O papel da medicina veterinária no Núcleo de Atenção à Saúde Indígena
Contexto, perspectivas e compromissos para a promoção da saúde única nas comunidades indígenas do Brasil
Medicina veterinária indigenista – integração de saúde e cultura
A medicina veterinária indigenista tem sido definida como uma área especializada da medicina veterinária que se dedica ao cuidado e à preservação da saúde humana, animal e ambiental nas comunidades indígenas, desempenhando importante papel na proteção da riqueza genética, histórica, cultural, ambiental e da biodiversidade do Brasil 1. Com uma população autoidentificada de aproximadamente 896 mil indivíduos, essas comunidades indígenas representam uma parcela significativa da diversidade cultural e linguística brasileira, com 305 etnias e 274 línguas faladas 2. Enraizadas na terra, as aldeias indígenas têm mantido uma relação intrínseca e vital com o ambiente natural ao seu redor, com parcial dependência de recursos naturais, empregando práticas como a caça, pesca e agricultura de subsistência. Além disso, os artesãos indígenas têm utilizado materiais naturais para criar itens valiosos, como cestos, colares e esculturas de madeira, preservando não apenas suas tradições culturais, mas também a riqueza da biodiversidade local 3,4.
Embora a educação e a saúde humanas sejam garantidas pela legislação federal vigente, essas comunidades enfrentam diversos desafios, inclusive a frequente falta de acesso a saneamento básico, água potável e, crucialmente, assistência veterinária adequada. Essa carência de saúde animal e ambiental não apenas impacta negativamente a qualidade de vida das pessoas, mas também aumenta a vulnerabilidade das comunidades indígenas às zoonoses 5,6. A falta de infraestrutura adequada torna as comunidades especialmente suscetíveis a essas doenças, ressaltando a necessidade de intervenções especializadas e sensíveis à cultura indígena para proteger tanto a saúde das pessoas quanto a dos animais, bem como a biodiversidade local 7,8.
Nesse contexto, a medicina veterinária indigenista se mostra importante, por trabalhar a abordagem da saúde única (One Health), que reconhece a interconexão entre a saúde humana, a animal e a ambiental. Esses profissionais desempenham atividades essenciais na proteção da fauna e da flora locais, na prevenção de zoonoses, na promoção da segurança alimentar e no apoio ao desenvolvimento da agricultura e à criação de animais, garantindo saúde e preservando as tradições e práticas ancestrais que sustentam essas comunidades 9. Sendo assim, é importante que os médicos-veterinários atuantes sejam treinados e especializados na abordagem da saúde única e das práticas indigenistas, para que assim as ações tragam benefícios mútuos e sejam respeitadas as culturas dos diferentes grupos de povos originários em nosso país 10.
Atuação prática na medicina veterinária indigenista
Entre 2022 e 2023, grupos de pesquisadores da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em colaboração com outras instituições como a Universidade de São Paulo (USP) e a Purdue University (PU-EUA) e com o apoio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), realizaram ações de vigilância e prevenção de doenças em comunidades indígenas dos estados do Paraná e de São Paulo. Essas ações incluem a administração de antiparasitários e a vacinação de centenas de cães, bem como a coleta de amostras biológicas de cães e de seres humanos para o mapeamento da circulação de doenças zoonóticas nessas aldeias.
A vacinação dos cães foi feita de acordo com a idade e o estado de saúde de cada animal, imunizando-os contra raiva e outras enfermidades, como parvovirose, cinomose e leptospirose. Essa medida teve como objetivo estabelecer uma barreira imunológica para proteger tanto os animais quanto os seres humanos contra doenças transmissíveis. Além disso, os animais foram tratados com vermífugos e antipulgas, cuja dosagem foi calculada com base na idade e no peso de cada um, sendo essencial para o controle de parasitas intestinais e ectoparasitas ao prevenir riscos de transmissão e infestação em seres humanos.
A vacinação e a administração de antiparasitários nos cães não apenas protegem a saúde animal, mas também têm um impacto positivo na saúde pública, reduzindo significativamente o risco de surtos e transmissão de doenças zoonóticas. Além disso, ao prevenir doenças nos cães, espera-se aumentar a expectativa de vida desses animais, que desempenham um papel fundamental como companheiros das famílias indígenas, contribuindo para o bem-estar físico e mental das comunidades.
Durante essas ações, também são realizadas atividades de educação em saúde sobre doenças zoonóticas, estabelecendo vínculo com a comunidade e facilitando a compreensão da importância da abordagem integrada entre saúde humana e veterinária na prevenção de doenças e na promoção da saúde única. A coleta de sangue tanto de seres humanos quanto de animais para pesquisa de doenças zoonóticas é uma estratégia fundamental para identificar possíveis riscos de transmissão entre espécies, permitindo a implementação de políticas públicas assertivas para prevenção e controle de zoonoses nas comunidades indígenas participantes.
Até o momento, com base nos resultados adquiridos a partir das amostras coletadas e na análise dos fatores de risco aos quais a população indígena está exposta, os estudos concluídos apresentaram as prevalências de doenças parasitárias zoonóticas, tais como estrongiloidíase, toxocaríase e toxoplasmose. Um dos estudos revelou que 37,6% dos indígenas analisados eram soropositivos para o nematódeo Strongyloides stercoralis 11. Esse número é significativamente maior do que o das taxas de soroprevalência de 21,7% a 29,2% observadas na população brasileira em geral 12. No caso da toxocaríase, a soroprevalência entre os indígenas amostrados foi de 73,9%, um valor ligeiramente superior aos 71,8% encontrados em pesquisas anteriores envolvendo populações rurais adultas no Sul do Brasil 13. Além disso, relatou-se uma soroprevalência de 49% de anticorpos IgG (imunoglobulina G) para o protozoário Toxoplasma gondii nas populações indígenas, em comparação com a prevalência geral brasileira de aproximadamente 42% 14.
Os fatores de riscos comuns observados entre essas doenças parasitárias incluem saneamento inadequado, falta de acesso a água potável e contato frequente com solo e água contaminados, moradias precárias, ausência de calçados e consumo de carne de caça crua ou mal preparada. Além disso, a pobreza e a falta de compreensão sobre as doenças e suas formas de prevenção, aliadas à carência de acesso a cuidados de saúde adequados, são fatores de risco significativos, contribuindo para a disseminação dessas enfermidades 1,13,14.
Esses dados ressaltam a importância de compreender e abordar as condições de saúde específicas das comunidades indígenas e evidenciam que os fatores de riscos estão interligados e exacerbam a vulnerabilidade dessas populações a diferentes zoonoses. Dessa forma, as intervenções a serem implementadas devem abordar não apenas questões de saúde, mas também melhoras de infraestrutura, educação e condições de vida para garantir a saúde e o bem-estar dessas comunidades.
Perspectivas da medicina veterinária indigenista
Em 1º. de janeiro de 2023, em decreto oficial do governo, um marco histórico foi estabelecido no Brasil com a criação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o primeiro ministério dedicado exclusivamente às necessidades indígenas, representando um passo significativo na política nacional 15. Sônia Guajajara, originária da Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, assumiu a liderança como a primeira indígena a se tornar ministra no Brasil 16. A partir dessa iniciativa, o governo estabeleceu uma representação indígena cuja estrutura é composta por todo um corpo de funcionários indígenas e não indígenas, com foco principal no reconhecimento, na garantia e na promoção dos direitos fundamentais dos povos indígenas, incluindo acesso à saúde humana e animal 17,18.
Nesse cenário, a necessidade da atuação do médico-veterinário na interface entre ambiente, animal e ser humano se tornou mais evidente nas comunidades indígenas, sendo vista como fundamental a expertise do profissional em saúde única para monitorar a intensa interação dos povos indígenas com o ambiente e os animais. Sendo assim, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), por meio da Comissão Nacional de Saúde Pública Veterinária (CNSPV/CFMV), com o apoio de universidades e profissionais veterinários dos setores público e privado, conseguiu aprovar, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) realizada em julho de 2023, a criação do Núcleo de Vigilância e Controle de Zoonoses (NVCZ) na Sesai e a inclusão do médico-veterinário no Núcleo de Apoio à Saúde Indígena (Nasi) 19,20.
A criação do NVCZ e a presença ativa de veterinários no Nasi permitirá a elaboração de políticas públicas voltadas para a medicina veterinária indigenista no Sistema Único de Saúde (SUS) dentro do Plano Nacional de Saúde e do Plano Plurianual 2024-2027 19. Destaca-se a responsabilidade do médico-veterinário na coordenação, na supervisão e na execução das atividades de vigilância, de prevenção e controle de zoonoses, doenças vetoriais e parasitárias, além da gestão de agravos causados por animais de importância para a saúde pública e da implantação de campanhas de vacinação em territórios de povos originários.
Com a inclusão do médico-veterinário no Nasi, espera-se não apenas um incremento nos investimentos, mas também maior visibilidade e o reconhecimento da necessidade permanente de promover a saúde humana e animal em territórios indígenas. Essas ações são vitais para manter a força das comunidades indígenas, permitindo que elas sejam devidamente representadas e possam preservar suas origens culturais e históricas. Além disso, tais iniciativas fortalecem não apenas a população indígena, mas também o tecido social e cultural do nosso país, promovendo a diversidade e a riqueza das tradições brasileiras. Por meio do compromisso contínuo com as políticas públicas a serem desenvolvidas e da colaboração ativa entre profissionais de saúde, médicos-veterinários, instituições e as próprias comunidades indígenas, podemos construir um futuro no qual a saúde, a cultura e a identidade dos povos originários sejam protegidas e respeitadas, contribuindo para um Brasil mais inclusivo e justo.
Referências
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