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O que mudou nos abrigos animais nos Estados Unidos durante a pandemia de Covid-19 e o que podemos aproveitar para o Brasil

O que podemos aproveitar para o Brasil

Cirurgias de esterilização realizadas no abrigo Portland Animal Shelter.  Créditos: Jyothi Robertson Cirurgias de esterilização realizadas no abrigo Portland Animal Shelter. Créditos: Jyothi Robertson

Introdução

As informações aqui discutidas foram parte da apresentação feita pela dra. Jyothi Robertson durante a XXIII Semana Acadêmica de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Viçosa, realizada de forma remota em novembro de 2021 1.

A dra. Jyothi Robertson é médica-veterinária especialista em medicina de abrigos (shelter medicine), também recentemente reconhecida no Brasil como medicina veterinária do coletivo. Com mais de 15 anos de prática na área, ela foi diretora da organização Oakland Animal Services (OAS), na Califórnia, sendo hoje a proprietária e a principal consultora da empresa JRV Shelter Strategies, especializada em medicina de abrigos, localizada em San Francisco, Califórnia. Além disso, há quase dez anos a dra. Jyothi é também membro do Comitê de Bem-estar Animal da American Veterinary Medical Association (AVMA), da qual recentemente se tornou presidente.

 

Medicina de abrigos nos Estados Unidos

As mudanças decorrentes da pandemia de Covid-19 também impactaram a organização dos abrigos dos Estados Unidos. Foram criados novos abrigos administrados pelo governo, e aumentou o número de municípios e condados maiores dotados de abrigo para animais. Esses abrigos fornecem serviços de controle e proteção de animais, o que significa que têm autoridade para aplicar multas. Se um animal de um tutor for resgatado das ruas, o abrigo pode emitir uma multa para esse tutor. Se o animal for perigoso, será recolhido e mantido no abrigo. Eles também podem resgatar animais selvagens, dependendo de acordos com o município 1.

Nos últimos 30 anos, houve um aumento do número de abrigos administrados pelo governo nos Estados Unidos, que oferecem programas de educação em guarda responsável, de adoções, de voluntariado, de esterilização a baixo custo e de bem-estar animal.

Além disso, há parcerias público-privadas com entidades sem fins lucrativos associadas a municípios, diferentemente do que ocorre no Brasil, em que elas podem ter um diretor executivo e arrecadar fundos. Há também agências com estrutura física e sem fins lucrativos, que proporcionam cuidados de saúde para os animais a baixo custo. Além disso, há organizações que se dedicam ao resgate e às adoções, sem abrigo físico, baseadas em lares temporários.

O número exato de abrigos e organizações para resgate e adoções é desconhecido nos Estados Unidos. Alguns estudos sugerem que existem entre 4 mil e 6 mil, e que diferem entre si na estrutura física e na filosofia. Alguns deles fazem parte do movimento conhecido como Não Matar (No-kill Shelters), desenvolvido por Maddie’s Fund, Best Friends Animal Society, American Pets Alive, Rich Avanzino e o No-Kill Advocacy Center. Nesses abrigos, ao menos 90% dos animais clinicamente tratáveis e sem alterações de comportamento são liberados vivos, e esse percentual tende a aumentar. Com os avanços da medicina veterinária de abrigo, tem-se salvado cada vez mais animais. Como contraponto, essa filosofia pode levar à manutenção de animais nos abrigos por longos períodos e à adoção de cães com histórico de mordedura e com doença crônica e de difícil tratamento.

Em resposta ao No-kill, outro movimento surgiu cerca de 5 a 10 anos atrás, o chamado “abrigo socialmente consciente”, que baseia a tomada de atitudes em cada realidade, equilibrando os princípios do No-kill com a segurança pública. E ainda há outras iniciativas, como a Compaixão Salva, filosofia usada por um abrigo no estado da Califórnia, por exemplo, que surgiu contrapondo-se aos defensores do No-kill, ao se comprometer a agir com compaixão, realizando a eutanásia no menor número possível de animais.

 

A mudanças nos abrigos decorrentes da pandemia de Covid-19

Com a pandemia, as reuniões presenciais se tornaram remotas, incluindo as da American Veterinary Medical Association (AVMA). Alguns abrigos tiveram que ser completamente esvaziados. E assim, da noite para o dia, os animais foram todos transferidos para lares temporários, o que era inimaginável antes da pandemia. Isso incluiu animais com alta adotabilidade, mas também outros que tinham problemas de saúde e até mesmo de comportamento.

Todos os serviços veterinários não emergenciais foram interrompidos. Apesar disso, o que se notou também foi que as pessoas passaram a pensar com mais frequência que aquele seria o momento ideal para ter um animal de companhia.

Começaram a ser vistas filas para adoção como nunca anteriormente. Em um abrigo em Oakland havia tanta demanda por animais que não foi possível atendê-la, e então as pessoas começaram a recorrer a adoções virtuais de grupos como Puppy Spot, Good Dog e também criadores de cães de raça. Seguiu-se uma mudança nas estatísticas dos abrigos e na maneira de cuidar dos animais. A Pet Health Inc., possui o Pet Point e o Chameleon, os dois maiores bancos de dados de abrigos nos Estados Unidos, com um sistema específico de software de abrigo, e os dados obtidos foram provenientes de mais de 1.190 abrigos, os mais importantes dos Estados Unidos, que utilizam esse software para mais de 327 mil animais, entre 13 de março e 19 de junho de 2020, no início do lockdown nos Estados Unidos. Inicialmente, houve um grande aumento de lares temporários e redução nas adoções. Então, os médicos-veterinários de abrigo do país se uniram para analisar a situação e discutir o que fazer com os animais.

A primeira área segmentada examinada foi a cidade de Nova York, onde havia um número altíssimo de infectados e de pessoas entrando em óbito devido à Covid, muitas das quais tinham animais de companhia que foram levados para abrigos. Havia também a preocupação inicial de que os gatos poderiam se infectar com SARS-CoV-2 e transmiti-la para os seres humanos. Dessa forma, parecia necessário o uso de equipamento de proteção individual durante o cuidado com os animais. Cerca de 400 a 500 pessoas por semana debatiam virtualmente nas reuniões de zoom com diretores de abrigos de todo o país a logística do cuidado dos animais, criando um novo modelo de abrigo, os Serviços de Suporte Humano e Animal, que foram baseados na America Pets Alive!, com mais de 1.400 organizações diferentes e centenas de colaboradores repensando o que são os abrigos nos Estados Unidos.

 

Sala de preparo pré-operatório do abrigo San Francisco Animal Shelter. Créditos: Jyothi Robertson

 

Hass – Serviços de Suporte Humano-animal

A organização Hass (Human Animal Support Services) tem 11 elementos principais 2. O primeiro conceito, que é um elemento central, é a reunificação do animal de companhia perdido com seu tutor. O principal papel dos abrigos é resgatar animais de rua. Quando alguém perde um animal, a população estadunidense sabe que deve ir ao abrigo de animais local para procurá-lo. O grande desafio é o animal de estimação ser devolvido a seus tutores sem nunca entrar na própria estrutura física do abrigo. Um exemplo seria levar o animal perdido pela vizinhança para encontrar seu tutor, em vez de dirigi-lo ao abrigo e mantê-lo ali por dias até que o tutor o procure. E isso é extremamente importante, especialmente com gatos, pelo fato de esses animais vagarem bastante e seus tutores nem sempre procurarem por eles rapidamente. A partir dessa análise o sistema dos Hass foi repensado buscando seu aprimoramento.

O próximo passo foi determinar que tipos de serviços podem ser oferecidos para que os animais de estimação não sejam expostos a sofrimentos relacionados à separação, ou seja, para que os tutores possam mantê-los em vez de entregá-los aos abrigos. Nesse contexto, algumas das principais preocupações são os suportes clínico e comportamental. Por exemplo, nos serviços de habitação no estado da Carolina do Norte, um dos grandes problemas há alguns anos era que os cães saíam de casa pela falta de cercas. Então, um grupo chamado Unchain Dog Coalition auxiliou os tutores a construírem, sem custos, cercas para que pudessem manter seus cães em casa.

O Programa de Medicina Veterinária de Abrigo da UC Davis, onde a dra. Jyothi fez sua residência, vem planejando estratégias para animais em risco há cerca de 20 anos, para que reduzam sua permanência até a adoção e não adoeçam. O papel do abrigo no apoio profissional e como um centro de adoção vem sendo avaliado, considerando ainda os serviços de campo de controle de animais e a aplicação de multas, bem como se os abrigos deveriam estar envolvidos em adoções ou talvez apenas dar assistência médica para quem não pode pagar por ela e garantir a segurança em caso de mordeduras e zoonoses.

No passado havia tensão entre consultórios veterinários privados e veterinários de abrigo, pelo fato de todos prestarem serviços veterinários. Apesar de todos serem licenciados, os médicos-veterinários particulares temiam que os veterinários de abrigo pudessem tirar seus clientes fornecendo serviços gratuitos ou de baixo custo, e também que talvez os serviços prestados nos abrigos não fornecessem um atendimento de alta qualidade como o particular, e essa tensão levou à redução das parcerias. Durante a pandemia de Covid-19 isso realmente mudou, porque os veterinários particulares se envolveram mais com os animais que estavam sendo adotados.

No modelo centrado em adoção, os colaboradores, médicos-veterinários ou não, foram muito importantes, oferecendo lares temporários. Além disso, as consultas por telemedicina também se popularizaram na medicina veterinária.

A organização Hass foi importante nessa mudança na forma de pensar os abrigos, a partir de março de 2020, e que continua acontecendo.

 

Diversidade, equidade e inclusão

Nos Estados Unidos ocorreu uma mudança na maneira de pensar a diversidade, a equidade e a inclusão. Durante a pandemia de Covid houve o assassinato de George Floyd, divulgado nas notícias, e esse acontecimento ocasionou uma mudança na forma como eram vistas a diversidade e as tensões raciais, provocando uma reflexão a respeito das estruturas sociais. Repensou-se a diversidade nas organizações, as funções que incluem ou não populações diversas e até mesmo os comitês de bem-estar animal: se eram diversos e se correspondiam às comunidades que pretendiam servir.

Nessa análise, o que se viu foi que não havia diversidade entre os próprios veterinários. Observou-se que o número predominante de pessoas em abrigos de animais tende a ser de mulheres brancas de meia-idade, ao passo que na atuação da medicina veterinária encontram-se mais homens brancos de meia-idade ou idosos. Desse modo, as diversas comunidades que existem nos Estados Unidos não estavam bem representadas.

Buscou-se uma reflexão sobre que políticas poderiam mudar nos abrigos para que fosse possível repensar a forma como as comunidades eram vistas. Um ponto muito importante foi a transferência de animais. Nos Estados Unidos, a mudança de local tem sido muito importante, sendo os animais transportados de áreas periféricas, com poucos recursos, para áreas de população com mais privilégios e recursos. Um dos pontos importantes questionados foi a validade de levar esses cães para longe de comunidades sem recursos, sendo que se poderia educar essas comunidades para que os animais fossem adotados ali, evitando sua transferência.

Surgiram várias organizações, incluindo os Companheiros e Animais para a Reforma da Equidade (Care), que têm aberto centros de atendimento em todo o país para que as próprias comunidades carentes cuidem de seus animais. Foi criada a Associação Médica e Veterinária Multicultural, e há também a rede BlackDVM, a PrideDVM e muitos outros grupos DEI (diversity, equity, and inclusion), que têm realizado conferências sobre diversidade, equidade, inclusão, justiça e pertencimento 3. Nos Estados Unidos, questionar e repensar os processos dentro da estrutura de um único sistema de saúde e um sistema DEI é pensar na saúde dos seres humanos e dos animais de estimação, e elevá-los ao mesmo patamar.

 

Direito de conviver com animais de estimação

Uma conversa sobre cuidados veterinários em 2018 resultou em uma aliança de acesso a cuidados veterinários que proporcionou a consulta ao relatório de cuidados veterinários, com resultados estatísticos de toda essa comunidade. Os membros da comunidade recebem financiamento instantâneo e viabilizam um programa nutricional suplementar para aqueles que estão abaixo da linha da pobreza nos Estados Unidos.

Menos de 50% dos veterinários consultados em uma pesquisa realizada em 2018 acreditavam que a sociedade tinha a responsabilidade de ajudar as pessoas menos favorecidas e seus animais de estimação. Aparentemente, muitos veterinários acreditavam que conviver com um animal de estimação era um privilégio, não um direito, e que nem todo mundo deveria poder ter essa experiência. Isso foi considerado preocupante, pois a saúde geral das comunidades nos Estados Unidos tem base nessa relação, no vínculo entre ser humano e animal, ou seja, no vínculo familiar do animal de estimação.

Diversos estudos têm mostrado que quando as pessoas têm animais de companhia, quando têm essa relação com os animais, elas são mais saudáveis. As pessoas são mais propensas a cuidar da saúde cardiovascular e têm melhor saúde neurológica. Criar esse vínculo e olhar para a comunidade de um ponto de vista de saúde e vínculo familiares em seus relacionamentos resulta, de modo geral, na elevação da saúde da comunidade. Quando os veterinários não acreditam que todas as pessoas deveriam poder conviver com um animal de estimação e que é uma responsabilidade social ajudar os mais necessitados e seus animais de estimação, isso mostra à comunidade a maneira como se pensa a saúde em geral.

Durante a pandemia de Covid, a dra. Jyothi foi convidada a fazer um estudo nacional para a Meals on Wheels America (MWA), a maior organização dos Estados Unidos a fornecer alimentos para pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza e passam fome, muitas dos quais são idosas. Coletaram-se dados acerca das necessidades dessas pessoas e de seus animais de estimação, muitos deles idosos, que viviam em casa e recebiam essas refeições. A razão pela qual a Meals on Wheels America considerou isso tão importante foi porque se descobriu que se forneciam refeições para pessoas que não tinham dinheiro suficiente para comprar alimento para si mesmas, e essas pessoas davam boa parte de sua refeição ou até toda ela para seus animais de estimação.

Portanto, a Meals and Wheels não estava sendo capaz de cumprir sua missão, porque, em vez de utilizar o alimento para si mesmos, esses tutores o davam para seus animais de estimação, em razão do forte vínculo familiar que tinham com eles. O estudo mostrou algo muito semelhante ao estudo de acesso a cuidados veterinários de 2018, que verificou que muitas pessoas não puderam receber cuidados preventivos porque estavam isoladas em casa. O custo era a primeira barreira, mas o transporte também constituía um empecilho para o recebimento de cuidados. O custo e o transporte foram comparados em 2018 e novamente em 2020.

A partir dessa análise, a maneira como se pensam os abrigos, a medicina de abrigo e o acesso a cuidados e ao conceito de One Health (Saúde Única) vem sofrendo modificações. Uma vez que nos Estados Unidos são os abrigos de animais que fornecem serviços veterinários de baixo custo e não os médicosveterinários particulares, o relacionamento dos abrigos com a comunidade e o fornecimento de serviços vêm sendo repensados.

 

Alojamento de gatos do abrigo Los Angeles Animal Shelter. Créditos: Jyothi Robertson

 

Estresse de veterinários nos Estados Unidos

Durante a pandemia de Covid-19, o número de pessoas que passaram a cuidar de animais de estimação aumentou muito, assim como o volume da procura de serviços veterinários, cujos profissionais estão hoje em dia sobrecarregados. Apenas animais em situações de emergência vêm sendo atendidos em função dessa grande busca de serviços. Mesmo assim, muitos animais de estimação acabaram morrendo porque seus tutores não conseguiram entrar em hospitais veterinários de emergência, pelo fato de estarem lotados. Observou-se uma insuficiência na quantidade de veterinários. Parte disso decorre do pequeno número de escolas de veterinária, mas também da dívida que os graduados enfrentam. Dados de 2020 da American Veterinary Medical Association mostram que a dívida deles gira em torno de U$160.000, incompatível com os salários que recebem nesse momento da carreira. A carga da dívida é tão alta que os veterinários nos Estados Unidos têm a maior taxa de suicídio de qualquer profissão, mais alta que a dos dentistas e dos médicos. Para pessoas que ingressam na medicina veterinária, a taxa de suicídio até aumentou em 2020 quando comparada à de 2019. Essa é uma enorme preocupação nesse setor profissional.

 

Considerações finais

Atualmente o número de animais disponíveis para a adoção é menor, em função do menor número recebido nos abrigos. Ao mesmo tempo, o número de animais entregues aos abrigos pelos tutores tem diminuído. Esses eventos, considerados como oportunidades, estão mudando os abrigos, redefinindo o que se considera um serviço à comunidade. Hoje em dia vem-se analisando o fornecimento de serviços de treinamento comportamental para que os tutores possam manter seus animais de estimação em casa, além de serviços veterinários gratuitos ou de baixo custo que auxiliem os tutores e da construção de parcerias a fim de reavaliar o público-alvo das ações.

Hoje os esforços nos abrigos se concentram nas necessidades médico-veterinárias, nas necessidades comportamentais e naqueles que estão pensando em entregar seus animais a um abrigo. Além disso, revisa-se a medida de sucesso e os indicadores – que no passado costumavam se referir ao número de adoções. Hoje em dia, um indicador poderia ser o número de pontos de contato indicando quantas vezes nos comunicamos com os tutores da comunidade e o número de vezes em que os animais de estimação foram mantidos em casa, o que resultaria na diminuição do número de tutores que entregam seus animais aos abrigos.

A dra. Jyothi tem trabalhado em uma nova organização sem fins lucrativos que ela mesma desenvolveu, chamada Journey You Own (JYO), voltada para o bem-estar animal no que se refere à justiça social, à questão ambiental, à educação para a crise, a conscientização e a prática, buscando melhor comunicação entre todos esses setores.

 

Referências

1-Jyothi Robertson, 5 de novembro de 2021. The State of Animal Sheltering in the United States. https://www.youtube.com/watch?v=SnuhOx6woV0

2-https://www.humananimalsupportservices.org/

3-https://www.avma.org/resources-tools/diversity-and-inclusion-veterinary-medicine