Histórico da medicina veterinária do coletivo no Brasil
Etapas rumo a uma interação humana, animal e ambiental mais positiva
A medicina veterinária do coletivo é uma área relativamente nova no Brasil e faz a interação da saúde coletiva, da medicina de abrigos, da medicina veterinária legal e da medicina veterinária de desastres. Surgiu com base na medicina de abrigos (shelter medicine) e com a evolução legal e ética quanto às estratégias para o manejo de cães e gatos abandonados no Brasil. Mas é matéria mais ampla, preenchendo a lacuna existente entre as práticas para a promoção da saúde dos indivíduos, famílias e comunidades e para o alcance do bem-estar único, sob a estratégia da saúde única. O profissional inserido nesse campo de atuação trabalha diretamente com a saúde única, em busca de medidas para garantir o bem-estar animal, bem como boas condições para a saúde pública, relacionando assim a saúde humana, animal e ambiental. O presente trabalho tem por objetivo descrever a história da medicina veterinária do coletivo no Brasil.
No final do século XIX, iniciaram-se a captura e a eliminação de animais objetivando o controle da raiva, tendo como base a descoberta recente da presença do vírus causador da doença na saliva de cães por Louis Pasteur. Para o sacrifício de animais errantes eram utilizados métodos violentos como asfixia, choque elétrico, afogamento, pauladas e envenenamento, entre outros. Nesse mesmo período, formaram-se as primeiras entidades de proteção animal 1.
As organizações não governamentais (ONGs) foram de fundamental importância na mudança de visão acerca do manejo populacional de cães e gatos. Em consequência da incessante pressão social acerca da captura e do extermínio de animais, iniciaram-se debates sobre o assunto e a inserção de animais de companhia no conceito de “coletividade”, o que resultou no desenvolvimento de ações que promoviam a saúde 2.
A partir disso, mudanças significativas começaram a acontecer. Em meados dos anos 1990, principalmente no estado de São Paulo, a sociedade pressionava as autoridades para uma mudança de postura em relação aos animais errantes, visto que a raiva transmitida por cães se encontrava sob controle e o conceito de controle populacional ético já era discutido no Brasil. Tornava-se necessária a implantação de ações relacionadas à promoção da saúde 3.
No ano de 1995 ocorreu a 1° Conferência Internacional Pet Respect, realizada por meio de uma parceria entre a World Society for the Protection of Animals (WSPA, atualmente World Animal Protection – WAP) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), que trouxe práticas e conceitos novos para o manejo populacional de cães e gatos, tendo como pilares a educação em guarda responsável, o registro e a identificação dos animais, o controle reprodutivo em alta escala e a criação de legislação sobre o tema 4. Em 1996 a Prefeitura de Taboão da Serra, SP, em parceria com a ONG Arca Brasil, implantou um Programa de Manejo Populacional de Cães e Gatos (MPCG) executando ações de controle reprodutivo, registro e identificação, educação para a guarda responsável e capacitação em castrações minimamente invasivas (Figura 1). Na sequência, outros municípios do estado de São Paulo também implantaram estratégias para o MPCG.
Já no ano de 1999, o Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal (FNPDA) financiou novo método de eutanásia de cães e gatos no Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo (CCZ-SP), colocando fim ao uso de câmaras de descompressão para a eliminação dos animais 1.
Em 2000, o Instituto Pasteur lançou o Manual técnico: Controle de populações de animais de estimação 5, contendo recomendações acerca do manejo populacional canino e felino. Em 2003, ocorreu uma importante reunião com profissionais especialistas em manejo populacional de cães e gatos no Rio de Janeiro. A WSPA (atualmente WAP) e a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS) realizaram o evento Reunión Latinoamerica de Experts em Tenencia Responsable de Mascotas y Control de Poblaciones (Figura 2), concluindo que a eutanásia de animais sadios não auxiliava a construção de uma cultura de guarda responsável na sociedade 1. Também ressaltou a importância da socialização dos cães para prevenção de ataques e mordeduras.
A partir desse evento, em 2004 surge o Instituto Técnico de Educação e Controle Animal (Itec), atualmente Instituto de Medicina Veterinária do Coletivo (IMVC), uma organização não governamental com a finalidade de auxiliar e capacitar municípios a adotar ações de manejo populacional de cães e gatos. Dentre os objetivos do IMVC estava a capacitação de gestores, agentes, médicos-veterinários e outros profissionais para atuar embasados em conhecimentos científicos e de forma ética na implantação de programas de manejo populacional de cães e gatos, bem como a aplicação do manejo etológico desde o recolhimento dos animais soltos em vias públicas, e também as demais práticas dentro dos centros de controle de zoonoses (CCZs). A entidade já propunha o controle reprodutivo, o registro e a identificação, o manejo etológico, a educação para a guarda responsável, a criação de legislação e o controle de recursos ambientais como parte de políticas públicas eficientes para o MPCG 3.
Assim teve início o primeiro curso de capacitação, denominado Curso de Formação de Oficiais de Controle Animal (Curso Foca), atualmente denominado Curso de Medicina Veterinária do Coletivo e de Formação de Oficiais de Controle Animal (Curso MVC/Foca). A criação do curso foi de grande importância, pois era muito comum nas cidades brasileiras a eliminação de animais sem que houvesse nenhuma preocupação com o seu bem-estar. No Brasil, essa realidade de captura e eliminação perdurou por muitos anos, caracterizando-se como política pública de controle da raiva, sendo conhecida na época como “carrocinha”. Os profissionais responsáveis por realizar essa captura e eliminar tais animais não eram capacitados, resultando em estresse e sofrimento para os animais (Figura 3) e para os trabalhadores envolvidos, sendo os animais mantidos de três a cinco dias em canis para, posteriormente, serem mortos 1.
Assim, o Curso Foca veio para cuidar da capacitação pessoal, com a finalidade de formar profissionais atuantes na disseminação de informações visando transformar e mudar o pensamento das pessoas a respeito da forma correta de resgate seletivo de animais. Foi e ainda é um curso pioneiro no Brasil, sendo o único que atua nessa proposta, tendo capacitado cerca de 4 mil profissionais em toda a América Latina e em Portugal 3.
Em 2005, a OMS organizou um grupo de trabalho para discutir o manejo de cães de rua, que definiu três métodos principais para o equilíbrio dessa população: restrição de movimento, controle de habitat e controle de reprodução 6. Em 2006, um marco histórico aconteceu no Brasil: o estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei nº 4.808, proibiu a eliminação de animais como método de controle populacional 7. Tal acontecimento influenciou outros estados a seguirem o exemplo, disseminando o movimento de respeito à vida por quase um terço da nação brasileira (Figura 4).
Estado | Ano | Número da lei |
Rio de Janeiro7 | 2006 | Lei Estadual nº 4.808 |
São Paulo 8 | 2008 | Lei Estadual nº 12.916 |
Rio Grande do Sul 9 | 2009 | Lei Estadual nº 13.193 |
Pernambuco 10 | 2010 | Lei Estadual nº 14.139 |
Paraná 11 | 2012 | Lei Estadual nº 17.422 |
Minas Gerais 12 | 2016 | Lei Estadual nº 21.970 |
Mato Grosso do Sul 13 | 2018 | Lei Estadual nº 10.740 |
Alagoas 14 | 2018 | Lei Estadual nº 7.974 |
Paraíba 15 | 2018 | Lei Estadual nº 11.140 |
Figura 4 – Descrição dos estados brasileiros que têm legislação estadual específica proibindo a utilização da eutanásia como método de controle populacional de cães e gatos
A partir desse movimento, estabeleceu-se uma exigência maior para mudar políticas internas de CCZs no Brasil, uma vez que os animais passaram a permanecer mais tempo nesses locais. A manutenção dos animais implicava então garantir saúde física e níveis adequados de bem-estar, e a necessidade de abordagens diferenciadas da clínica médica, com enfoque individual. Iniciava-se a aplicação do conhecimento da medicina de abrigos no Brasil, já disseminada em outros países desde a década de 1980 1.
Com o decorrer dos anos, a medicina veterinária do coletivo no Brasil começou a entrar em evidência, tendo o primeiro artigo sobre a área publicado em 2009 16. Nesse mesmo ano, por meio do Programa de Proteção e Bem-estar de Cães e Gatos da Cidade de São Paulo (Probem-SP), foi realizado o primeiro curso de medicina veterinária do coletivo. O evento contou com o apoio internacional do Centro de Pesquisa da Interação da Saúde Animal, Humana e Ecológica (CISAHE) da Universidad de La Salle, Colômbia, da Secretaria de Estado da Saúde, do Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo (CCZ-SP) e do Instituto Técnico de Educação e Controle Animal (Itec). A primeira Conferência Internacional de Medicina Veterinária do Coletivo foi realizada em 2010 na Universidade de São Paulo (USP).
Ainda como marco histórico, em 2011 foi ofertada a primeira disciplina de medicina veterinária do coletivo no Brasil, alocada na grade curricular do curso de medicina veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Além disso, a residência na área também surgiu na mesma universidade nesse mesmo ano, tendo parceria com a Prefeitura de São José dos Pinhais para o desenvolvimento das atividades 17.
Apesar de muitos médicos-veterinários já estarem realizando o MPCG, somente em 2017 foi publicada a Lei Federal nº 13.426 de 30 de março sobre as políticas de controle de natalidade de cães e gatos e os programas educacionais sobre propriedade, posse ou guarda responsável e noções de ética acerca do assunto 18. Nesse contexto, com base em tantos acontecimentos históricos nessa linha do tempo, nasceu a medicina veterinária do coletivo no Brasil, uma nova área de especialidade dentro do universo da medicina veterinária, com o objetivo de eliminar algumas lacunas ainda existentes na formação do médico-veterinário, fazendo a integração de áreas tão importantes para a saúde pública. Uma nova formação necessária para atender à demanda existente de profissionais especializados na promoção da interação humana, animal e ambiental positiva, com interseção das áreas de saúde coletiva, medicina de abrigos e medicina veterinária legal.
Referências
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