Barco Saúde Única
Uma iniciativa em bem-estar animal e saúde única no litoral do Paraná, Brasil

O Barco Saúde Única (BSU) é uma iniciativa que está transformando vidas e promovendo o equilíbrio ambiental em áreas de difícil acesso no litoral paranaense. Idealizado em 2018 pelo então estudante de medicina veterinária Aaron Ramathan, o projeto nasceu de uma demanda genuína das comunidades locais, que enfrentam desafios logísticos, sociais e sanitários, especialmente em relação ao manejo de cães e gatos em ilhas 1. O BSU vem ganhando forma e ampliando sua atuação, e hoje é reconhecido por integrar ações de saúde animal, educação comunitária e pesquisa científica, alinhando-se ao conceito global de saúde única, que conecta saúde humana, animal e ambiental.
Nesta entrevista, exploramos os desafios e as metodologias de trabalho; as conquistas do projeto que proporciona bem-estar às comunidades caiçaras, desde sua concepção até os resultados alcançados, com mais de 1.100 atendimentos clínicos e 300 cirurgias de castração realizadas; e os planos futuros, que servem de exemplo de uma abordagem inovadora e sustentável, contribuindo para a preservação do bioma da Mata Atlântica.
Clínica Veterinária (CV) – Como surgiu a ideia do Barco Saúde Única e qual foi a principal motivação para desenvolvê-lo?
Barco Saúde Única (BSU) – O projeto surgiu como uma demanda da própria comunidade que mora nas ilhas do litoral paranaense devido às dificuldades encontradas para lidar com a situação dos animais. Na época, em 2018, o então estudante de medicina veterinária Aaron Ramathan, idealizador do projeto, frequentava a região e criou laços com alguns moradores locais, se disponibilizando a ajudar. Em seguida, com auxílio da profa. dra. Claudia Turra Pimpão, realizaram um mutirão de castração pontual na comunidade da Ilha das Peças, onde tudo começou, e então entenderam que a necessidade era muito mais complexa e necessitava de uma abordagem mais ampla.
A motivação inicial era ajudar a comunidade tradicional e os cães e gatos que se encontravam em uma situação de vulnerabilidade. No entanto, se tornou um projeto robusto, com uma abordagem em saúde única e levantamento de questões de saúde pública, bem-estar animal e equilíbrio ambiental.
CV – Como foi o processo de planejamento inicial do projeto? Quais parcerias foram fundamentais para viabilizá-lo?
BSU – O Barco Saúde Única teve início na PUCPR, e atualmente é uma atividade de ensino, extensão e pesquisa tanto da PUCPR como da UFPR, movimentando alunos da graduação, com atividade de estágio, iniciação científica, atividade de residência, mestrado e doutorado.
Após a ação piloto na Ilha das Peças, outros integrantes se interessaram pela ideia, e foram moldando o projeto para que pudesse ser mais abrangente e eficaz para as comunidades das ilhas. Para isso, foi necessário buscar apoio do poder público, como o município de Guaraqueçaba, que compreende um território amplo de Unidades de Conservação, com 27 comunidades insulares e 23 comunidades rurais.
Para entrar no planejamento municipal e captar recursos e subsídios para a execução das ações, o BSU participou da Conferência Municipal de Saúde de Guaraqueçaba, e nela, a pauta em relação a saúde animal foi discutida e aprovada.
Ao longo dos anos contamos com apoio de outros parceiros e estendemos a atuação para o município de Morretes e comunidades indígenas do litoral norte do Paraná.
CV – Quais estratégias e métodos o projeto utiliza para realizar as atividades e diminuir as complexidades em saúde pública e bem-estar animal?
BSU – O Barco Saúde Única tem uma metodologia de atividades estabelecidas, e para cada comunidade atendida precisamos de um grande planejamento prévio. As ações são planejadas e organizadas delineando o objetivo, o local, o número de voluntários participantes, a logística de transporte, a alimentação, o alojamento, o levantamento dos insumos e materiais utilizados e o processamento e análise dos resultados obtidos.
A cada nova comunidade realizamos o que chamamos de territorialização, que consiste em visitas técnicas com o intuito de reconhecimento do local, dos líderes comunitários e da comunidade, da dinâmica das populações caninas e felinas e da disponibilidade de estrutura física para a execução da ação e o alojamento dos voluntários. Geralmente, as ações são realizadas em local cedido pela prefeitura e/ou comunidade, como escolas, salão comunitário de igreja e associação de moradores.
Em um segundo momento, realizamos a ação clínica, caracterizada por atividades de baixa complexidade, baseadas em medicina preventiva, por meio de avaliação clínica dos animais. As equipes são divididas em grupos e recebem o tutor e o animal, realizam o exame clínico geral, com anamnese e exame físico do paciente, administração de vacinas antirrábica e polivalente, administração de antiparasitários (vermífugos e controle de pulgas e carrapatos) e prescrição de medicamentos com base na avaliação veterinária (Figura 1).
A terceira fase são os mutirões de castração de cães e gatos. Normalmente, essa é a ação mais esperada pela comunidade. Aqui a equipe é separada por setores: pré-operatório, trans-operatório e pós-operatório, subdividida em tendas hospitalares, segregada por lonas, a fim de restringir o local e cumprir os padrões mínimos de assepsia cirúrgica, conforme preconiza a Resolução n° 1, de 4 de janeiro de 2019, do Conselho de Medicina Veterinária do Paraná 2. Além disso, por ser em local fechado, em caso de variações climáticas, como chuva ou vento, o ambiente para o cuidado dos animais e das pessoas é assegurado.
Os mutirões de castração são sempre um grande momento para os voluntários e a comunidade, há uma grande mobilização de todos, para que as cirurgias ocorram com segurança para o paciente e para a equipe. Todos os insumos mínimos necessários de um centro cirúrgico, como calhas cirúrgicas, instrumentais, cilindro de oxigênio, iluminação, monitor multiparamétrico e os demais aparelhos, entre outros, são levados até as ilhas. Além disso, a equipe conta com profissionais especializados em cirurgia e anestesiologia veterinária (Figura 2).
CV – Quem pode participar das ações?
BSU – As ações são organizadas pela equipe técnica do Barco Saúde Única e sempre estão alinhadas com as prefeituras municipais de Guaraqueçaba ou de Morretes, que auxiliam na logística, como o transporte, a alimentação e a estadia dos voluntários. Os voluntários são selecionados de acordo com a disponibilidade, com uma média de 10 a 25 pessoas por ação. São selecionados alunos de graduação e pós-graduação da PUCPR e UFPR e, eventualmente, profissionais externos. Não há restrição de período para que o aluno possa participar; outros profissionais da saúde ou áreas afins também são bem-vindos (Figura 3).
CV – Por favor, explique um pouco sobre as comunidades tradicionais caiçaras, seus saberes ancestrais e como o BSU auxilia na promoção da saúde única na região.
BSU – A população tradicional caiçara é composta por comunidades que habitam o litoral sudeste brasileiro, vivendo em harmonia com o meio ambiente e utilizando recursos naturais de maneira sustentável. Essas comunidades têm raízes culturais profundas, influenciadas pela fusão das tradições indígenas, africanas e europeias. Suas práticas incluem a pesca artesanal, a agricultura de subsistência e o artesanato, além de um forte vínculo com o território que ocupam. Esses saberes ancestrais refletem um conhecimento íntimo dos ecossistemas locais, como o manejo do mangue, o cultivo de plantas medicinais e as técnicas de pesca sustentável, que são transmitidos de geração em geração.
O BSU tem desempenhado um papel significativo ao respeitar e valorizar essas tradições, enquanto promove a saúde animal, humana e ambiental. Por meio de ações educativas e de diálogo, o projeto busca integrar os conhecimentos técnicos da equipe com os saberes locais, incentivando práticas de guarda responsável e manejo humanitário de animais de maneira culturalmente sensível.
Além disso, as atividades do BSU, como os mutirões de castração e os atendimentos clínicos, ajudam a resolver problemas sanitários e de caráter zoonótico que impactam diretamente a qualidade de vida da população caiçara.
A presença do projeto não apenas contribui para a redução de zoonoses, mas também fortalece a confiança da comunidade em soluções coletivas que respeitam suas práticas tradicionais e preservam o equilíbrio ecológico. Dessa forma, o BSU não apenas promove a saúde única, mas também reforça a soberania cultural e ambiental dessas comunidades, protegendo seus direitos e fortalecendo suas identidades.
CV – Como o projeto tem trabalhado a conscientização das comunidades sobre guarda responsável, saúde ambiental e manejo humanitário de animais?
BSU – A conscientização é promovida por meio de atividades educativas que envolvem crianças e adolescentes. Além disso, as ações contínuas promovem uma mudança de percepção, fomentando o diálogo e pensamento crítico sobre saúde animal, ambiental e guarda responsável.
O projeto também incentiva a soberania territorial e cultural dos povos tradicionais, preservando a cultura e os saberes ancestrais, buscando alcançar melhorias duradouras nos hábitos e nas atitudes das populações atendidas. Temos consciência de que precisamos enfatizar essa parte do projeto e estamos estudando possibilidades de ações com mais aderência e participação, como a criação do veterinário mirim, que já se mostrou eficiente em outras regiões.
CV – Quais foram os principais desafios e necessidades identificadas nas comunidades que levaram à criação do projeto?
BSU – As comunidades que residem em áreas de difícil acesso, como em ilhas, enfrentam desafios para a viabilidade dos benefícios urbanos. O acesso propriamente dito resulta em dificuldades logísticas, de abastecimento e de infraestrutura limitada, que aumentam os riscos sanitários, sociais e econômicos e prejudicam a disponibilidade de serviços básicos.
O transporte marítimo é essencial e na maioria das vezes dificultoso, devido à baixa oferta e ao alto custo. Outras questões relacionadas à falta de saneamento básico, acesso a saúde, educação e políticas públicas agravam a situação de vulnerabilidade dos moradores, apesar das belezas naturais ao seu redor amenizarem parcialmente esse sofrimento.
Dentre tantas dificuldades, o manejo populacional de cães e gatos se torna agravante quando o número crescente de animais nas comunidades começa a atrapalhar o convívio harmonioso entre seres humanos e animais, fazendo com que muitos moradores tomem medidas drásticas para evitar o número crescente, praticando atos de maus-tratos, eliminando ninhadas e envenenando animais errantes e semidomiciliados. Além disso, a grande infestação ocasionada por pulgas, carrapatos, bicho-de-pé (tungíase) e bicho-geográfico (larva migrans cutânea), além de outras zoonoses, foram determinantes para a criação do Barco Saúde Única.
CV – Quais têm sido os maiores desafios enfrentados durante as atividades em campo, especialmente em áreas de difícil acesso?
BSU – Organizar ações de mutirões em locais remotos é um grande desafio. A logística com certeza é o que mais dá trabalho para realizar, por exemplo, o planejamento e a dinâmica do transporte terrestre e marítimo para a equipe e os materiais, o alojamento, a estadia e a alimentação demandam uma dedicação especial para sair tudo de acordo com o esperado.
As condições climáticas, muitas vezes imprevisíveis, também impactam o desempenho das ações e o acesso às comunidades, pois de acordo com a região, a maré deve ser levada em consideração, e a época do ano pode interferir também devido à presença de butucas e outros insetos. A infraestrutura limitada nas áreas atendidas exige criatividade e adaptação para a realização das atividades de castração e os atendimentos clínicos em espaços improvisados. Como exemplo pode-se citar a atenção para a adaptação de iluminação e a separação dos setores de atendimento.
Algumas vezes, há desafios culturais e de conscientização, como a resistência inicial de algumas comunidades ou de moradores em compreender a importância das intervenções propostas. O objetivo principal do BSU é manter o equilíbrio ambiental e a boa convivência entre animais e pessoas, buscando a preservação da cultura local.
CV – Como as comunidades locais têm reagido às intervenções do Barco Saúde Única?
BSU – A reação das comunidades tem sido amplamente positiva, marcada por adesão crescente e envolvimento ativo nas ações. A confiança nas iniciativas do BSU aumenta à medida que os resultados das intervenções se tornam visíveis e impactam diretamente a qualidade de vida local. Um exemplo dessa confiança crescente é a mudança na percepção sobre guarda responsável e bem-estar animal, especialmente entre crianças e adolescentes, que não apenas participam das atividades educativas, mas também se tornam agentes multiplicadores desses conceitos dentro de suas comunidades. Essa relação de confiança se reflete em gestos como o de uma comunidade que, após mutirões de castração e atendimentos clínicos, organizou de forma autônoma um bingo para arrecadar recursos e viabilizar a volta do BSU. Isso demonstra o reconhecimento do impacto positivo do projeto e o desejo da população de contribuir ativamente para sua continuidade. Além disso, os moradores relatam melhorias concretas, como a redução de infestações por pulgas e carrapatos e a diminuição no número de animais errantes, o que favorece o convívio harmonioso entre pessoas e animais.
A repercussão positiva das ações também tem atraído o interesse de outras comunidades, que passam a solicitar as atividades do BSU, ampliando seu alcance e consolidando sua reputação como uma iniciativa confiável e transformadora. Idealizamos realizar uma pesquisa de satisfação em 2025, para termos dados fidedignos e saber no que mais poderíamos auxiliar as comunidades.
CV – Quais foram os principais resultados alcançados até o momento, tanto em termos de manejo populacional quanto de redução de zoonoses?
BSU – Desde 2018, o BSU realizou 23 ações totalizando 1.189 atendimentos clínicos e 321 cirurgias de castração. Além disso, foram investigadas zoonoses importantes, como toxocaríase, leptospirose, toxoplasmose, brucelose e febre maculosa, o que resultou em dados epidemiológicos valiosos para auxiliar melhorias em saúde pública. Outro marco importante é a conscientização da comunidade, que tem se mostrado mais interessada e receptiva ao manejo populacional e atenta aos cuidados básicos com seus animais.
CV – Quais são os próximos passos e planos para o projeto? Existe a intenção de expandi-lo para outras regiões ou ampliar seu escopo de atuação?
BSU – O Barco Saúde Única busca sempre melhorar e aprimorar os atendimentos em saúde única, e aproximar profissionais de outras áreas da saúde que possam vir a colaborar com a conservação e o equilíbrio ambiental e comunitário. Além disso, com base nas pesquisas realizadas, pretende contribuir para a implementação de diretrizes mais eficazes de vigilância em saúde.
A busca árdua para conseguir fomentos continuará e a expansão para novas áreas da saúde com desafios semelhantes é uma possibilidade real e já está em andamento; no entanto, trabalhar, especialmente na região do litoral paranaense onde há um vasto território de proteção ambiental, com belezas naturais quase intactas e presença de uma comunidade tradicional caiçara que merece ser assistida e preservar a cultura local, faz com que o BSU foque suas energias nessa região da Grande Reserva da Mata Atlântica, contribuindo para a sua preservação. É importante reforçar que a equipe do BSU se preocupa muito com a cultura local, que é extremamente valiosa e sempre orientamos nossa equipe para respeitá-los e agirem em sintonia com as comunidades.
Referência
1-FREITAS, A. R. ; DELAI, R. R. ; PRICHLA, A, OLIVEIRA, L ; PIMPÃO, C. T. ; GARCIA, R. C. M. Barco Saúde Única. Clínica Veterinária, Ano XXVI, n. 150, p. 19-24, 2021. Disponível em: <https://www.revistaclinicaveterinaria.com.br/opiniao/mvcoletivo/barco-sade-enica/>
2-CRMV-PR. Resolução n. 1, de 4 de janeiro de 2019. Normatiza os Procedimentos de Contracepção de Cães e Gatos em Ações Pontuais (mutirões) e/ou Programa de Esterilização Cirúrgica com a Finalidade de Controle Populacional no Estado do Paraná. Diário Oficial da União. Disponível em: <https://www.crmv-pr.org.br/uploads/legislacao/Res._1_19.pdf>
Informações
Os interessados podem entrar em contato pelo Instagram do projeto:
https://www.instagram.com/barcosaudeunica/