O adestramento de cães como ferramenta para a ressocialização de presidiários
Introdução
Lançada em 2017 pela Netflix, a série Lock up: extended stay (“Prisão: longa temporada”) relata o dia a dia de detentos de cadeias e presídios dos Estados Unidos. Em dois dos vinte episódios apresentados, a ressocialização dos presidiários é abordada por meio da interação com animais. O primeiro episódio mostra o treinamento de cavalos selvagens realizado por detentos da Califórnia, enquanto o terceiro episódio relata o adestramento de cães no Centro de Detenção de Chatham, na Geórgia. O contato de detentos com animais nas filmagens da série Lock up: raw (“Prisão: sem edição”), outro título da mesma franquia da série, enfocou a relação positiva entre presidiários e seus gatos de estimação.
O documentário retrata a importante mudança ocasionada a partir dessa política de ressocialização, tanto para os detentos como para os animais. Os criminosos têm a chance de aprender algo novo, que poderá ser usado profissionalmente após o término da pena, permitindo que tenham mais chance de ser reabsorvidos pela sociedade. E os animais que não apresentavam bons níveis de socialização, ao passarem por adestramento e treinamento, têm mais chance de ser encaminhados para adoção e encontrar um lar.
Em 2016, Prison dog film (“Cães de prisão”) foi filmado na Penitenciária Estatal de Fishkill, em Nova York. O documentário acompanha três presos que cumprem uma longa pena por assassinato e assalto à mão armada. O programa de treinamento de cães nesse presídio é realizado pela organização Puppies Behind Bars (Filhotes Atrás das Grades), comandada por Gloria Gilbert Stoga, que ensina os detentos a treinarem filhotes para serem cães-guias ou detectores de explosivos. O projeto é desenvolvido em seis instituições correcionais; os animais treinados entram com 8 semanas e saem entre 12 e 24 meses de idade, e aqueles que apresentam alguma dificuldade ou problema de saúde são encaminhados para doação, castrados e vacinados.
O projeto Huellas de Esperanza (Pegadas de Esperança) foi iniciado em 2011 na Argentina, país pioneiro a implementar esse programa em âmbito nacional na América Latina. Voltado principalmente para presos que cumprem o final da pena, pressupõe que o contato com os animais pode resultar em ajuda emocional, além de lhes proporcionar melhores chances de emprego ao deixarem a prisão. A duração do treino varia de um ano e meio a dois anos. O programa argentino inspirou-se na ideia da freira Pauline Quinn, que iniciou o projeto de cães em ambiente de presídios no ano de 1981, em Washington.
Nos Estados Unidos, vários programas surgiram a partir da experiência da irmã Pauline. Em suas palestras, ela relata que, em sua infância e principalmente na adolescência, passou por episódios de violência, e foi no adestramento que encontrou uma saída para sua vida. Atualmente ela coordena, entre outros, o Prison Dog Project (Projeto Cães de Prisão). Inicialmente, os cães adestrados eram encaminhados para pessoas que tinham necessidades especiais. A partir disso, a irmã Pauline passou a ajudar a implantar projetos semelhantes em outros centros de recuperação, pois acreditava que, por meio do treinamento de cães, os detentos poderiam renovar sua esperança a partir do amor aos animais, exatamente como havia acontecido com ela.
Não existem dados abrangentes sobre a prevalência desses programas no mundo, mas há relatos de que o treinamento de animais por presidiários é realizado em vinte estados dos Estados Unidos, e também no Canadá, na Austrália, Nova Zelândia, Itália e Argentina. Inúmeras ONGs atuam nesse setor, oferecendo o serviço para os centros correcionais e posteriormente disponibilizando os animais para a população.
No Brasil, foi divulgada a notícia de que seriam construídos canis em dois presídios de Tremembé, que receberiam cães e gatos em 2018. Segundo a Secretaria de Administração Penitenciária, os presidiários estariam envolvidos no projeto desde a construção dos canis até o treinamento técnico para banho, tosa e adestramento dos animais, e esse trabalho redundaria em abatimento da pena dos detentos.
O programa acima citado seria fruto de uma cooperação técnica entre a Secretaria de Administração Penitenciária, o Superior Tribunal de Justiça – 1ª Vara de Execuções Criminais da comarca do município de Taubaté, o Conselho da Comunidade e a Prefeitura Municipal de Taubaté. A adoção de uma política pública de proteção e cuidado para com os animais em estado de abandono, a par da ressocialização e da construção social dos detentos, constituem o objeto dessa cooperação que está sendo implementada em unidades prisionais do município.
O desenvolvimento da política pública que interliga a proteção e o cuidado aos animais e possíveis melhoras na vida de pessoas em situação carcerária é norteado por três objetivos:
1. possibilitar uma eficaz política pública de controle, recolhimento e cuidado dos animais em situação de abandono no âmbito da competência municipal;
2. criar oportunidade de trabalho para os reeducandos custodiados no Centro de Progressão Penitenciária de Tremembé, possibilitando a remissão de pena prevista no artigo 126 da Lei nº 7.210/84;
3. contribuir efetivamente com a ressocialização dos reeducandos, priorizando a humanização e o desenvolvimento da afetividade, além dos aspectos morais e éticos.
Benefícios e perspectivas
Apesar de os programas de treinamento de cães em instalações correcionais terem começado a ser implantados na década de 1980, seus efeitos a longo prazo não foram estudados. No entanto, existem diversos relatos extremamente positivos de presidiários, funcionários e adotantes dos cães a esse respeito. Basicamente, há três grupos diretamente beneficiados: os presidiários, os cães e a sociedade.
O Journal of Family Social Work (Jornal de Trabalho Social Familiar) entrevistou vários participantes de programas de reabilitação com animais. Segundo eles, os cães são verdadeiros terapeutas, e são notáveis as mudanças de comportamento e atitudes proporcionadas por eles no ambiente hostil da prisão, onde a introdução do programa de adestramento de animais provocou melhoras evidentes no comportamento dos internos. Além disso, o auxílio prestado pelos animais adestrados a pessoas com deficiência é visto como uma retribuição à comunidade.
Diversos estudos já demonstraram os benefícios do contato de animais com crianças, idosos, pessoas com transtornos psicológicos, deficientes físicos, etc. Dessa maneira, o simples contato no ambiente penitenciário é capaz de proporcionar melhoras psicológicas aos detentos, diminuindo a tensão e o estresse entre eles. As pesquisas feitas com os participantes dos projetos revelam o potencial transformador gerado por esses programas tanto dentro como fora das paredes das prisões.
Um estudo feito por psicólogos na Virgínia analisou 48 reclusos de uma prisão masculina no sudoeste do estado, 24 dos quais faziam parte do grupo de controle, e os outros 24 constituíam o grupo que realizaria a interação com os animais. O resultado das análises demonstrou uma considerável queda no número de infrações institucionais praticadas pelos participantes, bem como melhoras nas terapias físicas, ocupacionais e psicológicas levadas a efeito no local. Houve impacto benéfico na avaliação de sensibilidade e expressividade dos detentos, e considerável melhora na interação entre funcionários e reclusos. Segundo os pesquisadores, apesar de escassos, os estudos voltados para avaliar as implicações geradas por meio de intervenções com animais na reabilitação dos presidiários são muito importantes, considerando que essas pessoas podem se adequar à sociedade e executar um trabalho proveitoso ao terminarem de cumprir suas penas.
A partir dos programas já executados internacionalmente e tendo em vista os benefícios apontados, percebe-se uma grande oportunidade para tentar solucionar ou ao menos mitigar dois grandes problemas do Brasil. O primeiro se refere aos presidiários, que necessitam de oportunidades para melhorar seu estado atual, e o segundo, aos milhares de animais em situação de abandono e maus-tratos, que, assim como os detentos, muitas vezes só precisam de uma chance para mudarem de vida.
Prison Pet Partnership (Parceria de Pets e Prisão) | Centro Correcional para Mulheres em Washington, EUA | Prisioneiras treinam filhotes trazidos de abrigos para serem oferecidos a pessoas com deficiência. Serve também como treinamento vocacional para as prisioneiras. |
Humane Society of Oldham County (Sociedade Humanintária do Condado de Oldham) – KSR Camp K-9 | Reformatório do Estado de Kentucky, EUA | Ressocializam cães com baixa probabilidade de adoção. |
Wild Horse Internate Program (Programa de Internato com Cavalo Selvagem) | Departamentos correcionais do Colorado e do Arizona, EUA | Os detentos supervisionados por treinadores profissionais participam do treinamento de cavalos selvagens que estão sob a proteção do governo. |
Dawgs in Prison (“Cães” em Prisão) | Instituto Correcional do Golfo, em Wewahitchka, na Flórida, EUA | Treinamento de cães abandonados e vítimas de maus-tratos, que após a socialização são encaminhados para adoção. |
CPS Prison Program (Programa Prisional de Ciência do Desempenho Canino) | Departamento de Medicina Veterinária da Universidade de Auburn, no Alabama, EUA | Programa conjunto entre a universidade e prisões, em que se treinam filhotes para detectar bombas, venenos e outros materiais perigosos. |
New England Wildlife Center (Centro de Animais Selvagens da Nova Inglaterra) | Cadeia Municipal de Norfolk, em Dedham, Massachusetts, EUA | Os detentos têm a chance de trabalhar no tratamento e na recuperação de animais selvagens. |
Puppies Behind Bars (Filhotes Atrás das Grades) | Programa que opera em seis prisões de Nova York, EUA | Adestramento de cães para detectar bombas ou para cuidar de soldados feridos em guerra, pós-desmobilização. |
Exemplos de programas de interação entre presidiários e animais nos Estados Unidos
Referências sugeridas
1-ALVERNIA UNIVERSITY. Man’s best friend: how dog training is affecting prison rehabilitation. Alvernia University, 2015. Disponível em: <https://online.alvernia.edu/how-dog-training-is-affecting-prison-rehabilitation/>. Acesso em 14 de dezembro de 2018.
2-CARMO, M. Argentina usa adestramento de cães para reabilitar presos. BBC News, 2014. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/08/140820_argentina_adestramento_caes_pai_mc>. Acesso em 16 de janeiro de 2019.
3-BRITTON, D. M. ; BUTTON, A. Prison pups: assessing the effects of dog training programs in correctional facilities. Journal of Family Social Work, v. 9, n. 4, p. 79-95, 2006. doi: 10.1300/J039v09n04_06.
4-FOURNIER, A. K. ; GELLER, E. S. ; FORTNEY, E. E. Human-animal interaction in a prison setting: impact on criminal behavior, treatment progress, and social skills. Behavior and Social Issues, v. 16, n. 1, p. 89-105, 2007. doi: 10.5210/bsi.v16i1.385.
5-FURST, G. Prison-based animal programs: a national survey. The Prison Journal, v. 86, n. 4, p. 407-430, 2006. doi: 10.1177/0032885506293242.
6-GLOBO 1. Após construção de canil, presídios de Tremembé vão receber cães e gatos abandonados. G1 Vale do Paraíba e Região, 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/apos-construcao-de-canil-presidios-de-tremembe-vao-receber-caes-e-gatos-abandonados.ghtml>. Acesso em: 16 de janeiro de 2019.
7-WHEATON, L. Prison-based animal programs: a critical review of the literature and future recommendations. 2013. 24 f. Dissertação (Doutorado em Psicologia) – School of Graduate Psychology, College of Health Professions, Pacific University, Forest Grove. Disponível em: <https://commons.pacificu.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com/&httpsredir=1&article=2097&context=spp>. Acesso em 14 de dezembro de 2018.