Menu

Clinica Veterinária

Início Opinião MVDesastres Desastre ambiental em Brumadinho, MG
MVDesastres

Desastre ambiental em Brumadinho, MG

A importância do médico-veterinário perito e patologista nesse contexto

Peritos analisando o local  e mapeando carcaças. Créditos: Aldair Junio Woyames Pinto Peritos analisando o local e mapeando carcaças. Créditos: Aldair Junio Woyames Pinto

Introdução

Desastres ambientais são situações que geram instabilidade nas relações de uma sociedade ou comunidade, acarretando danos humanitários que frequentemente se associam a prejuízos ao meio ambiente ¹. Independentemente da origem do incidente, natural ou antropogênica, existe uma população exposta ao risco que necessita de resposta emergencial ágil e eficaz para amenizar os agravos 2-6.

O desastre ambiental de Brumadinho foi provocado pelo rompimento da barragem B1 da mina do Córrego do Feijão, que ocasionou a dispersão de cerca de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos contendo principalmente minério de ferro, causando a morte de centenas de pessoas, além de extensa destruição ambiental 7-11. Em relação à fauna local, diferentes espécies foram encontradas mortas 12, fazendo-se necessária a avaliação pericial do local e dos cadáveres e a realização de exames complementares para melhor definir os impactos do desastre, esclarecendo a possível causa mortis e assegurando a veracidade dos dados fornecidos 13-17.

A prática da necrópsia é fundamental para confirmar, refutar, esclarecer, modificar ou estabelecer o diagnóstico post mortem. Além disso, permite maior abrangência da coleta de materiais para exames citológicos, parasitológicos, microbiológicos e toxicológicos 18,19. As necrópsias podem ser subdivididas em dois tipos: a anatomopatológica ou não judicial, e a forense ou judicial. No primeiro caso, o objetivo é avaliar as alterações macroscópicas dos órgãos para verificar a origem e a extensão das complicações existentes; nessas situações não há interesse judicial. No segundo caso, além da obtenção da causa mortis, busca-se entender o tipo de morte, seja ela acidental ou não, natural ou indeterminada; nesse contexto, a realização da perícia criminal é essencial para garantir a validade do procedimento e emitir o laudo pericial 20. No episódio sucedido em Brumadinho, ambos os procedimentos foram aplicados sob supervisão dos órgãos Polícia Federal (PF), Polícia Civil (PC), Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) e pela empresa Vale, segundo um fluxograma preestabelecido (Figura 1).

­

Figura 1 – Fluxograma de trabalho dos órgãos responsáveis pelas perícias ambientais e do departamento de necrópsia do Hospital Veterinário de Campanha da margem esquerda do Córrego do Feijão em Brumadinho, MG

­

Após a localização e a identificação dos corpos de animais domésticos ou não domésticos pelo Corpo de Bombeiros, que trabalhava em áreas afetadas diretamente pela lama, os órgãos policiais supracitados e o Ibama eram acionados via rádio e direcionados ao local. De forma geral, os procedimentos necroscópicos forenses se iniciavam pela avaliação pericial do local onde o animal havia sido encontrado, que posteriormente era recolhido e encaminhado ao Hospital Veterinário de Campanha (HVC) da margem esquerda do Córrego do Feijão. No HVC, as carcaças eram encaminhadas ao Setor de Patologia Veterinária para serem submetidas ao procedimento necroscópico, feito pela equipe de autores deste artigo e supervisionado pelos agentes das instituições responsáveis: PC, PF e Ibama. Para iniciar uma necrópsia, faz-se a inspeção completa da carcaça, na qual se analisa a região externa do animal, com o objetivo de encontrar possíveis alterações. Em seguida se realiza a avaliação minuciosa e a exteriorização de órgãos das cavidades torácica e abdominal, e por fim faz-se o recolhimento das amostras desejadas 20,21. Quando necessário, a coleta de materiais é feita em duplicata, para fins periciais e técnico-científicos. O exame post mortem foi realizado em diferentes espécies de animais (Figura 2).

­

Figura 2 – Diversidade de espécies encontradas nas áreas atingidas direta e indiretamente pelo acidente, sendo todas direcionadas pelos órgãos responsáveis e encaminhadas para o Hospital Veterinário de Campanha do Córrego do Feijão. A) Dasypus novemcinctus (Tatu-galinha). B) Passeriforme não identificado devido à decomposição e à mumificação. C) Coragyps atratus (Urubu-de-cabeça-preta). D) Gallus gallus domesticus (Galinha). E) Carcaça de Bos taurus (Bezerro) em estado avançado de heterólise.  F) Cerdocyon thous (Cachorro-do-mato). Créditos: Aldair Junio Woyames Pinto

­

Houve situações nas quais o transporte da carcaça até o HVC não era possível devido ao estado avançado de decomposição; sendo assim, a necrópsia era feita no local de encontro do cadáver (Figura 3). Nessas situações, a presença dos órgãos oficiais previamente citados também era indispensável.

­

Figura 3 – Registro do resgate da carcaça de uma capivara (Hydrochaeris hydrochaeris) feito pelos órgãos da Polícia Civil e Polícia Federal em conjunto com os autores deste trabalho, realizando necrópsia em campo. A) Animal em condições de difícil acesso e de precária possibilidade de transporte, devido à avançada decomposição. B) Necrópsia realizada às margens da lama e acompanhada pelas autoridades periciais. C) Peritos fazendo análise do local para inquérito sobre a localização e o mapeamento de carcaças. Créditos: Aldair Junio Woyames Pinto

­

As necrópsias judiciais realizadas em Brumadinho seguiram um fluxograma-padrão independentemente da espécie animal envolvida, e em todos os procedimentos realizados a fiscalização foi feita pelos órgãos oficiais. Em situações emergenciais, como foi o caso desse desastre ambiental, a realização dos procedimentos por profissionais capacitados é essencial para avaliar a abrangência dos danos provocados pela lama sobre a fauna local, uma vez que os resultados das necrópsias e das avaliações de amostras permitem provar que a morte decorreu do contato do animal com os dejetos da barragem. Ambientes submetidos a desastres demandam prestação de contas e devem basear as ações em evidências; assim, as práticas apoiadas pela ciência podem responder a possíveis lacunas 2. Todos os resultados das necrópsias realizadas em Brumadinho ainda são considerados sigilosos até a data de publicação deste artigo, portanto não podem ainda ser publicados. Entretanto, a divulgação dessa logística de trabalho demonstra a importância do patologista veterinário nessas situações e do trabalho executado de forma padronizada.

 

Referências

01-FREITAS, C. M. ; SILVA, D. R. X. ; SENA, A. R. M.  SILVA, E. L. ; SOARES, L. B. F. ; CARVALHO, M. L.  MAZOTO, M. L. ; BARCELLOS, C. ; COSTA, A. M. ; OLIVEIRA, M. L. C. ; CORVALAN, C. Desastres naturais e saúde no Brasil. 2. ed. Brasília: Fundação Oswaldo Cruz, 2015. 52 p. ISBN: 978-8579670930.

02-RDC. Logística de emergência e gestão de transporte. Manual de Programas do Conselho Dinamarquês de Refugiados (RDC), Copenhague: RDC, 2008. p. 1-9.

03-ALVES, G. B. Danos futuros na responsabilidade civil por desastres ambientais. Direito e Cidadania, v. 3, p. 1-20, 2018.

04-CARVALHO, C. S. ; GALVÃO, T. Gestão de riscos e resposta a desastres naturais: a atuação do ministério das cidades. In: CONGRESSO CONSAD DE GESTÃO PÚBLICA, 6., 2013, Brasília. Anais… Brasília: Centro de Convenções Ulysses Guimarães, 2013. 24 p.

05-ESPINDOLA, H. S. ; GUIMARÃES, D. J. M. História ambiental dos desastres: uma agenda necessária. Tempo & Argumento, v. 11, n. 26, p. 560-573, 2019. doi: 10.5965/2175180311262019560.

06-SHEIKHBARDSIRI, H. ; YARMOHAMMADIAN, M. H. ; REZAEL, F. ; MARACY, M. R. Rehabilitation of vulnerable groups in emergencies and disasters: a systematic review. World Journal of Emergency Medicine, v. 8, n. 4, p. 245-263, 2017. doi: 10.5847/wjem.j.1920-8642.2017.04.002.

07-PORTELA, G. Brumadinho sob a ótica da comunicação e informação em saúde. Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde, Fiocruz, 2019. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/brumadinho-sob-otica-da-comunicacao-e-informacao-em-saude>. Acesso em 26 de agosto de 2019.

08-PEREIRA, D. M. ; FREITAS, S. M. C. ; GUIMARÃES, H. O. R. ; MÂNGIA, A. A. M. Brumadinho: muito mais do que um desastre tecnológico. 2019. 13 p. doi: 10.13140/RG.2.2.23813.60643. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/331653523_Brumadinho_muito_mais_do_que_um_desastre_tecnologico?fbclid=IwAR1kkwgN_xUqsUaoTt2GZOvw8yp4Wk2cYz0oqh_jCNw1q5Zv42AF-qMNYhw>. Acesso em 03 de junho de 2019.

09-PEREIRA, L F. ; CRUZ, G. B. ; GUIMARÃES, R. M. F. Impactos do rompimento da barragem de rejeitos de Brumadinho, Brasil: uma análise baseada nas mudanças de cobertura da terra. Journal of Environmental Analysis and Progress, v. 4, n. 2, p. 122-129, 2019. doi: 10.24221/JEAP.4.2.2019.2373.122-129.

10-SILVA, B. V. Massacre de pessoas, violações de direitos e desprezo pela sociedade civil local marcam a experiência em Brumadinho após o desastre criminoso da VALE S/A. Revista Científica Foz, v. 1, n. 3, p. 13, 2019. Disponível em: <https://racismoambiental.net.br/2019/03/17/massacre-de-pessoas-violacoes-de-direitos-e-desprezo-pela-sociedade-civil-local-marcam-a-experiencia-em-brumadinho-apos-o-desastre-criminoso-da-vale/>. Acesso em 03 de junho de 2019.

11-IBAMA. Rompimento de barragem da Vale em Brumadinho (MG) destruiu 269,84 hectares. IBAMA, 2019. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/noticias/730-2019/1881-rompimento-de-barragem-da-vale-em-brumadinho-mg-destruiu-269-84-hectares>. Acesso em 17 de maio de 2019.

12-ÂNGELO, E. Comando de operações de busca e resgate. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE GERENCIAMENTO DA RESPOSTA EM CATÁSTROFE, 5., 2019, São Paulo. Anais… São Paulo: Albert Einstein Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, 2019.

13-LOPES, C. E. B. ; RODRIGUES, F. R. N. ; MATOS, M. G. ; BATISTA, L. S. ; PESSOA, A. W. P. ; VIANA, D. A. A importância da necropsia para a investigação de morte não esclarecida em um cão: relato de caso. Ciência Animal, v. 27, n. 2, p. 95-98, 2017.

14-FREITAS, C. M. ; BARCELLOS, C. ; HELLER, L. ; LUZ, Z. M. P. Desastres em barragens de mineração: lições do passado para reduzir riscos atuais e futuros. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 28, n. 1, p. 1-4, 2019. doi: 10.5123/s1679-49742019000100020.

15-FREITAS, C. M. ; SILVA, D. R. X. ; SENA, A. R. M.  SILVA, E. L. ; SALES, L. B. F. ; CARVALHO, M. L.  MAZOTO, M. L. ; BARCELLOS, C. ; COSTA, A. M.  OLIVEIRA, M. L. C. ; CORVALÁN, C. Desastres naturais e saúde: uma análise da situação do Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 9, p. 3645-3656, 2014. doi: 10.1590/1413-81232014199.00732014.

16-JIANG, Y. ; YUAN, Y. Emergency logistics in a large-scale disaster context: achievements and challenges. International Journal of Environmenal Research and Public Health, v. 15, n. 5, p. 779-801, 2019. doi: 10.3390/ijerph16050779.

17-ROMÃO, A. ; FROES, C. ; BARCELLOS, C. ;SILVA, D. X. ; SALDANHA, R. ; GRACIE, R. ; PASCOAL, V. Avaliação preliminar dos impactos sobre a saúde do desastre da mineração da Vale (Brumadinho MG). In: DESASTRE DA VALE EM BRUMADINHO: IMPACTOS SOBRE A SAÚDE E DESAFIOS PARA A GESTÃO DE RISCOS, 2019, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. 21 p.

18-BASTOS, A. L. A atuação dos médicos-veterinários nos desastres. Clínica Veterinária, ano XXIV, n. 140, p. 12-16, 2019. ISSN: 1413-571X.

19-PEIXOTO, P. V. ; BARROS, C. S. L. A importância da necropsia em medicina veterinária. Pesquisa Veterinária Brasileira,  v. 18, n. 3-4, p. 132-1341998. doi: 10.1590/S0100-736X1998000300008.

20-TOSTES, R. A. ; REIS, S. T. J. ; CASTILHO, V. V. A perícia em patologia. In:___. Tratado de Medicina Veterinária Legal. 1. ed. Curitiba: Medvep, 2017. p. 244-254. ISBN: 978-8566759051.

21-CARDOSO, C. V. P. Técnica de necropsia. In: ANDRADE, A. ; PINTO, S. C. ; OLIVEIRA, R. S. Animais de laboratório: criação e experimentação. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002. p. 331-335. ISBN: 85-75410156.

22-GERDIN, M. ; CLARKE, M. ; ALLEN, C. ; KAYABU, B.  SUMMERSKILL, W. ; DEVANE, D.  MACLACHLAN, M. ; SPIEGEL, P. ; GHOSH, A.  ZACHARIAH, R.  GUPTA, S. ; BARBOUR, V. ; MURRAY, V. ; VON SCHREEB, J. Evidências ótimas em cenários difíceis: melhorando as intervenções em saúde e a tomada de decisões em desastres. PLoS Medicine, 2014.