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Vulnerabilidade dos moradores das ruas

Primeiros relatos de piolho-do-corpo em moradores de rua de Curitiba e São Paulo


Grandes cidades como Curitiba 1 e São Paulo 2 têm aplicado no primeiro ano de suas respectivas gestões municipais (2017-2020) certas políticas consideradas “higienistas” 3, buscando a reurbanização de áreas ocupadas por pessoas em situação de rua com remoções compulsórias, demolição de edificações e limpeza pública por dispersão. Em resposta, ações da defensoria pública e de direitos humanos têm intervindo, estabelecendo fluxos de identificação individual visando incluir essas pessoas nos atendimentos especializados de recolhimento e atendimento médico dos municípios.

Essa vulnerabilidade social pode ser definida pela incapacidade de proteger os próprios interesses 4, o que representa em torno de 9,96% da população brasileira vivendo na faixa da miséria 5. Socialmente, três grandes grupos se formam:

• 1. presidiários: considerada a terceira maior população carcerária do mundo, com média de 300 presos para cada 100 mil habitantes 6;

• 2. refugiados: com um aumento anual de 12%, chegando a 9.552 de 82 nacionalidades diferentes 7;

• 3. pessoas em situação de rua: com estimativas de mais de 100 mil pessoas vivendo nas ruas 8.

Particularmente no Brasil, a percepção da presença de pessoas em situação de rua inicia-se a partir das décadas de 1960 e 1970, concomitantemente ao processo de industrialização das cidades (más condições de trabalho, moradias e o deslocamento às periferias) 9. Além disso, a associação com drogas e/ou problemas de saúde mental causa desorganização social, gerando insegurança, impactos negativos na economia, na cultura e na política local, regional ou nacional 10.

Sendo esse um grupo heterogêneo que compartilha experiências e exposições, torna-se importante na investigação de fatores de saúde pública e saúde única. Uma dessas experiências e exposições é a convivência com animais de companhia, que pode agir como “facilitador social”, mantendo o foco de atenção e agindo como agente tranquilizador e de apego e como um suporte social, determinando formas de aprendizagem de como agir e pensar 11. Em contrapartida, a presença do cão ainda é um impasse nas questões sanitárias do acolhimento 12.

Um morador da região central de São Paulo comentou recentemente que “daqui a uns dias o controle de zoonoses vai ter que ir lá por causa de rato, barata, sujeira. Não tem água, e a luz foi puxada em um ‘gato’” 13. A presença de animais sinantrópicos coloca em risco a saúde dessa população, devido à superexposição ao problema; em contrapartida, animais domésticos compartilham do cenário (Figura 1), tomam a mesma água, comem a mesma comida e dormem nas mesmas “camas”, estabelecendo o conceito prático de sentinelas em saúde única.

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Figura 1 – Representatividade do compartilhamento dos mesmos cenários das pessoas em situação de rua e dos animais de companhia

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Pessoas sem teto, devido ao seu estado físico e a hábitos precários de higiene (falta de banho e/ou troca de vestuário), também podem estar expostas a infestação por piolhos (pediculose) e possíveis infecções relacionadas. A pediculose pode ser causada por três espécies de piolhos hematófagos, o Pediculus humanus humanus (piolho-do-corpo ou muquirana), Pediculus humanus capitis (piolho-da-cabeça) e Phthirus pubis (piolho-do-púbis ou chato) (Figura 2). O P. h. humanus é considerado o vetor competente de três microrganismos potencialmente letais (Rickettsia prowazekii, Bartonella quintana e Borrelia recurrentis) 14,15. Em consequência, a pediculose é relatada como uma doença negligenciada e importante para a saúde pública.

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Figura 2 – Piolhos que infestam seres humanos: Pediculus humanus capitis (piolho-da-cabeça), Pediculus humanus humanus (piolho-do-corpo) e Phthirus pubis (piolho-do-púbis)

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Ações multiprofissionais da medicina veterinária do coletivo com as secretarias de saúde e de assistência social já abordam pessoas em situação de rua com cães, tentando desmistificar o cão como impasse ao acolhimento e buscando entender a relação do animal como facilitador e instrumento para o suporte social. E foi nesse contexto que se iniciou a investigação da presença dos piolhos-do-corpo em Curitiba e em São Paulo. Em Curitiba, PR, um voluntário apresentando lesões pruriginosas e espécimes nas roupas (blusa e calças) foi abordado em uma praça central da cidade. Já em São Paulo, SP, a pesquisa se realizou em um abrigo, encontrando piolhos nas roupas de 2 de 5 usuários avaliados. Esses piolhos coletados foram identificados morfologicamente como P. h. humanus, demonstrando a infestação desses ectoparasitas em nossa população em situação de rua (Figura 3) 16.

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Figura 3 – Piolhos morfologicamente identificados como Pediculus humanus humanus encontrados em roupas de pessoas em situação de rua

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As populações vulneráveis, particularmente os moradores de rua, deveriam ser sempre monitoradas e passar por investigações continuadas de patógenos endêmicos e novos, por estarem mais expostas e suscetíveis sendo, portanto, sentinelas dessas doenças. A saúde única aborda de modo prático a importância da implementação de políticas públicas voltadas à saúde e ao acolhimento de populações vulneráveis, tendo o médico veterinário papel fundamental na articulação da saúde animal, ambiental e pública.

 

Referências

01-GAZETA DO POVO. Moradores de rua são acordados pela GM, que ainda confisca seus pertences. Gazeta do Povo. Curitiba, 2017. Disponível em: <http://www.tribunapr.com.br/noticias/curitiba-regiao/moradores-de-rua-sao-acordados-pela-gmque-ainda-confisca-seus-pertences/>.

02-CAVICCHIOLI, G. ; PORTAL R7. Políticas de Doria são higienistas e dificilmente vão mudar vida de morador de rua, dizem especialistas. Portal R7. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://noticias.r7.com/sao-paulo/politicas-de-doria-sao-higienistas-e-dificilmente-vao-mudar-vida-de-morador-de-rua-dizem-especialistas-14012017>.

03-OLIVEIRA SOBRINHO, A. S. São Paulo e a ideologia higienista entre os séculos XIX e XX: a utopia da civilidade. Sociologias, v. 15, n. 32, p. 210-235, 2013. doi: 10.1590/S1517-45222013000100009.

04-Council For International Organizations Of Medical Sciences – CIOMS. International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects. Geneva: CIOMS, 2002. 60 p. ISBN: 9290360755.

05-JAHAN, S. UNDP. Human development report 2016: human development for everyone. New York: United Nations Development Programme, 2017. 286 p. ISBN: 978-9211264135. Disponível em: <http://hdr.undp.org/sites/default/files/2016_human_development_report.pdf>.

06-CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cidadania nos presídios. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-eexecucao-penal/cidadania-nos-presidios>.

07-MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Política externa: refugiados e CONARE. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/paz-e-seguranca-internacionais/153-refugiados-e-o-conare>.

08-NATALINO, M. A. C. TD 2246 – Estimativa da população em situação de rua no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016.

09-BRASIL. Diálogos sobre a população em situação de rua no Brasil e na Europa: experiências do Distrito Federal, Paris e Londres. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2013. 188 p. ISBN: 978-8560877461.

10-GOMES, M. A. ; PEREIRA, M. L. D. Família em situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas públicas. Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 2, p. 357-363, 2005. doi: 10.1590/S1413-81232005000200013.

11-FARACO, C. B. Interação humano-animal. Ciência Veterinária nos Trópicos, v. 11, n. 1, p. 31-35, 2008.

12-GRAVINATTI, M. L. ; SOUZA, M. G. ; BIONDO, A. W. Consultório na rua atende moradores de rua e seus cães. Clínica Veterinária, ano XX, v. 115, p. 30-32, 2015. ISSN: 1413571-x.

13-REVISTA GALILEU. Políticas higienistas nas cidades podem apenas esconder problemas. Galileu, 2017. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2017/05/o-quevoce-faz-para-mudar-sua-cidade.html>.

14-LY, T. D. A. ; TOURÉ, Y. ; CALLOIX, C. ; BADIAGA, S. ; RAOULT, D. ; TISSOT-DUPONT, H. ; BROUGUI, P. ; GAUTRET, P. Changing demographics and prevalence of body lice among homeless persons, Marseille, France. Emerging Infectious Diseases, v. 23, n. 11, p. 1894-1897, 2017. doi: 10.3201/eid2311.170516.

15-FACCINI-MARTÍNEZ, Á. A. ; MÁRQUEZ, A. C. ; BRAVOESTUPIÑAN, D. M. ; CALIXTO, O. J. ; LÓPEZ-CASTILLO, C. A. ; BOTERO-GARCÍA, C. A. ; HIDALGO, M. ; CUERVO, C. Bartonella quintana and typhus group rickettsiae exposure among homeless persons, Bogotá, Colombia. Emerging Infectious Diseases, v. 23, n. 11, p. 1876-1879, 2017. doi: 10.3201/eid2311.170341.

16-GRAVINATTI, M. L. ; FACCINI-MARTÍNEZ, A. A. ; RUYS, S. R. ; TIMENETSKY, J. ; BIONDO, A. W. Preliminary reports of body lice infesting homeless people in Brazil. Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, v. 60, 2018. doi: 10.1590/S1678-994620186009.