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Medicina veterinária auxilia no diagnóstico da Covid-19 humana

Residentes participam da rotina do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular da UFPR

Créditos: Alexander W. Biondo Créditos: Alexander W. Biondo

A medicina veterinária na saúde

Criada e regulamentada a partir da promulgação da Lei n.º 11.129 de 30 de junho de 2005 1, a Residência Multiprofissional em Saúde é uma modalidade de pós-graduação lato sensu, voltada para o treinamento em serviço. O programa abrange as áreas da saúde, incluindo Biomedicina, Ciências Biológicas, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e Terapia Ocupacional, de acordo com a Resolução CNS nº 287/1998 2. O programa de Residência Multiprofissional é resultado de uma parceria firmada entre o Ministério da Educação e o Ministério da Saúde, a fim de capacitar profissionais para trabalhar no Sistema Único de Saúde (SUS) e assim alcançar a integralidade proposta por esse sistema 3. 

 

A Covid-19 no Brasil

No Brasil, o SUS tem sido a principal linha de frente no enfrentamento da pandemia de Covid-19 (Coronavirus Disease 2019), seguindo o estabelecimento da saúde como direito fundamental de todos e dever do Estado 4. A Covid-19 é uma doença respiratória aguda causada pelo vírus sars-cov-2 (Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2), com grande potencial de disseminação entre seres humanos. O primeiro caso de Covid-19 ocorreu em dezembro de 2019, na China, e se disseminou rapidamente pelo mundo todo, levando a Organização Mundial de Saúde (OMS) a declarar estado de emergência em Saúde Pública de importância internacional em janeiro de 2020. No mês de março de 2020, a OMS declarou estado de pandemia 5. Isso se deve principalmente ao fato de a Covid-19 apresentar propriedade epidemiológica de rápida disseminação progressiva, gerando uma curva epidêmica alta em um período muito curto e induzindo a sobrecarga dos sistemas de saúde 6.

O primeiro caso de Covid-19 no Brasil foi confirmado em fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo. A propagação do vírus foi rápida, e ele atingiu a população brasileira em todos os estados. Em julho de 2020, o continente americano foi considerado o novo epicentro da doença, com focos de concentração nos Estados Unidos e no Brasil 7.

 

A medicina veterinária na Covid-19

Com o curso da pandemia no Brasil, todo o sistema de saúde passou por reajustes e novas formas de organização, incluindo os programas de Residência Multiprofissional em Área da Saúde em Medicina Veterinária. Essas mudanças reorganizaram o fluxo de trabalho com o objetivo de priorizar a segurança dos usuários, servidores e residentes. Além disso, a ação estratégica O Brasil Conta Comigo, com a proposta de ampliar a força de trabalho no SUS, concedeu uma bonificação de 20% sobre o valor da bolsa para os residentes ativos no enfrentamento da pandemia. Essa ação estratégica teve como objetivo reconhecer o trabalho prestado pelos profissionais de saúde e incentivar o enfrentamento à pandemia, fornecendo assim um melhor atendimento à população brasileira 8.

Embora, para o senso comum brasileiro, a medicina veterinária seja voltada apenas para a saúde animal, a atuação da profissão vai muito além do atendimento clínico de animais. Em 1946, a Organização Mundial da Saúde (OMS) utilizou pela primeira vez a expressão “Saúde Pública Veterinária”, definindo o conceito e a estrutura da implementação dos conhecimentos e recursos da medicina veterinária na Saúde Pública. Essa prática atribuiu ao médico-veterinário o controle de zoonoses, higiene de alimentos, atividades laboratoriais de biologia e experimentais 9. Dessa forma, a atuação desses profissionais nas equipes de Saúde Pública é reconhecida pela OMS, que realça a importância dos conhecimentos adquiridos durante sua formação. O domínio dos médicos-veterinários nas áreas de biologia e epidemiologia das zoonoses tem sido de suma importância para o planejamento, o cumprimento e a avaliação de programas de prevenção, controle ou erradicação dessas doenças 10.

A pandemia da Covid-19 não alterou a função dos profissionais de medicina veterinária, mas redirecionou o foco de trabalho e modificou o seu fluxo de organização. Em março de 2020, a Organização Internacional de Saúde Animal (OIE) se posicionou sobre a importância da manutenção das atividades veterinárias como serviços essenciais 11. O Decreto Nacional nº 10.282 de 20 de março de 2020, que define as atividades essenciais, corrobora o posicionamento da OIE sobre a importância dos serviços de prevenção, controle e erradicação de doenças dos animais 12. Além disso, em abril de 2020 a OIE publicou um guia para que laboratórios veterinários ofereçam suporte à Saúde Pública no diagnóstico de Covid-19 13. 

As atividades veterinárias não foram interrompidas em decorrência da pandemia, mas sim remodeladas e reorganizadas. De modo concomitante, as medidas de biossegurança precisaram ser reforçadas, devido à alta transmissibilidade da Covid-19 e à preocupação de preservar a saúde dos profissionais. Os atendimentos em clínicas e hospitais veterinários foram planejados de forma a diminuir o potencial de disseminação do SARS-CoV-2, por meio da redução de atendimentos, da limitação de visitas aos pacientes internados, do estabelecimento da obrigatoriedade de uso de equipamentos de proteção individual e do aumento dos procedimentos de limpeza e higiene. Diante disso, hospitais veterinários escolas também passaram por modificações a fim de manter o atendimento aos pacientes e o treinamento em serviço dos médicos-veterinários residentes. Essas alterações, porém, não ocorreram somente no fluxo de trabalho e nos cuidados com biossegurança.

 

Diagnóstico da Covid-19 na UFPR

Em determinados programas de residência multiprofissional em medicina veterinária, apesar da especialização com ênfase em uma área específica de atuação, houve redirecionamento do treinamento em serviço em prol da Saúde Pública. Médicos-veterinários em especialização abdicaram de suas áreas de atuação por um período para se dedicar ao enfrentamento da pandemia. Desse modo, residentes do programa de patologia clínica com atuação em biologia molecular, normalmente treinados no Hospital Veterinário, foram direcionados para o treinamento em serviço no Laboratório de Biologia Molecular da UFPR, responsável prioritariamente pelo diagnóstico molecular de sars-cov-2 em profissionais do Hospital de Clínicas da UFPR, mas também em servidores, alunos e populações vulneráveis.

 

Figura 1 – Coleta de amostras de swab orofaríngeo e sangue periférico em pessoas em situação de rua do município de São José dos Pinhais. As amostras foram processadas no Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular da UFPR. Créditos: Alexander W. Biondo

 

Dentre outras atividades, a equipe multiprofissional coordenada pelo prof. Alexander Biondo, médico-veterinário e professor do Departamento de Medicina Veterinária, foi responsável pelas coletas de swabs e sangue de pessoas em situação de rua (Figura 1), da população da Penitenciária Feminina do Paraná (Figura 2) e de servidores e animais do Zoológico Municipal de Curitiba (Figura 3).

 

Figura 2 – Coleta de amostras de swab orofaríngeo em pessoas privadas de liberdade na Penitenciária Feminina do Paraná. As amostras foram processadas no Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular da UFPR. Créditos: Alexander W. Biondo

 

O impacto trazido pela pandemia no treinamento em serviço dos residentes em medicina veterinária da UFPR não foi somente na área de atuação ou no aumento dos cuidados de prevenção da Covid-19. Além da capacitação para atuarem na frente de combate a pandemias, houve um aprendizado significativo sobre medidas de biossegurança. Além disso, observou-se um fluxo maior de informações técnicas e científicas sobre o sars-cov-2, o que acarretou a constante e necessária atualização de conhecimentos. Consequentemente, estimulou-se a formação de profissionais com destreza na busca por informações atualizadas e treinamento detalhado no combate e na prevenção de doenças com alta taxa de contágio. A atuação dos médicos-veterinários residentes diretamente na linha de frente de combate à Covid-19 corrobora a sua aptidão como profissionais de saúde. Isso, além de demonstrar à sociedade a importância do médico-veterinário na Saúde Pública, motiva continuamente o profissional e valoriza seu trabalho. 

 

Figura 3 – Coleta de amostras de swabs nasofaríngeo e orofaríngeo em servidores e animais do Zoológico Municipal de Curitiba. As amostras foram processadas no Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular da UFPR. Créditos: Alexander W. Biondo

 

O contexto da pandemia demandou atenção à saúde mental dos profissionais da saúde, visto que já foram relatados aumento de sintomas de ansiedade, depressão e medo de se infectar ou transmitir a infeção a familiares 14. Um estudo realizado com médicos de Wuhan, cidade chinesa onde foi registrado o primeiro caso de Covid-19, revelou que esses profissionais da linha de frente enfrentaram grande pressão devido ao alto risco de infecção, ao excesso de trabalho, à discriminação, à falta de contato com a família e ao isolamento. Essa circunstância gerou problemas relacionados à saúde mental, como estresse, ansiedade, medo, insônia e raiva 15. Esses sintomas podem não somente afetar a atenção e o entendimento dos profissionais de saúde, como também ter efeito negativo no bem-estar geral em longo prazo. O sofrimento psíquico e o adoecimento mental dos profissionais de saúde em decorrência do medo de serem infectados, as informações incertas sobre a doença e sobre os recursos para combatê-la, e ainda a solidão e a preocupação com entes queridos pode levar os profissionais, em alguns casos, à relutância em trabalhar 16. 

Esses aspectos importantes devem ser levados em conta também com relação à atuação dos médicos-veterinários em treinamento. Tanto o remanejamento de residentes para o enfrentamento da pandemia quanto a diminuição dos atendimentos daqueles que continuam nos seus treinamentos específicos geram inseguranças. Tão importante quanto os impactos diretos da pandemia é a incerteza quanto ao aproveitamento do treinamento em serviço nas áreas de atuação almejadas ao ingressar nos programas de residência.

 

Considerações finais

Os médicos-veterinários fazem parte dos profissionais da saúde e do Sistema Único de Saúde no Brasil. Além disso, são fundamentais articuladores da Saúde Única em todo o mundo. Cabe aos profissionais exercer essa função com ética profissional e responsabilidade social, particularmente em tempos de pandemia.

 

Referências

01-BRASIL. Lei nº 11.129, de 30 de junho de 2005. Institui o Programa Nacional de Inclusão de Jovens – ProJovem; cria o Conselho Nacional da Juventude – CNJ e a Secretaria Nacional de Juventude. Brasília: Casa Civil, 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11129.htm>. Acesso em 5 de outubro de 2020.

02-BRASIL. Resolução nº 287 de 08 de outubro de 1998. Conselho Nacional de Saúde, 1998. Disponível em: <http://www.crefrs.org.br/legislacao/pdf/resol_cns_287_1998.pdf>. Acesso em 15 de setembro de 2020.

03-Residência multiprofissional em saúde: experiências, avanços e desafios. 1. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. 414 p. ISBN: 85-334-1298-3.

04-BRASIL, Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília: Casa Civil, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em 5 de outubro de 2020.

05-WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on Covid-19 – 11 march 2020. WHO, 2020. Disponível em: <https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19—11-march-2020>. Acesso em 5 de outubro de 2020.

06-WORLD HEALTH ORGANIZATION. Public health surveillance for COVID-19: interim guidance. WHO, Disponível em: <https://www.who.int/publications/i/item/who-2019-nCoV-surveillanceguidance-2020.7>. Acesso em 15 de setembro de 2020.

07-ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE ; IRIS. Pan American Health Organization response to COVID-19 in the Americas, 17 january to 31 may 2020. WHO, 2020. Disponível em: <https://iris.paho.org/handle/10665.2/52453>. Acesso em 20 de setembro de 2020.

08-BRASIL; MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria nº 580, de 27 de março de 2020. Dispõe sobre a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo – Residentes na área de Saúde”, para o enfrentamento à pandemia do coronavírus (COVID-19). Diário Oficial da União, 2020. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-580-de-27-de-marco-de-2020-250191376>. Acesso em 22 de setembro de 2020. 

09-WORLD HEALTH ORGANIZATION. Joint WHO/FAO Expert Group on Zoonoses: report on first session, Geneva: WHO, 1951. Disponível em: <https://apps.who.int/iris/handle/10665/86739>. Acesso em 15 de setembro de 2020.

10-WORLD HEALTH ORGANIZATION. Future trends in veterinary public health: report of a WHO Study Group. In: WHO Technical Report Series. n. 907. Geneva: WHO, 2002. 85 p. ISBN: 9241209070. Disponível em: <https://apps.who.int/iris/handle/10665/42460>. Acesso em 22 de setembro de 2020.

11-WORLD ORGANISATION FOR ANIMAL HEALTH. COVID-19 and veterinary activities designated as essential. Paris: OIE/WVA Joint Statement, 2020. Disponível em: <https://www.oie.int/en/for-the-media/press-releases/detail/article/covid-19-and-veterinary-activities-designated-as-essential/>. Acesso em 22 de setembro de 2020.

12-BRASIL. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Brasília, 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10282.htm>. Acesso em 22 de setembro de 2020.

13-WORLD ORGANISATION FOR ANIMAL HEALTH. Veterinary laboratory support to the public health response for COVID-19. Paris: OIE, 2020. 4 p. Disponível em: <https://www.oie.int/fileadmin/Home/eng/Our_scientific_expertise/docs/pdf/COV-19/A_Guidance_for_animal_health_laboratories_1April2020.pdf>. Acesso em 22 de setembro de 2020.

14-FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ; BRASIL; MINISTÉRIO DA SAÚDE. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia Covid-19. Recomendações gerais. Rio de Janeiro/Brasília: Fiocruz/MS, 2020. 8 p. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/cartilha_recomendacoes_gerais_06_04_0.pdf>. Acesso em 23 de setembro de 2020.

15-KANG, L. ; LI, Y.; HU, S. ; CHEN, M.; YANG, C.; YANG, B. X.; WANG, Y. ; HU, J.; LAI, J.  MA, X.; CHEN, J.; GUAN, L. ; WANG, G. ; MA, H. ; LIU, Z. The mental health of medical workers in Wuhan, China dealing with the 2019 novel coronavírus. The Lancet. Psychiatry, v. 7, n. 3, p. e14, 2020. doi: 10.1016/S2215-0366(20)30047-x. 

16-HUANG, L.; LIN, G.; TANG, L.; YU, L.; ZHOU, Z. Special attention to nurses’ protection during the COVID-19 epidemic. Critical Care, v. 24, n. 1, p. 120, 2020. doi: 10.1186/s13054-020-2841-7.