Saguis – quando são fauna nativa ou espécie exótica invasora?
Apesar de nativos em várias regiões, os saguis invasores ameaçam a fauna nativa (principalmente aves) no Sul e no Sudeste brasileiros
Introdução
Os saguis ou calitriquídeos (Callithrix spp.) correspondem a seis espécies de ocorrência no Brasil de primatas neotropicais ou do Novo Mundo (Figura 1) 1,2. Apresentam distribuição natural e introduzida em diferentes biomas nacionais, como é o caso do sagui-de-tufos-brancos (Callithrix jacchus) e do sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) 1. Devido à crescente fragmentação e à perda do habitat natural, a maioria das espécies de saguis se encontram em estado vulnerável e ameaçadas, em razão também da invasão de seus parentes exóticos, resultado do comércio ilegal como animais de estimação e da soltura ou fuga, que tem impacto na saúde única 3-6.
Nome científico | Nome popular | Distribuição nativa | Distribuição exótica | Avaliação do risco de extinção | Principais ameaças | Referência |
Callithrix aurita | sagui-da-serra-escuro; sagui-caveirinha |
Bioma: Mata Atlântica Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo | Não há | Vulnerável (Minas Gerais e São Paulo); em perigo (Rio de Janeiro) |
Perda e fragmentação de habitat; competição e hibridação com espécies invasoras de saguis | 6 |
Callithrix flaviceps | sagui-da-serra | Bioma: Mata Atlântica Regiões de serra no Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro | Não há | Vulnerável (Global) considerada subespécie de Callithrix aurita | Perda e fragmentação de habitat; hibridação com o sagui-da-serra-escuro | 7 |
Callithrix geoffroyi | sagui-de-cara-branca | Bioma: Mata Atlântica Bahia, Espírito Santo e nordeste de Minas Gerais | Santa Catarina | Menos preocupante (Global) | Desconexão e redução de habitat devido a atividades agropecuárias, expansão da silvicultura, desmatamentos e assentamentos rurais | 8 |
Callithrix jacchus |
sagui-de-tufos brancos; |
Biomas: Caatinga e Mata Atlântica da Região Nordeste (Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Piauí); Bahia, Maranhão, Sergipe (origem incerta) | Espírito Santo, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo |
Menos preocupante (Global) | Perda e fragmentação de seu habitat; apanha e epidemias; hibridização com o sagui-de-tufos-pretos | 9 |
Callithrix kuhlii | sagui-de-wied | Bioma: Mata Atlântica – restrito ao sul da Bahia e nordeste de Minas Gerais |
Não há |
Em perigo (Minas Gerais); quase ameaçado (Global) |
Perda e fragmentação de seu habitat; hibridação com o sagui-de-tufos-pretos; apanha | 10 |
Callithrix penicillata | sagui-de-tufos-pretos; mico-estrela |
Biomas: Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica (Bahia, Distrito Federal Goiás, Mato Grosso do Sul, Mara- nhão, Minas Gerais, Piauí e São Paulo) | Espírito Santo, Paraná, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins |
Menos preocupante (Global) | Perda e fragmentação de habitat; apanha; caça; hibridação com o sagui-de-tufo-branco | 11 |
Avaliação do risco de extinção: avaliação estadual e/ou global (International Union for Conservation of Nature – IUCN)
Figura 1 – Principais espécies de calitriquídeos no Brasil
Principais características dos calitriquídeos
Em geral, os calitriquídeos têm hábitos diurnos, são arborícolas saltadores, com locomoção vertical entre os troncos de árvores, onde consomem seu exsudato (gomas e resinas), frutas, flores e brotos, néctar e insetos 1. Vale ressaltar que a denominação “sagui” não é exclusiva dessa família, visto que são chamados de “saguis” também os micos, os calimicos e os micos-leões-dourados 1,2.
De hábito onívoro oportunista, sua dieta inclui também pequenos vertebrados, ovos e filhotes de aves 1,13. São mamíferos de pequeno porte, com peso que varia de 300 a 450 g e comprimento médio de 25 cm entre a cabeça e o corpo e 28 cm de cauda não preênsil 1. Uma característica marcante é a presença de tufos, cristas e jubas com coloração variável entre as espécies do gênero, a exemplo do sagui-de-tufos-brancos e do sagui-de-tufos-pretos 1. São gregários, vivendo em grupos de 3 a 15 indivíduos que habitam determinada área e, portanto, compartilham as mesmas fontes de alimento 1. Diferentemente dos demais primatas, as gestações são gemelares e podem ocorrer durante todo o ano 1. Diferentemente também de outras espécies de mamíferos, as fêmeas podem amamentar com gestação simultânea, já que os níveis elevados de prolactina não inibem sua ovulação no puerpério, gerando um maior número de filhotes no decorrer do ano 1. A alta plasticidade ecológica auxilia na adaptação a diferentes ecossistemas 5. Espécies com alta densidade populacional e ampla distribuição no seu ambiente natural são, em geral, invasoras mais bem-sucedidas do que aquelas que ocupam naturalmente pequenas faixas com baixa densidade 5.
Devido à relação de proximidade entre os seres humanos e os primatas, aguçada pelo apreço, pela curiosidade, pelo uso como animais de companhia e pela experimentação, os saguis são introduzidos ou já estão estabelecidos nos mais variados ecossistemas nacionais 12.
O sagui-de-tufos-brancos e o sagui-de-tufos-pretos como espécies invasoras no Brasil
Apesar de não haver consenso sobre os limites da distribuição geográfica de cada espécie de calitriquídeo no Brasil, o sagui-de-tufos-brancos e o sagui-de-tufos-pretos são reconhecidos pela invasão em quase todos os estados das regiões Sudeste e Sul de nosso país, adaptados a fragmentos florestais e áreas extremamente antropizadas, como parques urbanos, praças, jardins e campi universitários desde os anos 1980 9,11-13. Trazidos pelo tráfico ilegal e comercializados ainda filhotes como animais de estimação, os saguis cresciam e se tornavam agressivos na fase adulta, sendo soltos em áreas em que não ocorriam originalmente 13.
Segundo a Convention on Biological Diversity (CBD – Convenção sobre Diversidade Biológica), uma espécie é dita exótica quando se situa em um local diferente daquele de distribuição natural; e considerada estabelecida se a espécie introduzida se reproduz e gera descendentes férteis e com alta probabilidade de sobreviver no novo habitat 14. Se a espécie estabelecida expande a sua distribuição no novo habitat e passa a ameaçar a biodiversidade nativa, ela é então considerada uma espécie exótica invasora 14,15.
As invasões biológicas são reconhecidas como a segunda maior causa direta de perda de biodiversidade e extinção de espécies, juntamente com a destruição de habitats por mudanças de uso na terra e alterações climáticas provocadas pela poluição 16. A invasão de espécies como a de calitriquídeos pode acarretar alterações no meio abiótico, na forma e na disponibilidade de nutrientes; e no meio biótico, pela competição, pela predação, pelo deslocamento de espécies nativas e pela hibridação 16,17.
O impacto dos saguis exóticos invasores na biodiversidade e o seu manejo populacional
O sagui-de-tufos-brancos é típico dos biomas Caatinga e Mata Atlântica, no Nordeste do Brasil, a leste do rio Parnaíba e ao norte do rio São Francisco, nos estados de Alagoas, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Piauí. Ocorre também na Bahia, no Maranhão e em Sergipe, com origem duvidosa 3,9. Essa espécie foi inserida em várias regiões do país, como, por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, em remanescentes florestais previamente designados para a conservação do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), considerado em perigo de extinção 9,18. Resultados de pesquisas nessa área mostraram que, em pouco tempo, a população de saguis já era superior à de micos, tornando-se uma ameaça para eles, devido à sobreposição com seu nicho ecológico, com competição por alimento em algumas épocas do ano, bem como alteração comportamental dos micos, que foram observados alimentando-se de goma de árvore obtida em goivas feitas pelos saguis 9,18. Outro exemplo ocorreu na Floresta da Tijuca, localizada na cidade do Rio de Janeiro, originalmente habitada por vários primatas não humanos, como o bugio (Alouatta guariba), muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides), macaco-prego-preto (Cebus nigritus), sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita), mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) e talvez por exemplares de sauá (Callicebus nigrifrons) e de sauá-de-cara-preta (Callicebus personatus). Com a introdução do sagui-de-tufos-brancos, essas espécies desapareceram, e híbridos de Callithrix e Cebus se tornaram abundantes (Figura 2) 19. Além disso, a formação de híbridos férteis a partir do cruzamento entre saguis exóticos e representantes nativos do mesmo gênero, como o sagui-da-serra-escuro, é uma ameaça para essas espécies puras, devido à perda de seu genótipo e de seus limites taxonômicos 20.
O sagui-de-tufos-pretos é a espécie de calitriquídeo com maior distribuição geográfica, especialmente no bioma Cerrado, no Centro-Oeste do Brasil, e também na Mata Atlântica e na Caatinga, nos estados da Bahia, no sudoeste do Piauí e no Maranhão e Rio Grande do Norte, em Minas Gerais, Goiás, porções de Mato Grosso do Sul, no Distrito Federal e no norte de São Paulo, como nativo. Sua distribuição alóctone é confirmada no Tocantins, Espírito Santo, Rio de Janeiro, em São Paulo, no Paraná e em Santa Catarina 4,11. Os saguis invasores competem por recursos e habitats com aves nativas, inclusive predando seus ovos e filhotes, e até mesmo aves adultas 21 (Figura 3).
Nas cidades, a sobrevivência dos saguis depende dos recursos disponibilizados de forma direta ou indireta pelos seres humanos, que contribuem para o seu aumento populacional, à medida que mantêm a capacidade de suporte do ambiente (Figura 4) 13.
Município | Resumo das notícias |
Bauru, SP (2010) 23 | Saguis-de-tufos-brancos e saguis-de-tufos-pretos provenientes do tráfico ilegal, com posterior soltura. Presentes em condomínios e parques, alimentados pela população. Pesquisas no Jardim Botânico de Bauru com ninhos artificiais de aves. Os ovos foram os alimentos preferenciais dos saguis residentes. |
Curitiba, PR (2013) 24 | No ano de 2013 havia a presença de 13 saguis-de-tufos-pretos em parque urbano, submetidos ao controle populacional pela castração. |
Florianópolis, SC (2009; 2019) 25 | Exemplares de saguis-de-tufos-pretos trazidos na década de 1960 pelo tráfico ilegal. Presentes em parques e áreas arborizadas, os saguis são alimentados pela população, que os mantém perto de suas casas. Casos de mordedura por saguis. Invadem as casas em busca de alimento. Competição com espécies nativas de primatas, como macacos-pregos, e também com aves. Preocupação de ambientalistas com o equilíbrio ecológico na ilha. |
Ilhabela, SP (2018) 26 | Levados para a ilha como animais de estimação e soltos em seguida, sendo alimentados pela população local e por turistas. Possível ataque de saguis a dois papagaios-moleiros (Amazona farinosa), espécie ameaçada de extinção. Estimativa de 250 saguis na data da reportagem. Mais de 80% da ilha corresponde a uma unidade de conservação de proteção integral, sem plano de manejo populacional para a espécie exótica. |
Maringá, PR (2019) 27 | Presença frequente de saguis-de-tufos-pretos e de saguis-de-tufos-brancos em árvores da área urbana, alimentados pela população. |
Rio de Janeiro, RJ (2007) 28-30 | Saguis-de-tufos-brancos ameaçam a existência de aves na área urbana do RJ desde 2007. Ao tentarem alimentar os saguis, três crianças foram atacadas no Parque Municipal Ecológico de Marapendi. Presença de saguis-de-tufos-brancos e de saguis-de-tufos-pretos no Aterro do Flamengo, área de lazer bastante frequentada do Rio de Janeiro. Preocupação com mordeduras de saguis e transmissão de doenças como raiva e hepatite. |
Santos, SP (2018) 31,32 | Presença de saguis em condomínio, alimentados com biscoitos pelos moradores. Três saguis foram encontrados mortos, e levantou-se a suspeita de raiva. |
Teresópolis, RJ (2011) 33 | Pesquisas realizadas na unidade de conservação Parque Nacional Serra dos Órgãos mostraram a presença de saguis-de-tufos-pretos e hibridação com saguis-da-serra-escuros, nativos do mesmo gênero e ameaçados de extinção, com consequente perda genética da espécie pura. |
Figura 4 – As cidades, seus parques e saguis exóticos
Mesmo em espaços antropizados, esses primatas competem por área de vida e recursos, principalmente com a avifauna nativa, sendo necessários seu manejo e controle populacional 12,13. Por exemplo, em Curitiba, no Paraná, uma parceria entre técnicos da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR) tem por objetivo erradicar a espécie dos parques e áreas verdes do município. O manejo consiste na captura dos animais, na avaliação clínico-sanitária no Hospital Veterinário da UFPR, principalmente para ocorrência de zoonoses, e na sua esterilização (machos e fêmeas), seguidas do alojamento gradativo em áreas do Zoológico Municipal (pequenas ilhas), com redução populacional e eliminação em médio prazo (Figura 5). O projeto conta também com ações educativas para a conscientização dos riscos ambientais e pessoais da manutenção desses exemplares invasores como animais de companhia e a redução da oferta de alimentos pelos seres humanos 12. Vale lembrar que, segundo a legislação brasileira, é proibido criar e comercializar os saguis como animais de companhia, pois são espécies da fauna silvestre brasileira com reconhecida capacidade adaptativa e invasora em diversos ecossistemas nacionais 22.
Impacto de saguis invasores na Saúde Única
Além dos fatores relacionados à perda de habitat e à sobreposição da ocorrência de espécies de calitriquídeos, diversos vírus, bactérias, fungos, helmintos e protozoários podem ser transmitidos entre os saguis e/ou atuarem como reservatórios. Dentre as enfermidades, destacam-se herpesvírus, raiva, hepatites virais, tuberculose, histoplasmose, criptococose e tripanossomíase. A toxoplasmose também tem relevância, uma vez que os primatas neotropicais apresentam hábitos arborícolas, considerados mais suscetíveis a infecção que os primatas do Velho Mundo. Assim, considerando a perda e a competição por novos habitats, os saguis podem ter maior contato com o solo, favorecendo a infecção com oocistos de Toxoplasma gondii presentes no ambiente 1.
Os saguis podem ser reservatórios de importantes arboviroses, como o vírus da febre amarela (Família Flaviviridae), podendo servir de fonte de infecção para vetores e outros primatas não humanos em áreas invadidas, uma vez que a taxa de letalidade é considerada baixa para o gênero Callithrix, diferentemente do que ocorre com os gêneros Alouatta e Ateles, que apresentam alta taxa de letalidade e são sentinelas 34.
O genoma do vírus Zika (Família Flaviviridae) foi detectado pela primeira vez no Brasil em 4/15 (26,6%) saguis (Callithrix jacchus) de vida livre do estado do Ceará, em área epidêmica para o vírus em 2016, um ano após sua identificação em seres humanos no ano de 2015 35. Após essa primeira detecção em primatas neotropicais, novas investigações no mesmo local revelaram a presença do vírus em 6/67 (8,9%) saguis-de-tufos-brancos 36. O vírus foi também detectado em 31/82 (37%) amostras de tecido de saguis (Callithrix sp) dos estados de São Paulo e Minas Gerais, evidenciando a dispersão do vírus nesses primatas 36. Além disso, 4 saguis-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata) foram infectados laboratorialmente e mantiveram a viremia após inoculação, demonstrando a potencial importância dos saguis no ciclo epidemiológico do vírus Zika, agindo como reservatórios do vírus 36.
Os saguis-de-tufos-brancos são reservatórios da raiva, zoonose considerada 100% letal causada pelo vírus da raiva (família Rhabdoviridae) 37. Uma nova variante do vírus da raiva sem relação genética ou antigênica com os vírus detectados em mamíferos terrestres e morcegos foi detectada apenas em saguis-de-tufos-brancos, apesar da existência de seis espécies de saguis no Brasil 38. Desde a década de 1980 o vírus rábico tem sido isolado de saguis-de-tufos-brancos nos estados do Nordeste brasileiro, com 59 casos registrados entre 1990 e 2016. Esses animais são considerados importantes transmissores da doença para os seres humanos 37,38.
Considerações finais
Os saguis são primatas neotropicais presentes no Brasil, com distribuição nativa e invasora em diferentes biomas e municípios, resultado do corrente tráfico ilegal e de mais de 30 anos de soltura. Estabelecidos em áreas naturais – como unidades de conservação – e urbanas arborizadas – como parques, condomínios e campi universitários –, os saguis invasores competem com outros primatas não humanos e predam a avifauna nativa, causando impacto na biodiversidade local.
Medidas de manejo e controle populacional têm sido realizadas em vários municípios do Brasil com o objetivo de castrar os saguis e realocá-los em áreas isoladas, com impacto limitado na biodiversidade. Apesar disso, os procedimentos de controle não têm surtido resultado, e, historicamente, a erradicação de uma espécie invasora não tem tido casos de sucesso. Portanto, além desses esforços, devem-se estabelecer ações educativas constantes, já que a população tem sido responsável pela sua permanência, à medida que os alimenta, que os almeja como animais de estimação e que procura o tráfico ilegal e a apanha na natureza para a sua obtenção. Além disso, os saguis devem ser monitorados como vigilância de diversas doenças infecciosas, especialmente zoonoses emergentes e reemergentes, uma vez que podem albergar agentes infecciosos ausentes nas regiões invadidas.
Apesar de numerosas em áreas de invasão, as populações de saguis-de-tufos-brancos e de saguis-de-tufos-pretos estão em declínio nas áreas de distribuição nativa, devido à fragmentação e perda de habitat e à apanha de exemplares, sendo necessário o estabelecimento de medidas para a conservação dessas espécies em área de ocorrência natural.
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