Doença endêmica ou emergente
Causadora de importantes prejuízos econômicos e sanitários, principalmente em rebanhos pecuários, a brucelose é uma zoonose negligenciada provocada por bactérias do gênero Brucella spp., que também acomete animais de companhia e é subnotificada em casos humanos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) 1.
O aumento do número de casos em pessoas tem sido uma preocupação na área de infectologia médica, principalmente devido ao pouco conhecimento da doença por profissionais da saúde e à sintomatologia inespecífica, culminando em uma falha no sistema de notificação graças às poucas informações sobre antecedentes epidemiológicos que justifiquem a suspeita 2. A positividade dos casos de brucelose em seres humanos se dá em três populações de risco distintas: profissionais de laboratórios envolvidos em acidentes, profissionais do manejo de bovinos e consumidores de produtos lácteos não pasteurizados 1,3.
Em 2017, a Organização Pan-americana da Saúde (Opas), por meio do Centro Pan-americano da Febre Aftosa (Panaftosa), concluiu o levantamento de zoonoses emergentes e endêmicas de importância e entregou-o aos ministérios da Saúde e da Agricultura de 33 países da América Latina e do Caribe, determinando que o impacto se apresenta maior em populações negligenciadas 1,3.
Desses, 31 países responderam aos questionamentos: Argentina, Bahamas, Barbados, Bermuda, Brasil, Bolívia, Ilhas Cayman, Chile, Colômbia, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname, Uruguai, Trinidad e Tobago, Ilhas Turcas e Caicos e Venezuela. A pesquisa mostrou que a brucelose é considerada uma das três zoonoses emergentes mais citadas pelos ministérios da saúde pesquisados e a principal zoonose endêmica citada pelos ministérios da Agricultura (Figura 1), demandando uma necessidade de integralização e alinhamento dos dois ministérios para realizar levantamentos epidemiológicos de zoonoses importantes 3.
Programas sanitários – PNCEBT
Em junho de 2017, foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) o “Regulamento Técnico do Programa Nacional de Controle e Erradicação de Brucelose e Tuberculose (PNCEBT)” pela Instrução Normativa nº 10/2017 4 da Secretaria Nacional de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). O programa havia sido atualizado recentemente por meio da Instrução Normativa nº 19 (revogada no final de 2016 5), e traz diretrizes na tentativa de diminuir e erradicar a doença.
A vigência desse novo programa foi estabelecida após termo de cooperação técnica entre o Mapa e a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ/USP), publicado no Diário Oficial da União em 1º de janeiro de 2003, processo nº 21.000.009.003/2002-59, cujo objetivo contempla estudos epidemiológicos no âmbito do PNCEBT, como a caracterização da situação epidemiológica da brucelose e da tuberculose bovinas nas unidades federativas brasileiras (UF).
Nesses estudos, foram considerados fatores e variáveis que pudessem estar associados à prevalência da doença nas unidades federativas. Dentre as variáveis analisadas, destacam-se: número de bovinos, sistema de exploração (carne, leite e misto), tipo de criação (confinado, semiconfinado, extensivo), uso de inseminação artificial, raças predominantes, número de vacas com idade superior a 24 meses, presença de outras espécies domésticas, presença de animais silvestres, destino da placenta e dos fetos abortados, compra e venda de animais, vacinação contra brucelose, abate de animais na propriedade, aluguel de pastos, pastos comuns com outras propriedades, pastos alagados, piquete de parição e assistência veterinária 6.
O que de fato muda na nova revisão?
A figura 2 representa a estratégia de atuação do PNCEBT baseada na classificação das unidades federativas (UF) quanto à prevalência em foco (um ou mais animais positivos por propriedade) e às ações executadas no combate a doença. Ou seja, a definição de procedimentos de defesa sanitária animal a serem adotados será: os estados que receberem a classificação E (prevalência desconhecida) deverão realizar estudos epidemiológicos para conhecerem sua prevalência, além de ser obrigatória a cobertura vacinal de 80% do rebanho; os classificados em D e C (prevalências conhecidas acima de 10% e entre 5 a 10% respectivamente) deverão realizar cobertura vacinal de 80% do rebanho até que a prevalência diminua; os classificados em B (prevalência entre 2 a 5%) deverão realizar cobertura vacinal de 80% do rebanho, saneamento obrigatório de focos detectáveis e vigilância epidemiológica para detecção de focos; e os classificados em A (prevalência abaixo de 2%) poderão ser livres de vacinação mas com saneamento obrigatório de focos detectáveis e vigilância epidemiológica para detecção de focos 4.
Outras alterações além dessa classificação 7
Outras alterações que foram feitas além dessa classificação devem ser mencionadas, como:
1. Ficará a encargo das Unidades Federativas a criação de Comissões Estaduais de Combate à Brucelose e à Tuberculose, que deverão auxiliar na criação de políticas públicas estaduais para a viabilização dos procedimentos de combate às doenças e na elaboração e manutenção de fundos para indenização do produtor rural cujos animais sejam abatidos devido ao diagnóstico;
2. A emissão de Guia de Trânsito Animal (GTA) para deslocamento interestadual de bovinos e bubalinos, qualquer que seja a finalidade e não só para a reprodução, será condicionada aos testes diagnósticos negativos, dependendo da Unidade Federativa a que o animal se destina. Apenas os estados classificados como risco muito baixo ou desprezível continuarão apresentando os testes apenas para animais destinados a reprodução;
3. A vacinação e a marcação nos animais também sofreram alterações, sendo a principal a utilização da vacina não indutora de anticorpos aglutinantes, Rb51, até mesmo em fêmeas jovens – o ponto mais crítico das alterações, pois, como já dito, os acidentes vacinais ainda são causa de brucelose humana.
Ou seja, ainda que os estudos oriundos do Termo de Cooperação entre Mapa e USP tenham levado em consideração a presença de outras espécies domésticas coabitando com bovinos, nada foi incluído a esse respeito no novo PNCEBT.
Diagnóstico epidemiológico
Logo após a revisão e a publicação do novo PNCEBT, realizou-se em Castro, a maior bacia leiteira do Paraná, o evento Brucelose: Diagnósticos e Zoonoses, por uma demanda da Vigilância Sanitária do município devido ao aumento de notificação dos casos de brucelose na região.
Vale lembrar que as notificações ganharam atenção após o estabelecimento do Protocolo de Manejo Clínico e Vigilância em Saúde para Brucelose Humana no Estado do Paraná 8. Estados como Santa Catarina e Tocantins possuem protocolos semelhante ou em processo de finalização, respectivamente, demonstrando a importância do fluxograma (Figura 3) e do conhecimento real da dimensão da doença, além de nortear as ações dos profissionais da saúde para determinar a fonte de transmissão.
Uma das maiores preocupações das secretarias municipais de Saúde é com a utilização da vacina Rb51 pelos profissionais das áreas de risco (descritas abaixo), visto que ela é formulada com uma amostra atenuada de Brucella abortus rugosa, originada de amostra lisa virulenta que sofreu mutação e sucessivas passagens. Por ser amostra rugosa, não induz à formação de anticorpos anti-LPS lisos, o que faz com que os testes sorológicos de rotina para Brucella sp., baseados na detecção desses anticorpos, não tenham sucesso 1. Com isso, o protocolo também não contempla espécies importantes para a saúde pública, como por exemplo a Brucella canis.
Entre as ocupações e a exposição consideradas de risco, conforme o protocolo paranaense, estão:
a) profissionais de manejo de animais vivos e abatidos:
tratadores de animais, médicos veterinários e seus auxiliares, e agropecuaristas, entre outros;
b) trabalhadores de frigoríficos, abatedouros e açougues, durante o abate e a manipulação de produtos de carnes e vísceras;
c) trabalhadores de ordenha e fabricação de produtos lácteos e atividades assemelhadas;
d) acidentes durante a aplicação de vacinas: por inoculação dérmica durante a aplicação da vacina animal ou contato do líquido vacinal em mucosas;
e) acidentes laboratoriais: manipulação de culturas de bactérias, aspiração de culturas e aerossóis, contato direto com a pele e conjuntivas;
f) manipulação de material biológico por profissionais de saúde.
Porém, o protocolo não inclui estudantes de medicina veterinária, embora diversas publicações tenham noticiado contaminação nessa população 9, o que leva à seguinte pergunta: por que não exigir certificação em todas as fazendas de universidades? O protocolo tampouco inclui controladores de espécies invasoras (caçadores), regulamentados pelo Ibama 10 como grupos de risco – apesar de nesse caso existirem esforços de pesquisadores da Embrapa no sentido de oferecer treinamento a essas pessoas para que possam se proteger.
Brucelose canina
Como já foi relatado anteriormente, temos dois problemas até aqui: programas sanitários que não englobam outras espécies domésticas; e protocolos de notificação de brucelose humana que não contemplam diagnóstico de bactérias de membrana rugosa, como a Brucella canis. Além disso, há relatos de sorologia positiva para Brucella abortus em cães, sendo a B. abortus a mais patogênica em se tratando do Brasil.
Existem alguns estudos no Brasil referentes a brucelose canina, porém são escassos e descontinuados. A maioria são inquéritos sorológico s realizados em diferentes regiões, e embora o caráter zoonótico deva ser considerado, pouco se sabe sobre a transmissão de Brucella spp. dos cães para outros animais ou para o homem 11,12.
Um grupo de trabalho da Universidade de São Paulo (USP) sob a coordenação do professor Fernando Ferreira vem retomando os estudos dessa e de outras zoonoses importantes. A responsável pelos inquéritos sorológicos relacionados a brucelose é a médica-veterinária Anaiá da Paixão Sevá, porém os resultados ainda são muito preliminares. O projeto chama-se Programa Cãoservação, e a população estudada é de cães domésticos e domiciliados, portanto em contato estreito com pessoas que adentram áreas de conservação, sendo o objetivo entender a transmissão de doenças entre as espécies 13.
Considerações finais
Todas essas considerações nos levam a pensar em como estamos distantes do controle dessa doença. O Brasil necessita de uma maior integração entre o Ministério da Agricultura e Abastecimento (Mapa) e o Ministério da Saúde (MS), bem como entre outros órgãos como o Ibama e a Embrapa, a fim de que as informações não se desencontrem e que estratégias de controle de doenças como a brucelose sejam bem estabelecidas.
Precisamos urgentemente desenvolver novas metodologias de diagnóstico que detectem bactérias de membrana rugosa como a Rb51 e a Brucella canis, nesse último caso metodologias que sejam acessíveis às clínicas veterinárias para possibilitar uma maior interação com órgãos da saúde e confiança nas notificações.
Referências
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