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Grupo de Resgate Animal de Belo Horizonte – GRABH

Protocolos anestésicos usados em animais socorridos nas enchentes do RS

Transferência e translocação de animais ilhados em risco

Créditos: GRABH / Aldair Junio Woyames Pinto Créditos: GRABH / Aldair Junio Woyames Pinto

Introdução

Em 2024, o Rio Grande do Sul sofreu a maior enchente de sua história, provocando uma crise humanitária e ambiental devastadora para o estado. O fenômeno meteorológico, caracterizado por chuvas intensas e prolongadas, resultou em transbordamentos de rios, deslizamentos de terra e inundações que afetaram milhares de pessoas; estima-se que mais de 20 mil animais foram vitimados pelo evento adverso 1. Eventos adversos de grandes proporções causam grande número de vítimas graves ou fatais, além de danos severos socioeconômicos, que mobilizam auxílios externos à zona atingida 2. No Rio Grande do Sul a resposta das autoridades locais, estaduais e federais, bem como o papel crucial das organizações de resgate técnico animal voluntárias, foram essenciais para mitigar os danos e apoiar a recuperação das áreas afetadas. A medicina veterinária de desastres está emergindo como uma nova área de atuação, não apenas por proporcionar cuidados e dignidade aos animais afetados, mas também por reduzir a vulnerabilidade da sociedade a longo prazo e melhorar a preparação para lidar com futuros eventos adversos 3.

Os efeitos das enchentes no Rio Grande do Sul destacam a vulnerabilidade das comunidades frente a eventos climáticos extremos, que têm se tornado cada vez mais frequentes em razão das mudanças climáticas globais. É evidente que o aumento da interferência humana na natureza ao longo da última década tem colocado em destaque os desastres em massa, especialmente o salvamento e o resgate de animais 4. O desenvolvimento e a implementação de protocolos específicos para o resgate técnico animal são fundamentais para garantir uma resposta rápida, técnica, ética e organizada em situações de crise 5. Esses protocolos incluem o treinamento de equipes de resgate, a coordenação com outras organizações de emergência e a utilização de equipamentos especializados. Ressalta-se também a importância de estudos sobre a aplicabilidade de anestesia em ambientes de desastres e de difícil acesso para a translocação de animais da zona afetada para a zona segura, uma vez que apenas órgãos oficiais e equipes técnicas podem adentrar essas zonas.

 

Desenvolvimento

O Grupo de Resgate Animal de Belo Horizonte (GRABH) desempenhou um papel crucial na Operação Rio Grande do Sul, realizada ao longo de 19 dias nas cidades de Novo Hamburgo, RS, e São Leopoldo, RS, de 4 a 23 de maio. Durante esse período, ambas as cidades enfrentaram uma situação de calamidade pública, com mais de 200 mil pessoas afetadas, cerca de 180 mil da cidade de São Leopoldo e 32 mil de Novo Hamburgo 6. As áreas estavam amplamente inundadas, dificultando severamente o acesso e a locomoção entre os bairros, com ruas submersas e vasta extensão dos locais. A equipe do GRABH operou intensamente utilizando embarcações para alcançar áreas isoladas e resgatar animais em situação de risco.

Ao realizar as primeiras vistorias pelas zonas afetadas, constatou-se que havia uma enorme quantidade de animais ilhados em telhados, em restos de estruturas, em árvores e sobre lixo, entre outros objetos que flutuavam. A equipe do GRABH realizou a translocação desses animais da área afetada para a zona segura, estabelecida pela secretaria do meio ambiente da prefeitura de Novo Hamburgo. Foi observado que cães e gatos possuem maior facilidade para se deslocar na água sem imergir a cabeça 7, mas grande parte dos animais, principalmente suínos e galináceos, tendem a permanecer no local ilhado em razão do frio e da água gelada. Eles sofrem estresse quando precisam se deslocar pela água para outros telhados ou regiões altas para sobreviver. Assim, durante as varreduras realizadas pelo GRABH, constatou-se a necessidade urgente de translocar esses animais para áreas seguras. Devido à vasta extensão das inundações, o acesso só era possível por meio de embarcações e com a autorização de órgãos oficiais. Além disso, os proprietários de muitos desses animais não conseguiam fornecer a alimentação diária necessária para a sobrevivência. Houve assim a necessidade da retirada desses animais e do ofereceimento de suporte nutricional básico diário àqueles cuja captura não era possível.

O socorrista anestesista veterinário desempenha papel crucial em operações de resgate em desastres. Sua principal responsabilidade é garantir o controle da dor, a tranquilização segura, a sedação ou a anestesia imediata das vítimas. Esse profissional possui conhecimento de protocolos anestésicos adaptáveis a diferentes ambientes, incluindo situações em locais de difícil acesso ou áreas remotas (Figura 1), priorizando a minimização do risco de agravamento ou morte dos animais em situações de estresse. Além de proteger os animais, o socorrista anestesista também reduz os riscos às equipes de resgate, que frequentemente atuam em ambientes de alto risco e lidam com os comportamentos variados das diferentes espécies 5.

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Figura 1 – Resgate de um cão em situação de desastre. A) Cão (Canis lupus familiaris) arredio, ilhado e sem alimentação em Rio do Sul, SC, em 2023. B) Captura, contenção e sedação do cão. C) Monitoramento do animal durante o trajeto. Créditos: GRABH / Aldair Junio Woyames Pinto

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Para um protocolo eficiente de sedação ou anestesia em operações de resgate, o sedativo e/ou anestésico deve reduzir o estresse, proporcionar sedação e analgesia, de acordo com o procedimento necessário. Porém, muitas vezes o protocolo é complexo devido à variabilidade dos cenários em que o anestesista atua no campo. Em ambientes controlados, como um bloco cirúrgico, é mais seguro descrever esses protocolos. No entanto, em ambientes não controlados, a descrição de protocolos específicos seria imprudente, pois cada ambiente requer uma análise detalhada da situação para determinar o fármaco, as doses, as vias de aplicação, a manutenção e o retorno anestésico adequados. Para escolher o protocolo correto, seria necessário analisar como acessar e evacuar o local em situações de risco, além de considerar as condições climáticas, entre outras variáveis 5.

 

Operações de resgate envolvendo protocolos anestésicos

Durante a operação do Rio Grande do Sul 2024 as equipes de resgate técnico animal GRABH e RTA Brazil foram responsáveis por duas importantes ações com uso de protocolos anestésicos para realizar a translocação de doze porcos e um cavalo.

A equipe da RTA Brazil recebeu na terça-feira, dia 07/05/24, a demanda por meio de moradores, de um equino em cima de um telhado, no bairro de Mathias Velho, em Canoas, RS. Prontamente, respeitando o fluxo de operações dentro do SCI, a informação foi levada ao Posto de Comando dos Bombeiros de São Paulo, sendo triada para obtenção de maiores detalhes e início do planejamento. As informações preliminares vinculavam registros fotográficos do animal (com poucos detalhes) e coordenadas geográficas aproximadas. Após análise do mapa da região, foram planejadas as estratégias e as ações de busca ao equino.

Na quarta-feira, dia 08/05/24, uma guarnição do Corpo de Bombeiros da PMESP e a equipe da RTA Brazil, fazendo uso de dois barcos, incursionaram no bairro de Mathias Velho, por meio do viaduto da rua Rio Grande do Sul, e iniciaram as buscas. No entanto, não se obteve êxito em encontrar o animal, havendo piora drástica nas condições climáticas, o que forçou as equipes a saír da água sem poder retornar. O período noturno já avançara, assim, optou-se por retornar à base e reavaliar da operação. A partir da varredura de grande parte do bairro, obteve-se mais informações e novas estratégias foram determinadas para o dia seguinte. Logo nos primeiros momentos da manhã, com o início da iluminação natural do dia, três barcos de duas guarnições do Corpo de Bombeiros da PMESP e da RTA BRAZIL retomaram as buscas, e após minuciosa varredura, de aproximadamente 4,5 quilômetros percorridos, obtiveram êxito em encontrar o equino em cima do telhado, em posição similar à veiculada nas imagens fornecidas previamente à equipe. Em uma laje em frente ao telhado onde o animal se encontrava, foi montado um posto de comando avançado para a ocorrência e novo planejamento quanto à melhor maneira de extraí-lo do local. Em decisão conjunta entre do Capitão Franco e do médico-veterinário Leonardo Maggio de Castro, optou-se pela remoção via balsa com o animal anestesiado, e determinou-se também a posição e a ação de cada operador de resgate. O médico-veterinário Leonardo realizou o primeiro acesso ao telhado para contenção física do animal por meio do cabresto, auxiliado por mais três operadores, entre eles um médico-veterinário e um bombeiro) (Figura 2). Ao redor do telhado foram posicionados dois bombeiros especializados em mergulho, para a eventualidade da queda do animal na água. Mais três bombeiros ficaram responsáveis pelas embarcações para extração da vítima e dos operadores ao final do procedimento. A abordagem ao equino foi cautelosa, porém sem intercorrências.Foram colocados além do cabresto, três life belts (cintas de segurança), um no pescoço e outros dois na região do esterno, para salvaguardá-lo durante toda operação.

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Figura 2 – Resgate de equino ilhado havia 4 dias em Mathias Velho, RS, em 9 de maio de 2024. A) Encontro pela equipe do RTA Brazil junto com bombeiros militares do estado de São Paulo do equino (Equus caballus) ilhado em um telhado. B) Aproximação da equipe ao telhado no qual estava o animal. C) Abordagem ao telhado e ao animal. D) Realização da operação de resgate a partir da colocação de cabresto e utilização de protocolos anestésicos para a translocação. Créditos: RTA Brazil / Leonardo Maggio de Castro

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Para realizar a translocação do animal foram utilizados como sedativo 1mg/kg de xilazina 10%, e após 6 minutos da sedação, como coindutor anestésico, 2,2mg/kg de cetamina e 0,1mg/kg de diazepam, administrados por via IM. O animal foi mantido em infusão de éter gliceril guaiacol (EGG) intravenoso, associado a 1mg/kg de xilazina e 2,2mg/kg de cetamina para garantir a imobilização do animal durante todo o trajeto de translocação dentro da embarcação. Ao chegar ao local designado pela equipe, o animal foi colocado em um caminhão e conduzido ao hospital veterinário da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).

O animal não apresentou alterações graves, exceto leve desidratação e hipotermia, parâmetros estabilizados na sala de recuperação anestésica. Cerca de 1 hora e 30 minutos após a chegada à sala de recuperação anestésica, o equino adotou a posição quadrupedal.

No dia 14/05/2024, a equipe do GRABH realizou a translocação de doze porcos que estavam ilhados em um pequeno telhado de madeira para uma área segura (Figura 3A). O resgate durou aproximadamente três horas e envolveu quatro embarcações – duas voadeiras motorizadas e dois caiaques –, com o contingente de doze socorristas.

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Figura 3 – Resgate de suinos ilhados havia 3 dias em Novo Hamburgo, RS, em 14 de maio de 2024. A) 12 porcos (Sus scrofa domesticus) sobre um telhado em região inundada. B e C) Captura, contenção e sedação dos animais. D) Monitoramento do animal durante o trajeto da embarcação. E) Monitoramento do animal na base estacionária aquática. F) Animais na zona segura já dentro da carretinha. Créditos: GRABH / Aldair Junio Woyames Pinto

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O planejamento foi conduzido pelo líder da equipe, o médico-veterinário Aldair Pinto, e pela médica-veterinária anestesista Paloma Ambrosio. As voadeiras foram utilizadas como bases estacionárias aquáticas para a realização segura do protocolo anestésico, aproveitando a maior estabilidade dessas embarcações. Os caiaques, devido à sua maleabilidade, rapidez e capacidade de manobra facilitada na água, foram utilizados para aproximação e captura dos porcos, que eram levados até as voadeiras para a aplicação dos fármacos anestésicos (Figura 3B e C).

A médica-veterinária anestesista optou por realizar a contenção química dos suínos nas doses de 2mg/kg de xilazina e 10mg/kg de cetamina por via intramuscular (IM), dentro das voadeiras, garantindo que o procedimento ocorresse de forma segura. A translocação foi realizada com sucesso, mantendo a contenção dos animais por todo o trajeto (Figura 3D e E). Foram realizadas quatro viagens na voadeira, de motor mais potente, transportando três porcos por viagem. Em todas as viagens, os animais foram monitorados quanto à frequência cardíaca (FC) e respiratória (FR) e mantiveram esses parâmetros dentro do fisiológico para a espécie.

Ao chegar à zona segura, o socorrista responsável pela base estacionária na margem, que estava em comunicação via rádio com a equipe na água, já havia feito contato com a Secretaria do Meio Ambiente de Novo Hamburgo, para garantir a destinação correta dos porcos. Os animais foram embarcados e transferidos em uma carretinha reboque para o local designado pela secretaria (Figura 3F).

 

Discussão

Alguns grupos de resgate animal vêm desempenhando um papel pioneiro no Brasil em relação ao desempenho do socorrista anestesista dentro da equipe de resgate, realizando o trabalho na zona afetada pelo desastre. O GRABH realizou operações bem sucedidas, translocando animais de zonas afetadas para áreas seguras, demonstrando eficácia e competência em situações críticas.

O resgate técnico emblemático do equino “Caramelo”, conduzido pelo médico-veterinário e professor Leonardo Maggio do RTA Brazil em ação conjunta com a Corporação de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo, liderados pelo Capitão Franco, é um exemplo notável nas enchentes no Rio Grande do Sul e ganhou relevância na mídia mundial. Esse resgate técnico evidenciou a importância e a competência das equipes especializadas em socorro animal. O equino estava ilhado havia quatro dias na cidade de Canoas, em situação crítica sobre um espaço reduzido de um telhado 8.

Após realizarmos um levantamento bibliográfico sobre protocolos anestésicos veterinários em cenários de desastres, observamos uma notável escassez de estudos específicos sobre o tema. Essa lacuna evidencia um importante questionamento acerca da relevância do assunto no âmbito do resgate técnico animal. O papel do anestesista veterinário em situações de desastres não se limita apenas ao controle da dor, à tranquilização segura, à sedação ou à anestesia imediata dos animais vítimas, mas também envolve a garantia da segurança dos membros da equipe de resgate 5.

A ausência de protocolos anestésicos bem definidos e adaptáveis a situações de desastre torna-se, portanto, um desafio significativo. Anestesistas veterinários que trabalham em ambientes de desastres devem ser capazes de ajustar seus procedimentos rapidamente, levando em consideração as condições ambientais adversas, o estado físico dos animais e os recursos disponíveis no local 5. A capacitação dessas equipes é essencial para implementar procedimentos de resgate eficazes e coordenados, garantindo uma abordagem organizada que integre médicos-veterinários a outras especialidades nas equipes de campo 9. Essa iniciativa visa não apenas proteger os animais em situações de crise, mas reduzir os riscos para os profissionais envolvidos, especialmente em ambientes de desastres.

Um exemplo da importância desse tema pode ser encontrado na Resolução nº 1.511/2023 do Conselho Federal de Medicina Veterinária, que estabelece diretrizes para a atuação de médicos-veterinários e zootecnistas em desastres 10. Essa regulamentação destaca a necessidade de profissionais bem treinados e preparados para atuar em condições adversas.

 

Considerações finais

Este relato ressalta a importância da ampliação das pesquisas e da elaboração de protocolos específicos para a anestesia veterinária em situações de desastres.

O socorrista anestesista desempenha um papel fundamental, oferecendo cuidados essenciais para animais em situação de vulnerabilidade. Sua capacidade de realizar protocolos anestésicos eficazes em condições adversas, e também sua habilidade em mitigar riscos para os animais e para toda a equipe de resgate, são essenciais para o sucesso em operações de resgate em desastres.

A adaptação rápida às informações do ambiente e às características específicas das espécies atendidas é fundamental, garantindo que o tempo seja uma premissa básica a ser respeitada para o sucesso das operações de socorro e resgate.

 

Referências

01-JORNAL DA GAZETA. Em meio à tragédia, mais de 20 mil animais foram resgatados, mas o trabalho só começou. YouTube, 8 mai. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QNH9pFYj5G8. Acesso em: 13 jun. 2024. (GAZETA, 2024)

02-FRANÇA, General, Desastres de Massa – Sugestões para um Itinerário Correto de Auxílios. João Pessoa – PB . Revista Bioética, p.1-6, 2009.

03-SOUZA, M. M. V. Medicina veterinária de desastres e catástrofes: plano de ação, Manhuaçu, MG. Pubvet, v.13, n.10, a429, p.1-7, Out., 2019.

04-VIEIRA, J. Medicina veterinária de desastres e catástrofes. Contributo para a extensão do Plano Municipal de Emergência . Lisboa, 2016

05-PINTO, A. J. W. Manual técnico de socorrismo e resgate animal. v. 1, p 233, 2021.

06-CÂMARA MUNICIPAL DE NOVO HAMBURGO. Novo Hamburgo soma 12 mil pessoas acolhidas em espaços disponibilizados pela prefeitura. Disponível em: https://portal.camaranh.rs.gov.br/pm3/informacao_e_conhecimento/noticias/novo-hamburgo-soma-12-mil-pessoas-acolhidas-em-espacos-disponibilizados-pela-prefeitura. Acesso em: 13 jun. 2024.

07- GOMES, B. et al. Plano Nacional de Contingência de Desastre em Massa Envolvendo Animais. CFMV, 2020.

08-CNN BRASIL. Chuvas no RS: cavalo Caramelo é resgatado após ficar 4 dias ilhado em Canoas. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/chuvas-no-rs-cavalo-caramelo-e-resgatado-apos-ficar-4-dias-ilhado-em-canoas/

09-FIDAN A. F. , ASLAN R. Rescue Glide Use in Emergency Large Animal Rescue. Kocatepe Veterinary Journal, v. 11, n. 3, p. 331-338. 2018. DOI: 10.30607/kvj.419747.

10-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução n◦ 1511, de 28 de março de 2023. Institui diretrizes para a atuação de médicos-veterinários e zootecnistas em desastres em massa envolvendo animais domésticos e selvagens.