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“Obri-gato”: Campanha para “obrigatoriedade” de gatos dentro de casa

A importância do clínico de pequenos animais nos cuidados preventivos contra a esporotricose

Créditos: Fernando Gonsales Créditos: Fernando Gonsales

Introdução

A esporotricose é uma doença fúngica causada pelo fungo do gênero Sporothrix. Essa doença que tem afetado principalmente gatos, pode também infectar outros animais e seres humanos, sendo considerada uma zoonose de importante relevância na saúde pública 1,2. No Brasil, sua ocorrência tem se expandido e afetado, principalmente, populações de gatos com acesso à rua, assumindo status de epidemia em diversas regiões 3,4. 

Dessa forma, a conscientização da população sobre os modos de transmissão, os sinais clínicos e as medidas preventivas se faz necessária para a eficaz contenção da esporotricose. A colaboração entre tutores de animais, médicos-veterinários e autoridades de saúde pública desempenha um papel crucial na redução da incidência de esporotricose e na minimização de seus impactos na saúde única 5.

O complexo de espécies Sporothrix schenckii pode ser encontrado em forma de esporos no ambiente, que corresponde às espécies S. schenckii sensu stricto, Sporothrix brasiliensis, Sporothrix luriei e Sporothrix globosa. A transmissão de S. schenckii e S. globosa tem sido associada a inoculação traumática por plantas contaminadas; a transmissão de S. brasiliensis tem sido associada a animais infectados; e a transmissão zoonótica, a arranhões e mordidas de gatos infectados. Outra forma de transmissão sugerida recentemente é por espirro de gatos infectados 6.

A esporotricose felina pode manifestar-se de diversas formas, variando desde a apresentação subclínica até múltiplas lesões cutâneas ulcerativas, podendo provocar comprometimento sistêmico, o que pode levar o animal a óbito 7. Em seres humanos, as lesões variam de cutâneas a disseminadas, sendo a cutânea linfática a mais comum, caracterizada por nódulos subcutâneos que seguem os vasos linfáticos, havendo a possibilidade de ulceração 8. Em casos de imunossupressão, a infecção pode se disseminar para órgãos internos, como pulmões, ossos e articulações, resultando em sintomas sistêmicos graves, como tosse, febre, artrite infecciosa e até mesmo óbito 9.

O diagnóstico da doença tem sido por critério clínico-epidemiológico e laboratorial. O método diagnóstico padrão-ouro é a cultura fúngica, sendo possível observar o fungo na sua fase filamentosa após cultivo. Na prática clínica veterinária, o exame direto por imprint de lesões tem sido amplamente utilizado, e possibilita observar as leveduras de Sporothrix, confirmando a suspeita. Outra técnica é o exame histopatológico a partir das biópsias das lesões, que permite a obtenção de informações adicionais sobre a extensão da infecção e a resposta inflamatória do hospedeiro. Além disso, há testes moleculares como a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) para detecção de DNA fúngico, que proporcionam um diagnóstico mais rápido em comparação com a cultura 10,11.

Para o tratamento em felinos, o antifúngico itraconazol é o medicamento de escolha, sendo administrado oralmente, e a duração do tratamento varia conforme a resposta clínica individual. Os cuidados terapêuticos devem ser associados a procedimentos de suporte, como a limpeza das lesões e o controle de infecções secundárias. Em seres humanos, o tratamento também é baseado no itraconazol, para as formas linfocutânea e cutânea fixa. Em casos mais graves ou disseminados, pode ser necessário o uso de anfotericina B, especialmente em pacientes imunossuprimidos. O tratamento deve ser continuado até a resolução completa das lesões e a confirmação laboratorial da negatividade para o fungo 12,13,14.

Uma das principais dificuldades no tratamento da esporotricose é a adesão ao regime terapêutico prolongado, pelo desafio da administração oral diária do fármaco e pelo custo total. Esses fatores podem levar a interrupções prematuras ou administração irregular dos medicamentos, aumentando o risco de resistência antifúngica 5,15.

Como medida adjunta de controle, o Paraná foi primeiro Estado do Brasil a incorporar no SUS o itraconazol para tratamento de animal infectado com a esporotricose, conforme a Nota Técnica Conjunta n° 6/2023. A entrega da medicação ocorre mediante apresentação da prescrição médica-veterinária, da cópia do documento de identificação do tutor, da cópia da ficha de notificação no Sinan Net e do Termo de Compromisso de guarda responsável devidamente assinado. Importante ressaltar que tanto casos em seres humanos quanto em animais são de notificação compulsória nos serviços de saúde públicos e privados de todo o Estado desde 2022 16.

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A melhor forma de prevenção da esporotricose e outras doenças felinas é manter o seu gato dentro de casa, sem acesso à rua e evitando o contato com gatos infectados. Créditos: Alexander Biondo

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Prevenção é a melhor solução

Embora seja a melhor opção, a prevenção e o controle dessa doença exigem um conjunto de medidas coordenadas que envolvem manejo adequado dos animais, práticas de biossegurança, educação da comunidade e vigilância epidemiológica 13.

A divulgação sobre os riscos de contaminação e sobre a evolução da doença e o incentivo à busca de atendimento médico profissional para o tratamento precoce devem estar amplamente implementados em programas de Atenção Primária à Saúde (APS). Médicos-veterinários, protetores independentes e tutores de animais estão sujeitos a contrair a doença a partir do contato direto com a forma fúngica leveduriforme do Sporothrix spp., que está presente nas lesões de pele, o que demanda cuidados específicos. Pessoas com atividades relacionadas ao solo e às plantas, como jardineiros e agricultores, também fazem parte do grupo de risco, pois podem se infectar com a forma leveduriforme do fungo que está vastamente distribuído pelo meio ambiente. Em função desses riscos, o uso de roupas com mangas compridas para manusear esse material e a boa higienização após a atividade são recomendados para sua prevenção 17.

O cuidado ao manipular gatos, especialmente aqueles com lesões suspeitas, é fundamental para prevenir a transmissão zoonótica da esporotricose. Os tutores devem usar luvas ao tratar gatos com esporotricose e, em caso de arranhaduras, mordidas ou contato direto com lesões cutâneas, deve-se lavar imediatamente a área afetada com sabão e água corrente. Em clínicas veterinárias e abrigos de animais, a implementação de equipamentos de proteção pessoal (EPI) e práticas de biossegurança, como desinfecção das instalações, é essencial para minimizar o risco de transmissão 4,17. Em relação ao manejo, uma das medidas mais eficazes para prevenir a esporotricose em gatos é restringir o acesso dos felinos ao ambiente externo. Gatos que têm acesso livre à rua são mais suscetíveis a contrair a infecção devido ao contato com solo, vegetação e outros materiais contaminados, além de predispor o contato direto com animais infectados 4,18.

Outro componente essencial na prevenção é o manejo adequado das populações de gatos errantes com programas de esterilização cirúrgica e controle populacional. As campanhas de castração devem ser combinadas com iniciativas de guarda responsável, incentivo à adoção de animais e conscientização sobre a problemática do abandono 18.

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Embora no Brasil envolva uma profunda mudança de costumes, a manutenção de gatos dentro de casa pode prevenir ainda a predação de aves e outros animais silvestres. Créditos: Alexander Biondo

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Outros cuidados importantes

O abandono de animas traz diversos prejuízos à vida animal, à saúde pública e ao equilíbrio ambiental. A ocorrência de doenças como a esporotricose potencializa ainda mais os agravos decorrentes desse contexto. O abandono é crime nacional (Lei Federal 9.605/98) e não deve acontecer em nenhuma condição 15.

A educação dos tutores de animais sobre a importância da identificação precoce dos sinais clínicos da esporotricose e a busca imediata de atendimento veterinário são determinantes. Lesões de pele, especialmente na face, patas e cauda, além de abaulamento nasal, devem ser prontamente investigados pelo clínico veterinário 2,14. Todo animal diagnosticado e sob tratamento deve ser mantido em isolamento, visto que é uma fonte de infecção para outros animais e pessoas. Felinos infectados e curados não apresentam imunidade para a doença, podendo se infectar novamente e perpetuar o ciclo. A recidiva e o óbito também têm sido relatados devido a tratamento inadequado, interrompido ou refratário 19,20.

A desinfecção regular de ambientes onde gatos infectados residem é necessária para controlar a propagação do fungo. Soluções fungicidas devem ser utilizadas para limpar superfícies, utensílios e áreas de convivência dos animais, e a remoção de material orgânico contaminado, como solos e vegetação também é recomendada 11.

Em casos de óbito de animais positivos ou suspeitos para esporotricose, a recomendação é a cremação do cadáver. Esses animais jamais devem ser enterrados, jogados em lixos ou rios, e essa medida tem como objetivo evitar a contaminação ambiental com o fungo Sporothrix spp. e a consequente continuidade do ciclo epidemiológico 21.

A vigilância epidemiológica e o monitoramento contínuo dos casos de esporotricose são fundamentais para entender a dinâmica da doença e desenvolver estratégias de controle. As autoridades de saúde pública devem manter registros precisos e atualizados dos casos, além de promover campanhas de conscientização para informar a população sobre os riscos e quais medidas preventivas adotar. Todo cidadão que suspeitar de algum caso de esporotricose deve entrar em contato com o órgão responsável de seu município junto à Vigilância Municipal de Saúde. Para as regiões que têm a esporotricose como notificação compulsória, ela deve ser realizada em até 24 horas a partir da suspeita e/ou confirmação do caso 18,22. Para isso, os órgãos de saúde dependem da colaboração tanto dos cidadãos quanto, principalmente, de clínicos veterinários para a notificação dos casos.

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Créditos: Fernando Gonsales

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Considerações finais

A prevenção e o controle da esporotricose requerem esforço coordenado entre tutores de cães e de gatos, médicos-veterinários e autoridades de saúde pública. A implementação de práticas de manejo adequadas, a educação em saúde continuada da comunidade e a adesão a medidas de biossegurança são indispensáveis para reduzir a incidência da doença e manter o equilíbrio da saúde única 1,4.

A atual epidemia de esporotricose possui ampla distribuição geográfica no Brasil, com expansão territorial e apresentação de acentuado aumento da ocorrência da doença humana e animal. Conhecendo a complexidade da interação de sua tríade epidemiológica, ressalta-se a necessidade de intervenções de diferentes grupos e órgãos públicos. Todos os indivíduos possuem um papel importante na prevenção da esporotricose e podem contribuir para seu controle 3,5.

O clínico de pequenos animais desempenha papel fundamental na saúde única, sendo a linha de frente para o correto diagnóstico da esporotricose felina, a prescrição da medicação, a notificação e o acompanhamento dos casos, como também para as medidas de prevenção. Somente com a mudança de hábitos de tutores para manter seus gatos saudáveis dentro de casa poderemos controlar e prevenir a esporotricose e outras doenças importantes.

 

Referências 

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02-GREMIÃO, I. D. F. et al. Zoonotic epidemic of sporotrichosis: cat to human transmission. PLoS Pathogens, v. 13, n. 1, p. e1006077, 2017.

03-GREMIÃO, I. D. F. et al. Geographic expansion of sporotrichosis, Brazil. Emerging Infectious Diseases, v. 26, n. 3, p. 621, 2020.

04-ALVAREZ, C. M. ; OLIVEIRA, M. M. E. ; PIRES, R. H. Sporotrichosis: a review of a neglected disease in the last 50 years in Brazil. Microorganisms, v. 10, n. 11, p. 2152, 2022.

05-ROSSOW, J. A. et al. A one health approach to combatting Sporothrix brasiliensis: narrative review of an emerging zoonotic fungal pathogen in South America. Journal of Fungi, v. 6, n. 4, p. 247, 2020.

06-DOS SANTOS, A. R. et al. Emergence of zoonotic sporotrichosis in Brazil: a genomic epidemiology study. The Lancet Microbe, v. 5, n. 3, e. 282-290.  Doi: 10.1016/S2666-5247(23)00364-6

07-SCHUBACH. A. Sporotrichosis. In: Greene, C. E. Infectious diseases of the dog and cat-E-Book. St. Louis: Elsevier Health Sciences; 2013. 1376.

08-CHAKRABARTI, . et al. Global epidemiology of sporotrichosis. Sabouraudia, v. 53, n. 1, p. 3-14, 2014.

09-FALCÃO, E. M. M. et al. Hospitalizações e óbitos relacionados à esporotricose no Brasil (1992-2015). Cadernos de Saúde Pública, v. 35, p. e00109218, 2019.

10-RODRIGUES, A. M. et al. Current progress on epidemiology, diagnosis, and treatment of sporotrichosis and their future trends. Journal of Fungi, v. 8, n. 8, p. 776, 2022.

11-OROFINO-COSTA, R. et al. Human sporotrichosis: recommendations from the Brazilian Society of Dermatology for the clinical, diagnostic and therapeutic management. Anais Brasileiros de Dermatologia, v. 97, p. 757-777, 2022.

12-DE LIMA BARROS, M. B. et al. Treatment of cutaneous sporotrichosis with itraconazole – study of 645 patients. Clinical Infectious Diseases, v. 52, n. 12, p. e200-e206, 2011.

13-GREMIÃO, I. D. F. et al. Guideline for the management of feline sporotrichosis caused by Sporothrix brasiliensis and literature revision. Brazilian journal of Microbiology, v. 52, p. 107-124, 2021.

14-DE SOUZA, E. W. et al. Clinical features, fungal load, coinfections, histological skin changes, and itraconazole treatment response of cats with sporotrichosis caused by Sporothrix brasiliensis. Scientific Reports, v. 8, n. 1, p. 9074, 2018.

15-BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências.

16-BRASIL. Secretaria da Saúde do Paraná. Diretoria de Atenção e Vigilância em Saúde. Coordenadoria de Vigilância Ambiental. Divisão de Vigilância de Zoonoses e Intoxicações. Nota Técnica Conjunta nº 6/2023–DAV/CVIA/DVVZI e CEMEPAR. Disponível em: <https://www.documentador.pr.gov.br/documentador/pub.do?action=d&uuid=@gtf-escriba-sesa@fc279c5f-a1f3-481d-975e-1994467f0353&emPg=true>

17-Barros, M. B. et al. Esporotricose. In: Coura, J. R. Dinâmica das doenças infecciosas e parasitárias. 2nd ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan (2013)

18-Gremião, I. D. F. ; Miranda, L. H. M. ; Pereira-Oliveira, G. R. ; Menezes, R. C. ; Machado, A. C. S. ; Rodrigues, A. M. ; Pereira, S. A. Advances and challenges in the management of feline sporotrichosis. Rev Iberoam Micol, 2022

19-PARANÁ – Agência Estadual de Notícias. Governo do Estado. Paraná é o primeiro estado a oferecer medicamento para tratar animais com esporotricose. Paraná, 06 de julho de 2023. Disponível em: <https://www.aen.pr.gov.br/Noticia/Parana-e-o-primeiro-estado-oferecer-medicamento-para-tratar-animais-com-esporotricose>

20-GREMIÃO, I. D. F. et al. Guideline for the management of feline sporotrichosis caused by Sporothrix brasiliensis and literature revision. Brazilian journal of Microbiology, v. 52, p. 107-124, 2021. Disponível em: <https://link.springer.com/article/10.1007/s42770-020-00365-3>

21-BRASIL. Ministério da Sáude. Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente. Departamento de Doenças Transmissíveis. Nota Técnica nº60/2023-CGZV/DEDT/SVSA/MS.

22-BRASIL, Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria nº 264, de 17 de fevereiro de 2020. Altera a Portaria de consolidação nº 4/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir a doença de Chagas crônica, na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional.