Rinha de cães em Mairiporã expõe a banalização da dor no entretenimento humano
O delegado Matheus Laiola, que deflagrou a ação, explica o que ainda precisa ser feito
O caso
No dia 14 de dezembro de 2019, a Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) da Polícia Civil do Paraná, em conjunto com o Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania (DPPC) de São Paulo, prendeu cerca de 40 pessoas em uma rinha internacional de cães que estava sendo realizada na cidade de Mairiporã, na Grande São Paulo. A competição contava com o apoio de um médico-veterinário que medicava os animais feridos a fim de reabilitá-los para que continuassem lutando. No local também foram apreendidos troféus e camisetas com a listagem das competições. A denúncia chegou até o delegado Matheus Laiola quatro meses antes, com a informação de que nesse dia aconteceria uma rinha de cães internacional, o 21º evento do tipo, da qual participariam inclusive pessoas vindas de outros países.
De acordo com a Polícia Civil, os suspeitos poderiam responder por associação criminosa, maus-tratos contra animais com agravante de morte e jogo de azar. Em nota, informou-se que a Polícia Civil de São Paulo, em parceria com a Delegacia de Proteção do Meio Ambiente da Polícia Civil do Paraná, prendeu na noite de sábado (14) 37 pessoas e desarticulou um evento de lutas clandestinas de cães em Mairiporã, região metropolitana de São Paulo. Os detidos foram autuados pelos crimes de maus-tratos a animais, resistência e contravenção penal de aposta em jogo de azar, além do crime de associação criminosa e formação de quadrilha e permaneceram à disposição da Justiça. A Polícia Civil esclarece que, se comprovada a participação de algum membro da instituição, adotará as medidas legais cabíveis 1.
Todos os envolvidos foram indiciados por associação criminosa, maus-tratos a animais com agravante de morte e jogo de azar. Apesar de todas as 41 pessoas terem sido imediatamente presas na ocasião, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) pediu prisão preventiva apenas do suspeito de organizar o evento de luta com cachorros da raça pitbull, além de reter os passaportes dos quatro estrangeiros e proibi-los de deixar o Brasil. A fiança paga pelos detidos variou de 2 a 60 salários mínimos. A soltura foi determinada porque eles eram réus primários e tinham residência fixa no país, segundo o juiz. “Em que pese o comportamento reprovável dos autuados, os fatos não são graves a ponto de justificar a decretação da prisão preventiva”, afirmou o juiz em sua decisão.
Entre os detidos que foram liberados estavam um médico-veterinário e um médico que, segundo a Polícia Civil, eram responsáveis por reanimar os cães feridos durante as lutas. O juiz determinou o envio dos termos de flagrante envolvendo os dois para os respectivos conselhos de Medicina e de Medicina Veterinária nos quais eles estão registrados.
Como desdobramento da ação, na tarde da segunda-feira (16/12/19) a Polícia Civil de Itu localizou uma chácara com 33 cachorros da raça pitbull, propriedade de um dos peruanos presos na operação que fechou a rinha em Mairiporã. Além disso, 5 cães da raça pitbull foram apreendidos na manhã de terça-feira (17/12/19) em um canil localizado no bairro de Guatupê, em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba. O canil pertencia ao criador dos cães encontrados na rinha de Mairiporã.
O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) enviou na quarta-feira (18/12/19) ofício recomendando a abertura imediata de processo ético-disciplinar contra o médico-veterinário servidor da Agência de Defesa Agropecuária e Florestal do Estado do Amazonas (Adaf-AM), preso em flagrante na rinha de cães em Mairiporã (SP), ao Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado do Amazonas (CRMV-AM).
Em nota 2, o CFMV lamentou profundamente a suspeita da participação de um médico-veterinário na quadrilha que promovia rinhas de cães no município de Mairiporã, SP, manifestando repúdio a todo e qualquer tipo de maus-tratos contra animais, crime previsto pela Lei Federal nº 9.605/98, e perplexidade com os fatos, desconhecendo as justificativas racionais para o envolvimento de um profissional da medicina veterinária em rinhas de cães. O CRMV-AM ressaltou que, de acordo com a Resolução nº 1.236/2018 do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) – cujo texto ressalta o dever do médico-veterinário de prevenir e evitar quaisquer atos que configurem crueldade, abuso e maus-tratos aos animais –, o profissional que comete esses atos ou é conivente com eles deve responder por falta ético-profissional.
As rinhas de cães no mundo
A rinha é uma luta entre cães especialmente criados ou treinados para esse fim – uma atividade milenar que hoje é considerada ilegal em muitos países do mundo. Na Ásia Central, a justificativa tem sido a seleção secular de cães guardiões de gado, como os da raça mastim, utilizados para proteger rebanhos de ovelhas contra ursos, lobos e outros predadores. Essas raças usavam colares especiais de proteção para o pescoço, e suas orelhas eram cortadas na inserção do pavilhão auricular, costume atualmente banido em muitos países e no Brasil proibido pela Resolução n. 1.027/2013 do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), que proíbe o corte estético de orelhas e rabo de cães e a retirada de unhas de gatos sem indicação clínica 3.
A Humane Society of the United States (HSUS) estima que mais de 40 mil pessoas em todo o país compram e vendem cães de briga e estão envolvidas em rinhas. Em agosto de 2013, a incursão de uma força-tarefa nos estados americanos do Mississípi, da Geórgia e do Alabama resultou na segunda maior ação de combate às rinhas de cães da história dos Estados Unidos, com 367 cães apreendidos 4. O juiz responsável pelo caso impôs severas sentenças a oito dos acusados, que variaram entre seis meses a oito anos de prisão, as mais longas decretadas em um caso federal de rinha de cães. Além disso, a Corte do Alabama ordenou que os acusados pagassem perto de U$ 2 milhões a grupos de bem-estar animal.
A Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente no Paraná
O delegado Matheus Araújo Laiola, natural do interior do estado de São Paulo, assumiu a Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente (DPMA) no dia 21 de janeiro de 2019. Na DPMA, o fluxo de investigação não se concentra nos poucos (cerca de 5 em média) boletins de ocorrência (BOs) diários, mas nas 30 denúncias que chegam todos os dias pelo telefone 181 (Disque Denúncia da Secretaria de Segurança) e pelo 156 (Disque Denúncia da Prefeitura de Curitiba), diferentemente do que ocorre em Delegacias de Furtos e Roubos (DFR) onde o volume diário pode chegar a centenas de BOs.
Com a utilização dos serviços de Disque Denúncia, a DPMA alcançou números nunca vistos: apreensão de quase 700 animais silvestres ou vítimas de maus-tratos (Curitiba e RMC), 110 pessoas presas e R$ 500 mil em multas, aplicadas pelos municípios ou pelo estado até outubro de 2019, menos de um ano após sua chegada.
O delegado dr. Matheus Laiola conta com o auxílio de médicos-veterinários residentes de Medicina Veterinária do Coletivo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele comenta que “é preciso termos médicos-veterinários capacitados e preparados para auxiliar no registro fotográfico e no preenchimento dos relatórios de vistoria e de possíveis maus-tratos, que podem ser utilizados como laudos futuramente pelo juiz do processo”. Em parceria, o delegado Laiola e docentes do Departamento de Medicina Veterinária da UFPR participam de videoconferências e trocam imagens e vídeos dos locais das vistorias, trazendo celeridade às ações.
Ainda em trâmite, o Projeto de Lei do Senado nº 650/2015 5, que dispõe sobre a proteção e a defesa do bem-estar dos animais, ressalta a importância e a demanda por profissionais médicos-veterinários especializados em medicina veterinária legal. Após capacitação, esses profissionais poderiam atuar na linha de frente das ações, para que um dia a medicina veterinária possa estar em sintonia com as leis e projetos de lei contra maus-tratos. Além disso, a medicina veterinária legal deveria fazer parte do currículo obrigatório, a fim de facilitar a inserção dos alunos de graduação e pós-graduação em ações junto às respectivas delegacias dos municípios.
Considerações finais
Faz-se necessária uma resolução que normatize as ações de vistoria de maus-tratos, estabeleça um guia para que os relatórios técnicos constituam laudos robustos e institua normas para a criação de instâncias municipais, estaduais e federal nessa área. Dessa forma, como diz o delegado dr. Matheus Laiola, “a ocorrência de maus-tratos se tornaria notificação obrigatória, sendo identificada pelo profissional médico-veterinário no cotidiano do seu atendimento”.
Referências
1-G1. Polícia civil do Paraná resgata 19 cães em rinha de SP; churrasco com carne de cachorro era servido. Curitiba: G1 PR, 2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2019/12/15/policia-civil-do-parana-resgata-19-caes-de-rinha-em-sp-churrasco-com-carne-de-cachorro-era-servido.ghtml>. Acesso em 21 de abril de 2020.
2-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Nota CRMV-AM: CRMV vai apurar fatos sobre médico-veterinário envolvido em rinha de cães em Mairiporã (SP). CFMV, 2019. Disponível em: <http://portal.cfmv.gov.br/noticia/index/id/6351/secao/6>. Acesso em 21 de abril de 2020.
3-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. Resolução nº 1027 de 10 de maio de 2013. Proíbe cirurgias estéticas desnecessárias em animais. CFMV, 2013.
4-THE HUMANE SOCIETY OF THE UNITED STATES. Multi-state dogfighting raid saves 367 dogs. Humane Society, 2013. Disponível em: <https://www.humanesociety.org/news/multi-state-dogfighting-raid-saves-367-dogs>. Acesso em 21 de abril de 2020.
5-HOFFMAN, G. Projeto de lei do senado nº 650, de 2015. Dispõe sobre a proteção e bem-estar dos animais e cria o Sistema Nacional de Proteção e Defesa do Bem-Estar dos Animais (SINAPRA) e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa do Bem-Estar dos Animais (CONAPRA). Senado Federal, 2015. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123360>. Acesso em 21 de abril de 2020.