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Estratégia para avaliação de violência no âmbito da família multiespécie

Proposta de inclusão do animal de estimação na ficha de atendimento de mulheres vítimas de violência para rastreamento e avaliação

Créditos: megaflopp Créditos: megaflopp

Introdução

Sabe-se que no ambiente familiar a interação entre seres humanos e animais faz com que estes sejam tão vulneráveis à violência quanto a família, visto que são considerados membros do núcleo familiar 1.

Nos dias atuais, a comunidade científica reconhece a existência do elo entre a violência interpessoal e os maus-tratos aos animais (teoria do elo), que comprova que as pessoas que agridem animais têm maior probabilidade de violentar seres humanos. Portanto, os maus-tratos aos animais podem ser sentinelas de violência na sociedade 2.

A aceitação de uma cultura que considera os seres humanos superiores, acompanhada da condição de dependência dos animais de estimação em relação a seus tutores, são particularidades essenciais na condição de vulnerabilidade de cães e gatos perante a ocorrência de maus-tratos 3. A ocorrência de maus-tratos físicos e de negligência para com os animais pode ser indicativa do mesmo comportamento com seres humanos, especialmente na infância 4.

A partir desses fatos é possível entender que quando uma família se encontra em situação de violência, os animais também estarão, o que define a importância de trabalhar os diversos tipos de violência familiar em conjunto com os maus-tratos a animais, com o intuito de promover a quebra desse ciclo de violência. Na relação entre animais e seres humanos, cães e gatos podem ser utilizados como um mecanismo de violência psicológica, intimidação e controle da vítima humana. Isso porque a preocupação com o animal serve como uma forma de evitar a realização da denúncia contra o agressor, impedindo a saída da vítima do ciclo da violência 2.

Estudos sobre a relação da violência de gênero com a crueldade contra animais realizados em 1996 com um grupo de 38 mulheres alojadas em abrigos, vítimas da violência dos companheiros, revelam que 71% dessas mulheres relataram a ocorrência de ameaças, ferimentos ou morte de seus animais. Num segundo estudo desses mesmos pesquisadores, realizado com uma amostra constituída por 101 mulheres, os resultados indicaram um índice de 70,3% de narrativas de agressões contra animais, referendando os resultados anteriormente obtidos 5.

Os dados de pesquisas sobre a correlação de atos violentos levaram à conclusão de que os maus-tratos contra animais não têm merecido a atenção necessária como indicadores do mesmo comportamento com pessoas. Sugerem ainda que estes podem ser precursores de maus-tratos a seres humanos, incluindo violência interpessoal, abuso e negligência na infância, violência entre cônjuges, estupro e homicídios 4.

Outros resultados que correlacionam os maus-tratos a animais e a violência contra seres humanos foram obtidos em um estudo que comparava grupos de crianças de lares não violentos e de lares com história de violência doméstica. No último grupo identificaram-se maior frequência e maior severidade de comportamentos violentos contra animais 6. Investigando essa associação, encontrou-se uma taxa de prevalência de 60% interligando os dois tipos de violência 7.

A violência doméstica relacionada à violência contra os animais é uma realidade que deve ser prevenida e punida por meio de uma abordagem preventiva tanto no âmbito social quanto no âmbito jurídico. Diante disso, propôs-se aos órgãos de proteção à mulher, como a Casa da Mulher Brasileira de Curitiba-PR, a Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher e a Ronda Maria da Penha de Juazeiro, BA, que realizassem uma nova abordagem multissetorial que incluísse os animais, a fim de promover um levantamento de dados sobre essa relação e visualizar o cenário real nesses municípios em torno dessa temática.

A Casa da Mulher Brasileira (CMB), uma iniciativa do governo federal prevista no programa Mulher: Viver sem Violência, é um espaço de acolhimento e atendimento humanizado que promove assistência integral e humanizada às mulheres em situação de violência. A ficha de atendimento da CMB é composta por oito blocos que abordam informações gerais para: controle administrativo (bloco I); informações pessoais da vítima (bloco II); tipologia da violência (bloco III); perfil do agressor (bloco IV); existência de dependentes (bloco V); atendimentos e encaminhamentos (bloco VI); observações (bloco VII;) e dados do profissional responsável pelo atendimento (bloco VIII).

Para aprimoramento da ficha e levantamento de dados sobre casos de maus-tratos a animais associados a violência interpessoal na cidade de Curitiba, PR e região metropolitana, sugeriu-se um bloco adicional (bloco IX) relativo a informações sobre a presença ou não de animais de estimação na família; o número de animais e as espécies presentes; quem é o proprietário e cuidador do animal; o que ele representa para a vítima; se o animal já havia sido agredido; que tipo de agressão foi cometido; quem foi o autor da agressão; o motivo da agressão; e quem havia sido a primeira vítima do agressor. Esse bloco permite um melhor entendimento dos fatores determinantes do ciclo da violência, além de uma visão mais holística dos casos, permitindo a elaboração de estratégias e articulações para prevenção e enfrentamento efetivo da violência.

A Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) da cidade de Juazeiro, BA, é uma unidade operativa da Polícia Civil (PC-BA) que faz parte da rede de enfrentamento à violência contra a mulher no estado da Bahia, assim como a Ronda Maria da Penha, implantada no estado pela Polícia Militar da Bahia (PM-BA), ambas fruto de uma cooperação técnica entre as secretarias estaduais de Políticas para as Mulheres (SPM-BA) e de Segurança Pública (SSP), a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça da Bahia (Figuras 1 e 2).­

 

Figura 1 – Reunião com o Comando de Policiamento Regional Norte da Polícia Militar da Bahia, em parceria com a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR), para falar sobre a teoria do elo e propor a ficha a ser usada pela Ronda Maria da Penha de Juazeiro, BA. Na foto, a capitã Bruna Gracielle Nascimento, a tenente Ana Maria Almeida, o coronel José Anselmo Bispo, o MV e prof. dr. Alexandre Redson, da Univasf, e a MV Yasmin da Rocha, aluna de mestrado da UFPR. Créditos: Yasmin da Silva Gonçalves da Rocha

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Figura 2 – Encontro para apresentação da teoria do elo e da ficha a ser implantada na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Juazeiro, BA. Na foto, as estagiárias Eduarda Estrela da Silva e Milena Glória de Souza, a Delegada Rosineide Motta, as investigadoras Polianna Niedja e Maria Lúcia de Oliveira, e o investigador Jonas Vieira. Créditos: Yasmin da Silva Gonçalves da Rocha

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Utilizando como base a ficha original da CMB e agregando os questionamentos do bloco adicional sobre os animais domésticos, foi elaborada uma nova ficha (Figura 3) para implantação de um protocolo de rastreamento de maus-tratos aos animais em lares violentos na cidade de Juazeiro, BA, a ser aplicada pela Deam e pela Ronda Maria da Penha nos casos que acompanham ou venham a acompanhar futuramente. O objetivo é conhecer o real cenário desse elo na cidade de Juazeiro, BA, com a expectativa de ampliar o uso desse protocolo para as demais cidades do estado. O diagnóstico auxiliará na identificação de estratégias efetivas para quebrar o ciclo da violência doméstica.

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Ficha de atendimento                                                                                                                 Nº da ocorrência: _____________
Bloco I – Informações da vítima Endereço:
Bairro:
Idade:
Possui algum tipo de deficiência ?
1-Sim               2-Não                        3-Ignorado

Se sim, que tipo de deficiência ?
1- Auditiva           2-Física          3-Mental       
4-Visual     5-Outras deficiências: ____________________      6-Ignorado

Raça/cor:
1-Amarela       2- Branca            3-Indígena
4-Afrodescendente            5- Ignorado
Gestante:
1-1º trimestre           2-2º trimestre             3-3º trimestre
4-Não        5-Não se aplica          6-Ignorado
Orientação sexual (opcional):
1-Assexual         2-Bisexual         3-Heterossexual
4-Lésbica          5- Ignorado
Identidade de gênero (opcional):
1-Cisgênero     2-Intersexo     3-Transexual
4-Travesti       5-Ignorado
Estado civil:
1- Casada/União estável    2-Divorciada    3-Separada    4-Solteira    5-Viúva    6-Outro

Escolaridade:
1- Sem escolaridade    2-Ensino fundamental incompleto    3-Ensino fundamental completo
4-Ensino médio incompleto    5-Ensino médio completo    6-Ensino superior incompleto
7-Ensino superior completo    8-Ignorado

Renda média mensal individual :
1- Não tem renda     2-Até meio salário mínimo    3-Mais de meio até 3 salário mínimos
4-Mais de 3 até 5 salários mínimos      5-Mais de 5 até 10 salários mínimos
6-Mais de 10 mínimos      7-Ignorado
Tem filhos ?
1-Sim     2-Não
Quantos ?
1-Um     2-Dois     3-Três     4-Quatro
5-Cinco     6-Mais de cinco      7-Não se aplica
Bloco II – Tipologia da violência

Tipo de violência sofrida:
1-Assédio moral    2-Cárcere privado    3-Física    4-Institucional    5- Moral     6-Negligência/abandono
7- Patrimonial    8- Psicológica    9- Sexual     10-Tentativa de assassinato    11-Tráfico de seres humanos
12-Outro: __________________________________________________     13-Não se trata de violência

Bloco III – Autor/a da violência Vínculo com o(s)/a(s) autor(es)/a(s) da violência:
1-Agente de segurança pública    2-Amigo/a/conhecido    3-Cônjuge/companheiro    4- Desconhecido/a
5-Empregador/a    6-Ex-cônjuge/ex-companheiro/a    7-Ex-namorado/a     8-Filho/a
9-Irmão/a    10-Namorado/a    11-Outro/a parente    12-Padrasto/madrasta    13-Pai/mãe
14-Pessoa com relação institucional (servidor/a do Estado)    15- Outro: _______________________________________________
Número de envolvidos/as:
1- Um/a    2-Dois/duas    3-Ignorado
Sexo do(s)/das autor(es)/a(s) da violência:
1-Feminino    2-Masculino    3-Ambos
Bloco IV – Animal doméstico Tem animais de estimação ?
1-Sim    2-Não
Quais ? Colocar a quantidade ao lado
1- Cão ___    2-Gato ___    3-Ave ____    4-Outros: ___________
De quem é o animal ?
1-Meu    2-Do agressor    3-De todos    4-De outro membro da família (especificar): ______________________________________

Quem cuida do animal ?
1-Eu    2-O agressor    3-Todos cuidam    4-Outro membro da família (especificar): _______________________________________

O que o animal de estimação (que possui) representa para você ?
1-Companhia    2-Membro da família    3-Cuidador da casa    4-Outros (especificar): ___________________
O animal de estimação já foi agredido no ambiente familiar (na casa) ?
|1-Sim    2-Não
Se sim, quais das situações abaixo o animal sofre ou já sofreu ?
1-Espancamento    2-Ficou sem alimento    3-Agressão psicológica (gritos, ameaças)    4-Ficou preso    5-Outras (especificar): ____________________________________________________
Quem foi responsável pela situação imposta ao animal ?
1-O mesmo agressor que te agride    2-Seus filhos/as    3-Você mesma por imposição do agressor/a   
4-Você mesma sem imposição do agressor/a     5-Outros (especificar): ______________________________
Quem foi a primeira vítima do agressor/a ?
1-Animais de estimação    2-Você mesma    3-Filhos/as    4-Outros (especificar): ___________
Para te amedrontar por algum motivo, o agressor/a:
1-Já ameaçou machucar o animal de estimação    2-Já machucou o animal de estimação    3-Já ameaçou matar o animal de estimação
4-Já matou algum animal de estimação    5-Alguma outra situação com o animal de estimação (especificar): _________________________________
Figura 3 – Ficha elaborada para utilização das polícias Civil e Militar do estado da Bahia, baseada na ficha original da Casa da Mulher Brasileira de Curitiba, PR, com questionamentos sobre os animais domésticos

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A proposta de inovação da ficha não cabe apenas a essas instituições, mas serve de modelo para a utilização e a adaptação de questionários utilizados nos diversos serviços de proteção às pessoas e animais que ainda não reconhecem a visão desse novo conceito de família, a família multiespécie, ou não trabalham com ela. O registro dessas ocorrências deve ter como base o entendimento de que a violência contra os animais dentro dos lares é indicativa de outras infrações penais nesses cenários.

Espera-se que essa proposta favoreça uma nova abordagem e uma visão mais completa sobre o ambiente familiar, com um olhar voltado para todos os membros humanos e não humanos que o compõem, tanto por parte dos que atuam nas esferas preventivas quanto na esfera da polícia judiciária. Fazem-se necessários um trabalho multidisciplinar e multissetorial e o compartilhamento de recursos e conhecimentos entre as diversas áreas envolvidas para o desenvolvimento de iniciativas políticas que promovam um ambiente familiar mais seguro.

 

Referências

01-MONSALVE, S. ; ROCHA, Y. S. G. ; GARCIA, R. C. M. Teoria do elo: a relação entre os maus-tratos aos animais e a violência interpessoal. In: GARCIA, R. C. M. ; CALDERÓN, N. ; BRANDESPIM, D. F. Medicina veterinária do coletivo: fundamentos e práticas. 1. ed. Campo Limpo Paulista: Integrativa Vet, 2019. p. 160-171. ISBN: 978-65-80244-00-3.

02-MONSALVE, S. ; FERREIRA, F. ; GARCIA, R. C. M. The connection between animal abuse and interpersonal violence: a review from the veterinary perspective. Research in Veterinary Science, v. 114, p. 18-26, 2017. doi: 10.1016/j.rvsc.2017.02.025.

03-VERMEULEN, H. ; ODENDAAL, J. S. J. Proposed typology of companion animal abuse. Anthrozoös: A Multidisciplinary Journal of the Interactions of People & Animals, v. 6, n. 4, p. 248-257, 1993. doi: 10.2752/089279393787002178.

04-BECK, A. Guidelines for planning for pets in urban areas. In: FOGLE, B. Interrelations between people and pets. 1. ed. Springfield: Charles C. Thomas Publisher, p. 231-241, 1981. ISBN: 978-0398061234.

05-ASCIONE, F. R. Domestic violence and cruelty to animals. Latham Letter, v. 17, n. 1, p. 13-16, 1996.

06-ASCIONE, F. R. Battered women’s reports of their partners’ and their children’s cruelty to animals. Journal of Emotional Abuse, v. 1, n. 1, p. 119-133, 1997. doi: 10.1300/J135v01n01_06.

07-ASCIONE, F. R. ; BARNARD, S. ; SELL-SMITH, J. ; BROOKS, S. Animal abuse and developmental psychopathology: tecent tesearch, programmatic, and therapeutic issues and challenges for the Future. In: FINE, A. H. Handbook on animal-assisted therapy: theoretical foundations and guidelines for practice. 2. ed. Academic press, 2010, p. 361. ISBN: 9780123694843