Introdução
Os animais têm cada vez mais desempenhado um papel significativo na vida humana, uma vez que trazem benefícios psicológicos e saúde a seus tutores 1, além de atuarem como “facilitadores sociais” 2. Os cães são considerados membros significativos da família 3 e cada vez mais vistos pelos moradores da cidade como um grupo de seres vivos cujas necessidades sociais e comportamentais devem ser acomodadas além do espaço privado do lar 4.
A preocupação em criar áreas públicas para animais de estimação não é recente. Em 1979, um grupo de moradores liderado por Martha Scott Benedict e Doris Richards estabeleceu o primeiro parque para cães no mundo, batizado de Ohlone Dog Park, em Berkeley, Califórnia, Estados Unidos, oficializado em 1983 e mais tarde rebatizado de Martha Scott Benedict Dog Park, o que pode ter gerado a força motriz das reivindicações por mais espaços públicos, atualmente designados pet friendly 5 nos Estados Unidos.
Praia amiga dos cães no mundo
Além dos parques, as famosas “praias amigas dos cães” (do inglês pet friendly beaches) estão sendo cada vez mais reivindicadas pelas populações que frequentam praias. Vários países, particularmente os Estados Unidos, têm liberado o acesso a dezenas de praias para os cães. A cidade de Laguna Beach, localizada no estado da Califórnia, permite em seu Código Municipal que os tutores levem seus cães a praias públicas, desde que obedecido o uso de coleira e guia e que o tutor se responsabilize por recolher os dejetos de seus animais. No entanto, não é permitido levar os animais à praia nos meses mais quentes (15 de junho a 10 de setembro) nem nos horários entre 9h e 18h, período de maior movimento de turistas nas areias 6.
A praia do Porto da Areia Norte, em Peniche, Portugal, foi inaugurada em 2017 como a segunda praia amiga dos cães de Portugal, permitindo a permanência e a circulação dos animais durante todo o ano. Os tutores são obrigados a manter os cães na guia e na coleira, usar a focinheira em caso de animais de raça perigosa, recolher os dejetos e ter o registro do animal (microchip e placas de identificação na coleira), atestado sanitário atualizado e certificado por médico-veterinário.
Praia amiga dos cães no Brasil
No Brasil, pessoas com deficiência sensorial, mental, orgânica e motora podem transitar acompanhadas de cães de assistência em locais públicos e privados de uso coletivo, segundo o projeto de lei do Senado nº 411, de 2015, que alterará a Lei nº 11.126, de junho de 2005, que dispõe apenas sobre os cães-guia 7. Muitos estados litorâneos costumam intensificar a fiscalização nas praias durante o verão, por meio de leis sancionadas que impedem a presença dos animais na praia. Apesar das placas ao longo dos calçadões de muitas estâncias balneárias indicando a proibição da presença de animais na praia, muitas pessoas decidem levar animais domésticos para um passeio na areia (Figura 1), em parte com a justificativa de que cães semi ou não domiciliados já costumam frequentá-las, por vezes diariamente (Figura 2).
Existe uma grande importância da zona costeira e marinha brasileira, principalmente pelos recursos naturais presentes nesses biomas. A grande biodiversidade dessas áreas faz com que muitos organismos dependam de forma direta ou indireta dos ecossistemas costeiros, utilizando-os essencialmente como locais para reprodução, alimentação e refúgio. O equilíbrio dos diferentes ecossistemas que compõem a grande extensão da costa brasileira está diretamente relacionado a diversos aspectos, como a cadeia alimentar local, o ciclo dos nutrientes presentes, o grau de degradação ao qual o local é exposto, as espécies da flora e da fauna que ocorrem na região.
A inclusão de animais domésticos, principalmente os cães, nas praias brasileiras ainda vem sendo discutida pelo potencial impacto que essa conduta pode causar nas suas condições naturais. Não podemos priorizar o lazer da fauna doméstica de companhia (exótica) em detrimento da fauna nativa brasileira, tanto marinha quanto terrestre. Com relação a esses aspectos, alguns pontos importantes devem ser sempre previamente discutidos, como a potencial ameaça para a fauna nativa terrestre e marinha pela introdução desses animais nas praias, bem como a veiculação de doenças e a contaminação da areia pela permanência dos cães nesses locais.
Areia limpa, praia saudável
A Organização Mundial da Saúde, por meio do guia Guidelines for Safe Recreational Waters – vol. 1 – Coastal and Fresh waters, exterioriza a preocupação com a qualidade das areias da praia, principalmente em áreas de balneabilidade, devido à possibilidade de esses locais atuarem como reservatórios de patógenos e de vetores de doenças importantes para a saúde pública 8.
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) define, na Resolução nº 274 de 29 de novembro de 2000, os critérios de balneabilidade em águas brasileiras, apenas recomendando, no Art. 8º, a avaliação pelos órgãos ambientais das condições parasitológicas e microbiológicas da área, visando futuras padronizações 9. Da mesma maneira, no estado de São Paulo, a Lei nº 14.366, de 15 de março de 2011, inclui a análise periódica da qualidade da areia das praias do litoral, dos rios e das represas 10.
Existem iniciativas para estabelecer indicadores e realizar a avaliação sanitária das areias da praia 11, a exemplo da Europa, por meio da Associação Bandeira Azul 12, e recentemente do estado do Rio de Janeiro, por meio da resolução da Secretaria do Meio Ambiente (SMAC) nº 468, de 28 de janeiro de 2010, que define limites máximos para a classificação de areias das praias destinadas à recreação de contato primário, como a natação e o mergulho 13.
A avaliação sanitária e as ações de prevenção são primordiais para a manutenção de uma costa litorânea limpa e saudável, enquanto outros métodos devem ser utilizados apenas em eventos de poluição extrema e não rotineiramente. Ações corretivas, como a renovação da areia, demostraram a redução da carga bacteriana da areia e da água 14; entretanto, causam grande impacto na fauna litorânea 15, além de acarretar perda das propriedades físicas da praia 16.
A contaminação ambiental causada por dejetos de animais domésticos nas praias e em logradouros públicos pode oferecer riscos para a saúde única. Os estágios larvares, por serem notavelmente aquáticos, necessitam de umidade e temperatura adequadas, características facilmente encontradas na região litorânea, tanto pela constituição do solo arenoso com partículas entre 0,02 a 2 mm, que favorece a retenção de água, quanto pelas chuvas e temperaturas propícias para o desenvolvimento parasitário 17.
Doenças potencialmente transmitidas por cães nas praias
Uma das doenças transmitidas por meio do contato com as fezes de cães infectados e facilmente adquirida por pessoas na praia é a Larva migrans cutânea. Conhecida popularmente como bicho-geográfico, o ciclo errático do parasita Ancylostoma caninum 18 causa lesões tortuosas entre a derme e a epiderme de pessoas de forma semelhante a um mapa. Além disso, a Larva migrans visceral, causada principalmente pelo parasita Toxocara canis, também é uma zoonose parasitária importante, que pode levar a complicações variáveis e até mesmo à cegueira 19.
Em pesquisa relativamente recente das amostras de areia coletadas nas praias litorâneas do município de Santos, 458/2.520 (18,2%) estavam contaminadas com geo-helmintos; dessas, 148/458 (32,3%) estavam localizadas em playgrounds, onde há uma grande concentração de pessoas, principalmente crianças. A presença de formas parasitárias zoonóticas foi observada tanto em amostras de larvas de Ancylostoma sp (82,5%) como em ovos de Toxocara sp (59,4%) 20.
Em Pernambuco, as amostras de areia analisadas revelaram que a praia de Porto de Galinhas era a mais contaminada, com 42% de larvas de Ancylostoma sp; e 13% de Trichuris sp. Na praia do Muro Alto também havia um predomínio de amostras contaminadas por Ancylostoma sp. (30%), mas não foram encontradas formas parasitárias em Maracaípe, o que pode estar associado à dificuldade de obtenção de amostras e pela ausência de cães na região 21.
Em São Paulo, no município de Praia Grande, a ocorrência de Larva migrans foi avaliada por meio do recolhimento de fezes de cães coletadas nos canteiros da orla marítima, local utilizado pelos visitantes tanto para descanso quanto para a limpeza da areia dos pés. Como resultado, das amostras analisadas, 118/257 (45,9%) mostraram-se positivas para ovos de Ancylostoma sp 22.
No Rio Grande do Sul, da mesma maneira, a maioria das amostras fecais analisadas no município de Balneário Cassino – 169/237 (71,3%) – tinha predominância de ovos e larvas de Ancylostoma sp; dentre as positivas, 20/169 (11,8%) já apresentavam larvas rabditoides e filarioides 23 – esta última uma forma infectante (L3) responsável pela penetração ativa na pele de hospedeiros erráticos, como os seres humanos 24.
Fauna doméstica versus fauna nativa
Outro problema que particularmente acomete países com rica fauna nativa é que as espécies exóticas são reconhecidas como a segunda maior ameaça à saúde única 25. Segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), as “espécies exóticas” correspondem a todas as que ocorrem fora da sua área de distribuição natural, e as “espécies exóticas invasoras”, àquelas com capacidade de ameaçar os ecossistemas, favorecidas pela ausência de predadores naturais e pela capacidade de se instalar em diversos ecossistemas, sejam eles antropizados ou não 26.
As espécies invasoras apresentam eficiência de dispersão, rápido crescimento e são exímias predadoras 27. Tanto o cão doméstico (Canis familiaris) quanto o gato doméstico (Felis catus) são carnívoros do topo da cadeia alimentar, e podem apresentar essas características 28 quando deixam a vida doméstica e se reintegram de forma exótica ao ambiente selvagem natural. Nesse contexto, são considerados potenciais ameaças à fauna nativa, principalmente pela sua capacidade de manter a pressão predatória e altos níveis de concorrência 29.
Segundo pesquisadores do Instituto Smithsonian de Biologia da Conservação e do Departamento de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, os gatos domésticos errantes são capazes de aniquilar em média 2,4 bilhões de aves e 12,3 bilhões de mamíferos anualmente, além de 478 milhões de répteis e 173 milhões de anfíbios todos os anos só naquele país 30.
De maneira geral, o impacto de espécies não nativas pode ser agrupado em cinco categorias principais: predação e herbivorismo; concorrência com outras espécies; introdução e manutenção de enfermidades; distúrbio ambiental físico e químico; e acasalamento com população nativa. Dependendo de que espécies e ambientes são afetados, os impactos provocados podem ser de interesse ecológico ou econômico, ou de ambos 31, podendo ainda ser reversíveis ou irreversíveis.
A observação do impacto dos cães em áreas naturais não é recente. Em 1898, a expedição liderada por Stanford Hopkins ao arquipélago de Galápagos notou a destruição em larga escala de áreas de nidificação de tartarugas invadidas por cães 32; o mesmo se verificou com as iguanas terrestres no noroeste da ilha, onde grande número de animais foram dizimados 33. Nessa época, os cães selvagens eram inclusive descritos como “pragas terríveis” 34.
Atualmente, muitos parques liberam o acesso para passeios com animais de estimação, mas exigindo o uso da coleira, que muitas vezes não é respeitado, oferecendo riscos para a fauna presente nessas áreas. Um estudo realizado durante os anos de 1991 a 1998 no Mornington Peninsula National Park, na Austrália, conhecido pela importância da reprodução da Thinornis rubricolli (ave marinha nativa desse país), observou que, após sete anos de campanhas de conscientização e aplicação das leis, apenas 22,4% dos cães eram controlados por guias 35.
Os cães podem atacar, esmagar e causar muitas vezes o abandono de ninhos 36,37, além de o estresse da perseguição poder resultar em morte da presa 28. Em uma pesquisa de percepção das atitudes dos proprietários de cães perante a conservação de aves, realizada com visitantes das praias da Nova Zelândia, mesmo sabendo da ameaça aos pássaros nidificantes, quase a metade dos entrevistados (42%) acreditavam que se devia permitir a presença de cães nas praias 38.
O principal desafio para a conservação das aves marinhas se deve ao compartilhamento de habitats costeiros com seres humanos e animais de estimação. Seria necessária uma distância mínima de cerca de 30 metros da concentração de aves limícolas, como o maçarico-branco (Calidris alba), associada ao uso de coleiras nos cães, evitando assim que esses animais corram livremente, e, em consequência, permitindo que as aves costeiras gastem mais tempo procurando alimento e evitando os seres humanos e os animais 39.
No Brasil, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em conjunto com outras instituições, elaborou o Plano de Ação Nacional para Conservação das Aves Limícolas Migratórias (PAN Aves Limícolas Migratórias), um de cujos objetivos consiste em reduzir o impacto de animais domésticos nas áreas de ocorrência dessas aves. As interferências antrópicas negativas ocorrem devido à caça e à coleta de ovos para consumo ou à predação por animais domésticos, e pelo trânsito de pessoas nos locais de forrageamento, dificultando o ganho energético e consequentemente o voo e o sucesso reprodutivo 40.
Considerações finais
É crescente o apelo da população a locais que permitam o acesso de animais domésticos, particularmente de companhia, e os pedidos por praias amigas dos cães já são uma realidade em vários municípios litorâneos brasileiros. A criação de praias amigas dos cães deve considerar cuidadosamente os impactos sobre a flora e a fauna nativa, bem como as condições higiênico-sanitárias das areias e das águas.
Para atender a esses cidadãos e seus animais, uma alternativa é a criação de locais específicos em praias que não possuam fauna marinha ou terrestre, e em que os tutores mantenham permanentemente os seus animais sob guarda, visando reduzir os danos ao ecossistema local. De extrema importância ao liberar o acesso de animais às praias é o comprometimento dos tutores em seguir as regras que devem reger esses locais, garantindo a segurança dos animais, dos banhistas e a preservação do ambiente.
É imprescindível que, mesmo no local especifico para os animais na praia, eles sejam mantidos com guia e coleira, apresentem plaquinha de identificação na coleira e/ou microchip, tenham atestado veterinário de sanidade, e que seus tutores se responsabilizem pelo recolhimento dos dejetos.
A criação de praias amigas dos cães deve também considerar a opinião da população que as frequenta, bem como dos residentes da região; por isso, é importante realizar consultas públicas e projetos-pilotos antes da efetiva criação desses espaços, bem como acompanhar o fluxo de ações a ser seguido quando da criação de praias/parques amigos dos cães (Figura 3).
Somente com a escolha de um local apropriado, sem fauna ou onde a presença de cães não afete a fauna nativa marinha e terrestre, e com a aceitação da população residente e dos frequentadores do local, a conscientização dos tutores em relação a suas obrigações quando fizerem uso da praia junto aos seus animais, o monitoramento sanitário das areias e a fiscalização ativa durante o período mais movimentado do ano, é possível a criação de praias amigas dos cães, garantindo assim a segurança e a saúde dos frequentadores e de seus animais de companhia, e também a preservação da fauna e da flora nativas da região. É de crucial importância um prévio e adequado estudo e o planejamento das consequências, mesmo que em áreas aparentemente de pouco impacto ambiental, feitos com respaldo técnico de médicos-veterinários, biólogos, zootecnistas e outros profissionais afins.
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