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Vivência em medicina veterinária do coletivo

Inserção de graduandos de primeiro ano no Sistema Único de Saúde e em estratégias para o manejo populacional humanitário de cães e gatos

Matéria escrita por:

Ricardo Vilani, Rita de Cassia Maria Garcia

3 de nov de 2017


A saúde coletiva, campo de conhecimento interdisciplinar para a promoção da saúde dos indivíduos, famílias e comunidades, requer um aprendizado em termos “coletivos” que priorize as questões sociais, participativas e ambientais. Para tanto, as vivências dos graduandos, seja em disciplinas ou em estágios, é fundamental para aproximá-los da realidade socioeconômica das comunidades, bem como incentivar o pensamento crítico e a proatividade no encontro de soluções e no empoderamento dos indivíduos para que sejam promotores participativos da saúde.

O Sistema Único de Saúde (SUS), um dos maiores sistemas de saúde do mundo, ainda representa um grande desafio não apenas para os órgãos públicos de atenção à saúde, mas também para a academia. A inserção de graduandos, residentes e pós-graduandos nas práticas do SUS deve ser um compromisso fundamental das universidades para a caracterização de um novo espaço de aprendizagem, o cotidiano de trabalho dos serviços de saúde.

O novo projeto pedagógico do curso de medicina veterinária do Setor de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Paraná (UFPR) nasceu da necessidade de os graduandos se aproximarem das realidades sociais que enfrentarão quando formados, bem como de colocar os alunos em contato com as atividades médico-veterinárias logo no início de sua formação profissional. Em cada um dos seis eixos que compõem o curso – Ciências Básicas, Meio Ambiente e Qualidade de Vida, Produção Animal e Agronegócio, Saúde Pública e Alimentos, Ciências Clínicas e Diagnósticas e Doenças Transmissíveis, Sanidade de Rebanhos e Legislação Veterinária –, os alunos deverão participar no mínimo de uma disciplina com 72 horas baseadas em uma atividade profissional ligada a um projeto de extensão universitária.

Uma das disciplinas ofertadas no novo currículo foi a Vivência em Medicina Veterinária do Coletivo, que contou com a participação de seis alunos no primeiro semestre de 2017. A vivência envolveu as áreas da saúde, da assistência social e do meio ambiente, que se interligavam na grande área de saúde coletiva.

O trabalho de campo se iniciou pelo reconhecimento geográfico do território da Unidade de Saúde da Família (USF) Ana Nery, no Alto Tarumã, na cidade de Pinhais, PR. Na área da saúde, objetivou-se conhecer os equipamentos de saúde, compreender sua territorialização e como funciona a Estratégia Saúde da Família (ESF). As visitas ao território da USF objetivaram o diagnóstico da interação ser humano/animal e meio ambiente, o acompanhamento dos agentes comunitários (ACs) e a pesquisa sobre as interações ser humano/animal com os usuários da USF.

Segundo um dos alunos, “as visitas foram necessárias para o conhecimento dos tipos de problemas encontrados na comunidade e do que pode ser feito para que eles sejam resolvidos. Encontramos muitos animais nas ruas, sem dono acorrentados em guias curtíssimas e alguns até infestados de carrapatos. Essas visitas nos fizeram aprender a conversar e lidar com as pessoas, passar as informações que temos e tentar mostrar quais são os problemas que os proprietários precisam resolver”.

Outro estudante ainda mencionou que “as visitas ao centro de saúde foram importantes para conhecer um pouco da realidade daquela comunidade, tanto nos aspectos de saúde, com as demandas mais comuns, como nos aspectos social e educacional, já que os agentes de saúde com os quais conversamos e, que inclusive acompanhamos em visitas domiciliares são profundos conhecedores daquela população”.

A pesquisa com os usuários objetivou diagnóstico sobre o conhecimento da comunidade em relação às doenças transmitidas pelos animais e por meio de alimentos, além do conhecimento sobre a domiciliação e a castração dos animais de estimação e da avaliação da presença de roedores no interior do domicílio. Também foi questionada a presença de carrapatos nos cães, uma vez que os ACs relataram várias infestações de animais no território.

Como resultado desse diagnóstico, as escolas da região foram visitadas e avaliou-se a possibilidade de um projeto educativo. Pelo tempo exíguo de trabalho nesse primeiro semestre, resolveu-se que essa atividade seria desenvolvida pela próxima turma. Nos fechamentos dos trabalhos, os alunos também identificaram a necessidade de capacitação dos ACs.

Ainda na área da saúde, foi feita uma visita ao Centro de Vigilância em Saúde de Pinhais, onde se explicou o funcionamento da Vigilância Epidemiológica no município e se discutiram os principais agravos que acometem a população em geral.

Na Secretaria de Meio Ambiente de Pinhais foram desenvolvidas duas atividades: o atendimento de denúncias de maus-tratos aos animais junto à Seção de Defesa Animal (Sedea) e a participação na estimativa populacional de cães e gatos, com visitas casa a casa em um setor censitário amostrado. Essa última atividade faz parte do Programa de Manejo Populacional de Cães e Gatos de Pinhais.

Sobre essas atividades, a avaliação de outro acadêmico destacou que: “Também houve a realização de uma etapa da estimativa populacional de cães e gatos em Pinhais para fornecer dados para a avaliação da efetividade ou não dos programas. É importante conhecer as políticas públicas e o planejamento a médio e longo prazo para avaliar o seu impacto e a efetividade ou não dos programas realizados e apontar novas diretrizes, adaptações e melhores caminhos para esses programas”.

Em relação à assistência social, visitou-se o Centro de Referência à Assistência Social Oeste, de Pinhais. Com a assistente social responsável pelo equipamento discutiram-se os programas existentes e como as famílias em situação de vulnerabilidade têm acesso a eles. Uma dificuldade encontrada nesse serviço é o diagnóstico das famílias vulneráveis e que necessitam ser incluídas nos programas sociais. Nesse sentido, Pinhais provavelmente é a primeira cidade da América Latina a incluir como indicador de vulnerabilidade social os maus-tratos aos animais. Isso devido ao trabalho de mestrado realizado na UFPR junto à prefeitura de Pinhais em 2015 e 2016.

Dentro da universidade, no Setor de Ciências Agrárias, os alunos acompanharam a castração de animais na Unida de Móvel de Esterilização e Educação em Saúde (Umees) (Figura 1). Os alunos eram divididos em três grupos: pré, trans e pós-cirúrgico. No pré-cirúrgico, tiveram a oportunidade de acompanhar a avaliação clínica e aprender a introduzir cateteres intravenosos nos animais, aplicar injeções via subcutânea e intramuscular, conter os animais, acompanhar a aplicação do anestésico e seus efeitos, executar a raspagem de pelos e a pesagem. Alguns relataram que “o melhor momento da vivência foi aprender a canular os animais”.

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Figura 1 – Unidade Móvel de Esterilização e Educação em Saúde (Umees) em ação

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Sobre essa atividade uma aluna destacou: “O trabalho na Umees é fantástico… Jamais imaginei que teria a oportunidade de já no primeiro semestre canular um animal, aprender sobre manejo de cães (e ter uma aula ao vivo com um cão extremamente agressivo!) e assistir a uma cirurgia. Na Umees, a cada minuto aprendemos algo novo, desde como abrir uma gaiola de forma segura até como posicionar um animal caso ele esteja com dificuldades de respirar. Os três setores da Umees são fantásticos, mas do que mais gostei foi do pré-operatório. Aprendi a fazer exame clínico, auscultar, tosar, canular e algumas técnicas incríveis de manejo de gatos. Também aprendi a ministrar medicamentos. Apesar de ter executado todos esses procedimentos ao menos uma vez, gostaria de ter tido a oportunidade de praticar mais! O volume de animais, a velocidade com que os procedimentos precisavam ser executados e até mesmo o número de pessoas envolvidas foram fatores que impediram o melhor aproveitamento das ações. A presença de um professor ou residente calmo e experiente, principalmente no pré-operatório, também influenciou demais. Como aluna sem experiência, sem esse apoio talvez ficasse assustada com o ritmo de trabalho e me sentisse um pouco perdida”.

No transoperatório tiveram a oportunidade de aprender a abrir os materiais esterilizados para o cirurgião, identificar as áreas contaminadas e não contaminadas, fazer assepsia dos animais e auxiliar na entubação. Também puderam a oportunidade de observar as cirurgias de castração.

No pós-operatório os alunos aprenderam a limpar a ferida cirúrgica, fazer curativo, tirar o cateter, fazer uma roupinha para proteção dos pontos, aferir a temperatura e acompanhar o retorno do animal da anestesia.

“Nas outras etapas da Umees as experiências foram igualmente enriquecedoras… O pós-operatório também foi muito interessante e um pouco assustador! Aprendi a monitorar a temperatura dos animais, a fazer roupinhas … e a atendê-los enquanto eles acordavam. Também tive contato com tutores e aprendi a explicar as receitas.”

Alguns dos problemas encontrados durante a vivência: falta de transporte para as atividades de campo já programadas, excesso de alunos dentro da Umees quando a vivência coincidia com o Projeto de Extensão, desorganização da Umees (falta de materiais, o que atrasava o início das atividades) e protocolos anestésicos que foram se adequando no decorrer das ações.

Alguns pontos a melhorar citados pelos alunos se referiam à medicina de abrigos, para que fossem incluídos o manejo etológico de animais mantidos no campus e uma introdução sobre as áreas de atuação da MVC.

Os alunos relataram que não tinham muito expectativa em relação à disciplina, pois não sabiam ao certo como seria e nem o que era MVC. Alguns tinham uma ideia genérica vinculada à saúde pública e ao controle de zoonoses. A escolha da vivência se deu para que eles entendessem melhor do que se tratava. Abaixo estão relacionadas algumas opiniões sobre a vivência em medicina veterinária do coletivo.

“[Minha escolha foi feita] devido ao prévio conhecimento de algumas atividades desenvolvidas pela medicina veterinária do coletivo, como os programas de castração e a integração com atividades sociais e de saúde na comunidade.”

“Fico muito feliz de ter tido a oportunidade de participar da vivência. Os procedimentos de que participamos na Umees foram fantásticos, e muitas vezes eram a motivação da minha semana. Gostaria de ter tido tempo para aprender mais sobre Cras, Creas, Centro de Agravo e UVZ.”

“Apenas na última visita tivemos uma noção real de como a medicina veterinária se relaciona com o cenário socioeconômico de uma comunidade. O excesso de animais nas ruas, os maus-tratos, os casos de acumuladores não são apenas problemas, mais que isso, são sintomas sociais. E, como sintomas, devem ser analisados e tratados com uma abordagem global e abrangente. Órgãos da saúde, órgãos como a Secretaria do Meio Ambiente, Centro de Agravos e CRAS devem ter essa visão ampla e tentar coordenar seus esforços. Aprender um pouco mais sobre esses órgãos, sobre a teoria do elo e reconhecer o papel social do médico-veterinário foi muito motivador!”

“A vivência em MVC é excelente pois ensina muitas coisas importantes para a vida do médico-veterinário, e mostra como os animais são afetados diretamente por problemas sociais, além de revelar a complexidade dessa área, mesmo que ele não siga esse caminho.”

“Pudemos aprender muitas coisas na prática, mesmo estando no primeiro período…”

“Apesar de achar necessários alguns ajustes, a vivência superou minhas expectativas. Não esperava que pudéssemos participar de maneira tão ativa nas castrações. As visitas que fizemos às comunidades, principalmente quando acompanhamos as ACs, foram bastante impactantes.

Pude perceber que o problema social e ambiental é muito sério, e acredito que esse tipo de experiência pode nos fazer evoluir como pessoas e também ter um pensamento mais crítico em relação à importância do médico-veterinário na sociedade.”

“As atividades desenvolvidas na rotina da vivência foram superiores ao esperado, pois muitas delas eram desconhecidas por mim.”

“Pode ser um divisor de águas no que tange à carreira acadêmica e às convicções a esse respeito. Despertou o anseio de trabalhar nos meandros do sistema ou mesmo de buscar pela especialização na área contemplada.”

“A vivência em MVC mostra de forma prática, sem, contudo, deixar o conhecimento teórico de lado, uma área da medicina veterinária pouco conhecida, inclusive por profissionais. Num ambiente em que há crescente demanda da população por políticas públicas relacionadas às questões dos animais de rua e de abrigos, é de grande importância que a universidade se ocupe dessa realidade, antecipando questões que cada vez mais estarão presentes, apresentando um campo importante de trabalho para o futuro profissional veterinário, fomentando não somente o aperfeiçoamento de suas habilidades clínicas, mas o conhecimento holístico e abrangente que a MVC traz. Assim, o aluno pode desenvolver o pensamento, o planejamento e a execução dessas atividades, de forma a integralizar o aprendizado e contribuir como profissional responsável e capaz.”

A proposta inicial da disciplina envolveu atividades no campo junto à ESF ou ao meio ambiente, alternadas com as atividades da Umees. Ao ser solicitada uma proposta para a melhora da disciplina, os alunos recomendaram que as atividades no campo deveriam se concentrar na primeira metade da disciplina, com as visitas aos equipamentos de saúde, de assistência social e de meio ambiente. Paralelamente a isso, sugeriram que se identificasse uma demanda da comunidade para que se desenvolvesse um projeto nesse sentido. Em seguida, viriam as atividades de controle de natalidade da Umees (Figura 2).

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Aula Vivência
1 Vigilância epidemiológica: visita ao Centro de Vigilância em Saúde da Prefeitura de Pinhais
2 Vigilância sanitária: acompanhamento de vistorias em distritos de saúde de Curitiba, PR
3 Unidade de Vigilância em Zoonoses: visita à UVZ ou ao CCZ
4 Unidade de Saúde da Família: acompanhamento dos agentes comunitários. Diagnóstico e interação ser humano/animal/ambiente
5 Identificação de problemas e planejamento de intervenção na comunidade
6 Intervenção na comunidade
7 Intervenção na comunidade
8 Manejo populacional de cães e gatos (MPCG): visita à prefeitura de Pinhais, PR, para conhecer as estratégias para o MPCG
9 Acompanhamento de ações de MPCG: estimativa, registro e identificação, cães comunitários, acumuladores, cadastramento para castração
10 Desenvolvendo habilidades em manequins (métodos alternativos): aplicação de injeção subcutânea, intramuscular, endovenosa
11 Unidade Móvel de Esterilização e Educação em Saúde
12 Unidade Móvel de Esterilização e Educação em Saúde
13 Unidade Móvel de Esterilização e Educação em Saúde
14 Unidade Móvel de Esterilização e Educação em Saúde
15 Unidade Móvel de Esterilização e Educação em Saúde
16  Intervenção na comunidade
17  Intervenção na comunidade
18 Banca de avaliação: apresentação do trabalho final; avaliação da disciplina
Figura 2 – Atividades de controle de natalidade da Umees

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Como projeto final, os alunos fizeram dois panfletos: um sobre a MVC, para os alunos de graduação conhecerem melhor a área (Figura 3), e outro para os tutores que fazem uso dos serviços da Umees (Figura 4).

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Figura 3 – Folheto compartilhado com os alunos de graduação para entenderem as ações de saúde única

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Figura 4 – Folheto compartilhado com os tutores que fazem uso dos serviços da Umees

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Considerações finais

Houve uma apreensão inicial quanto ao desenvolvimento da disciplina e ao aprendizado, motivada principalmente pelo fato de os alunos não terem passado por aulas que dariam a base do conteúdo teórico para as vivências.

Mas a disciplina surpreendeu não apenas os alunos, mas também o professor envolvido e a coordenação do curso. O aprendizado dos conceitos básicos se deu na prática, nas experiências passadas em cada aula, discutindo casos, atendendo às dúvidas dos alunos e abordando aspectos teóricos, num processo de desconstrução das metodologias tradicionais de ensino e de superação de obstáculos para a sua operacionalização.

Essa estratégia de aprendizado gradual, com intervenções sociais, aproximou o graduando de abordagens interdisciplinares e o fez interagir com a complexidade da realidade social. A experiência pessoal, com enfrentamento de situações que podem causar estresse e angústia, favorece o crescimento e o desenvolvimento do pensamento crítico desses futuros profissionais. 

A disciplina de vivência permite que se repensem os métodos tradicionais de ensino, oferecendo aos graduandos a oportunidade de se aproximarem de realidades desconhecidas e de terem um entendimento holístico da interdisciplinaridade. Também, aproximando precocemente os discentes da realidade.

 

Agradecimentos

À Prefeitura de Pinhais e aos alunos da Vivência em Medicina Veterinária do Coletivo 2017/1 (Bianca Schimidt, Enrico Cunha, Helena Hammerschmidt, Julia Noronha, Lidiane Silva, Yasmin Santos).