítimas foram resgatadas no local;

• V (fazer nova verificação): utiliza-se quando a equipe esteve no local, encontrou vítimas, mas por qualquer motivo naquele dia não realizou o suporte nutricional e/ou resgate, informando a próxima equipe que o ambiente precisava ser verificado;

• NR (não resgatar): utilizada quando existe uma ordem do proprietário da casa, do comando de operações ou do tutor do animal para não realizar o resgate. É importante citar que essa ação pode ser reavaliada caso exista risco iminente à saúde e ao bem-estar da vítima;

• O (óbito): utilizada quando forem encontrados corpos naquela localidade;

• Ø (nenhuma visualização): utiliza-se quando não há vítimas.

 

Legendas referente às espécies de vítimas

C – Cão

G – Gato

A – Aves de produção

S – Silvestres e pets não convencionais

E – Equídeos

B – Bovinos, bubalinos e pequenos ruminantes

P – Suínos

H – Seres humanos

O código Xv pode ser criado a partir das informações coletadas, utilizando o modelo proposto (Figura 1).

 

Construindo o Xv

Após a verificação da residência ou edificação, a equipe escolhe um local grande, fácil de visualizar e que não esteja em risco de destruição ou inundação para grafar o código Xv. As cores utilizadas devem ser chamativas e apresentar contraste com o local escolhido. Em enchentes, os telhados são sempre áreas de escolha para visualização aérea, além de ser a última opção visual de uma edificação, antes de uma inundação completa, e de não prejudicar a estética após o desastre. Inicia-se a construção do quadrante superior inserindo o dia e o mês, sempre em dois dígitos e separados por hífen. Em seguida, realiza-se a construção do quadrante direito, separando as ações por lista (sem enumerá-las), incluindo primeiro as siglas e depois a legendas para cada situação. Dando sequência, preenche-se o quadrante inferior com o número de vítimas em cada situação (sigla), separados por hífen, na horizontal para cada vítima (legenda). Para cada situação é construída uma contabilização. Por fim, no quadrante esquerdo é grafada a sigla das equipes de resgate, cadastradas junto ao SCI daquele cenário. Em alguns casos, onde se associam equipes previamente existentes, a sigla pode ser baseada nas definições de radiocomunicação ou a critério do comando (Alfa, Bravo, Charlie etc.). Essa sigla de equipe é de extrema importância para a porterior rastreabilidade e responsabilização.

Apresentamos um exemplo hipotético. No dia 10 de maio, a equipe do GRABH teria encontrado em uma casa inundada quatro cães, quatro gatos e dois galos. Desses animais, a equipe teria conseguido resgatar apenas um cão e dois gatos, pois os outros teriam se esconderam no sótão, local inacessível naquele momento para a equipe. Ainda, durante a verificação, a equipe teria encontrado dois animais em óbito, um cão e um gato. Assim, a figura 2 ilustra como seria feito o código Xv. Para uma residência sem vítimas apresenta-se como exemplo, a figura 3.

 

Uso de códigos em desastres – vantagens e limitações

O uso de códigos por equipes de resgate tem a vantagem da padronização, que gera eficiência e uniformidade, principalmente quando temos múltiplas equipes e organizações de resgate envolvidas. Entretanto, a necessidade de formação e familiaridade com o código pode ser um fator dificultador, quando não tiver sido implementado antes da atuação, ou seja, durante treinamentos. Para isto é necessário garantir que todos os socorristas tenham formação adequada na utilização do sistema do código Xv, pois essa preparação é crucial para evitar erros e falhas de comunicação na resposta a um desastre. Assim, embora seja um código padronizado, a adaptabilidade e a flexibilidade devem existir, para adequar melhor a comunicação, de acordo com o cenário e o desastre em questão, pois, assim como a comunicação na evolução da humanidade varia entre os povos, os códigos também precisam se adequar às necessidades de cada situação.

Além dos códigos, é preciso implementar outros sistemas para identificar, catalogar, rastrear e denominar animais na comunicação entre os envolvidos, para se ter um fluxo de busca, resgate e salvamento adequado aos animais tutelados em cenários de desastres.

 

Referências sugeridas

1-FEMA. “Hurricane Katrina: What Government Is Doing.” Federal Emergency Management Agency. 2005.

2-U.S. Department of Homeland Security. “The Federal Response to Hurricane Katrina: Lessons Learned.” 2006.

3-Krol, D. M. “The Search and Rescue Operations Following Hurricane Katrina.” Journal of Emergency Management. 2007

4-Lipton, E. ; Drew, C. “Breakdowns Marked Path From Hurricane to Anarchy.” The New York Times. 2005

5-Moynihan, D. P. “The Network Governance of Crisis Response: Case Studies of Incident Command Systems.” Journal of Public Administration Research and Theory. 2009

6-BRASIL, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Curso de Sistema de Comando de Incidentes. SENASP. Brasília. 2008. 2. Ed.

7-Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV). Resolução N° 1511/2023, de 28 de março de 2023. Manual de Legislação do Sistema CFMV/CRMVs. Disponível em: http://ts.cfmv.gov.br/manual/arquivos/resolucao/1511.pdf

8-PINTO, A. Et al. Manual Técnico de Socorrismo e Resgate Animal. Belo Horizonte, 2021. 1°Ed.

9-SOUZA. P. Sistema de Comando de Incidentes –Nível Operações. Corpo de Bombeiros do Paraná. 2018. 1. ed.