Como vai a comunicação nos estabelecimentos veterinários?
Já ouviu falar de “comunicação não violenta”?
Em nosso primeiro encontro, conversamos sobre marketing, e agora abordaremos um pouco a comunicação, em especial aquela voltada a prevenir, contingenciar e tratar conflitos. A comunicação é um ponto crítico em todas as organizações, muitas vezes olvidado e tratado sem a devida importância – portanto, deve ser destacada por parte dos empreendedores: “Isso é questão de gestão!”.
Comentamos anteriormente a evolução da medicina veterinária e sua relação com a sociedade contemporânea, e um de seus aspectos é a significativa mudança na relação do responsável com seu animal de companhia. O perfil do animal de companhia com função utilitarista, geralmente de proteção do patrimônio ou controle de animais sinantrópicos, mais visto como um recurso do que como um ser senciente e com valor intrínseco, passa a ser de um indivíduo interiorizado no seio da família, agora chamada de multiespécie. Essa relação toma tal destaque na sociedade brasileira, que transita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Federal nº. 179/2023, que “regulamenta o conceito de família multiespécie como aquela formada pelo núcleo familiar humano em convivência compartilhada com seus animais”.
Ora, se ocorre essa significativa mudança relacional entre responsável e animal, obviamente ela se transpõe à relação paciente/cliente/profissional/estabelecimento veterinário. Ou seja, há que se considerar que o atendimento do paciente focado fundamentalmente em critérios técnicos toma uma nova dimensão, envolvendo agora aspectos afetivos e emocionais. Os estabelecimentos veterinários atuais não atendem a “pacientes animais”, mas a membros de uma estrutura familiar estabelecida, que, em momentos recorrentes, podem ser a sustentação emocional de indivíduos desse grupo.
Voltemos à gestão. A pergunta é: os gestores de estabelecimentos veterinários, ao analisar os fluxos dos processos de suas empresas, estão atentos às interfaces comunicacionais? Quais e como são esses momentos e seus pontos críticos, e de que forma são tratados? A empresa e a equipe estão preparadas para conduzi-los adequadamente?
E, tendo atenção para essa questão, não se pode deixar de abordar as relações interpessoais, que estão intrinsicamente conectadas às questões relativas à comunicação, sejam elas com os agentes internos – no caso, as equipes – ou as que envolvem agentes externos – como os clientes e responsáveis.
É sabido que as maiores causas dos processos éticos – e, consecutivamente, judiciais – relacionados aos estabelecimentos veterinários decorrem da falta de resolução de questões interpessoais com os clientes, motivada pela insegurança e/ou insatisfação com a conclusão dos serviços prestados. Não necessariamente essas situações são motivadas por questões de falhas técnicas, mas pela frustação em relação a expectativas não atendidas.
Outro aspecto importante – e recorrentemente não observado pelos gestores – é a fragilidade e a vulnerabilidade do cliente em algumas categorias de atendimentos, em especial nos casos de emergência/urgência e de pacientes senis ou terminais. Nesse momento é necessário identificar o estado emocional do responsável e atentar para a forma adequada de intervir e conduzi-lo. Diante do fluxo descrito, uma boa comunicação será essencial para o sucesso do processo.
A abordagem inadequada do cliente é um ponto crítico que pode potencializar o insucesso das relações interpessoais, gerar insatisfações e causar conflitos. No geral, essas situações são decorrentes de falhas comunicacionais ou estão ligadas a elas. Se os gestores dos estabelecimentos veterinários fizerem uma análise em busca das causas das crises ocorridas no atendimento dos seus pacientes e clientes, provavelmente concluirão que a maioria delas foram motivadas ou influenciadas por má comunicação e dissonâncias nos relacionamentos interpessoais, decorrentes, em boa parte, da falta de empatia e de compreensão, de não ouvir e, pode-se dizer, da ausência de compaixão entre os interlocutores.
Para gerir essa realidade, uma adequada abordagem comunicacional pode ser uma útil ferramenta. Atentos a isso, comentaremos uma técnica que pode aprimorar os relacionamentos profissionais e, por que não, os pessoais: a “Comunicação não violenta – CNV”.
A CNV foi desenvolvida pelo psicólogo americano Marshall B. Rosenberg na década de 1960. Baseia-se no relacionamento humano e foca o fortalecimento de competências comunicacionais para intervir em condições adversas, sendo assim altamente aplicável ao dia a dia dos estabelecimentos veterinários.
Fundamenta-se em trazer ao fluxo da comunicação uma postura respeitosa e empática entre os participantes, observando as situações de forma objetiva e sistematizada, de modo a proporcionar efetividade às soluções das demandas e conflitos dos envolvidos. A CNV traz no seu cerne algumas características:
• empatia: considerada um comportamento com o qual se busca perceber a experiência do outro por sua óptica, vai além de ouvir ou ser simpático, remetendo a conhecer as sensações e necessidades dos interlocutores com o objetivo de impulsioná-los a se aproximar para alcançar os resultados esperados;
• compaixão: sentimento de tristeza e pesar causado pelas situações difíceis de outrem, provocando o desejo de auxiliá-lo para aliviar o seu sofrimento. Não consiste em sentir pena do outro, mas em interiorizar efetivamente o sentimento dessa pessoa para apoiá-la na busca da resolução das suas necessidades;
• escuta ativa: estar aberto a ouvir, ou seja, captar de fato, de forma atenta e empática, o que o interlocutor deseja expressar. É essencial para o fortalecimento da CNV e para a solução de conflitos. Integra-se a ela inclusive a atenção à comunicação não verbal realizada pelos interlocutores;
• conexão: construída por meio das três anteriores, talvez seja o objetivo central da CNV. Entender as necessidades do outro e vice-versa possibilita que os sentimentos e as necessidades dos participantes do fluxo comunicacional sejam compartilhados e conectados, abrindo espaço para a construção de estratégias voltadas à solução das demandas e conflitos.
Ao analisar a proposta de Rosenberg , observa-se que a CNV contribui para conectar os interlocutores por meio da compaixão e da empatia, e reformula o modo de expressão e escuta – seja por meio da entrega ou do respeito, estimulando nos participantes o desejo de fortalecer o processo comunicacional. A CNV constitui uma potente aliada na gestão de relacionamentos e fluxos comunicacionais internos e externos, e um instrumento útil a ser utilizado pelos gestores e suas equipes na prevenção, na mitigação e no tratamento de disputas e conflitos.
Seu modelo é composto por quatro componentes: observação, sentimentos, necessidades e pedidos.
Observação
Quando se aplica a CNV, o primeiro momento é de observação – e deve-se esclarecer que, distintamente da avaliação, na qual ocorrem a análise e a posterior construção de uma conclusão, a observação deve ser realizada visando trazer à tona apenas os fatos de forma objetiva e isenta.
É exercício complexo separar a observação da avaliação; entretanto, caso isso não ocorra, o processo comunicacional correrá o risco de embutir a crítica da conclusão realizada e, consequentemente, uma possível reação defensiva daquele com quem se está comunicando.
Sentimentos
O segundo componente necessário para o exercício da CNV são os sentimentos. Identificar e expressar os próprios sentimentos e ao mesmo tempo estar aberto, a partir da observação empática, a conhecer os dos demais interlocutores conecta os participantes no processo comunicacional. Compartilhar sentimentos permite compreender melhor as pessoas que os expressam; da mesma forma, na comunicação e na gestão de conflitos, estar ciente dos sentimentos relacionados ao processo amplia a racionalização sobre como os fatos afetam os envolvidos, auxiliando no processo resolutivo.
Necessidades
O terceiro passo da CNV consiste no conhecimento e na exposição das necessidades dos interlocutores. A exposição das necessidades na comunicação não é comum, pois muitas vezes nem mesmo os próprios interlocutores as têm claras. Necessidades não atendidas geram frustação; entretanto, ao serem evidenciadas, ampliam as informações disponíveis no processo de comunicação, aumentando a possibilidade de sucesso na resolução das demandas e, ao mesmo tempo, minimizam o risco de conflitos.
Nesse quesito, como nos demais, a empatia e a conexão influenciam e permitem que as necessidades sejam exteriorizadas, entendidas, e, por meio do próximo passo, atendidas.
Pedidos
Observados os fatos, conhecidos os sentimentos e levantadas as necessidades, o passo seguinte para concluir o ciclo da CNV – lembrando que ele é contínuo – requer que os interlocutores expressem quais são os pedidos para atender a suas demandas.
Um dos grandes gargalos para o sucesso dos fluxos comunicacionais é a falta de objetividade e clareza do que de fato os envolvidos querem alcançar. Portanto, a CNV propõe que se evidencie o desejado em forma de pedido, a partir da observação dos fatos, da interlocução com os sentimentos e da definição das necessidades dos envolvidos no processo.
Assim, a CNV, se aplicada aos processos de comunicação, constitui uma ferramenta que oferece oportunidade para o tratamento adequado das demandas dos diversos atores e pode contribuir efetivamente na solução de conflitos presentes nos estabelecimentos veterinários.
Obviamente, trouxemos de forma muito sucinta os conceitos da CNV, que, como toda ferramenta de gestão, exige percorrer um grande caminho para ser interiorizada na cultura dos estabelecimentos veterinários. Para implantá-la, pode-se iniciar pelo mapeamento dos fluxos comunicacionais presentes nos processos da empresa, concomitantemente com a identificação dos seus pontos críticos. Na sequência, a capacitação e a sensibilização da equipe serão fundamentais para que ela seja aplicada rotineiramente. Todavia, após esse estágio e devidamente implantada, ela aperfeiçoará e qualificará a comunicação em todas as esferas da empresa.
Considerando que um dos grandes focos da prestação de serviços é o fortalecimento do relacionamento com o cliente, a aplicação da CNV contribuirá para ampliar sua satisfação e sua confiança em relação aos serviços prestados. Consequente, intensificada a sua fidelização, o cliente estará disposto a retornar e manter o bom atendimento ao seu animal, gerando aumento da receita da empresa.
Atender às necessidades e aos pedidos dos clientes – em especial no que se refere a um querido membro da sua família multiespécie – por meio de uma “boa e empática conversa” com certeza deve fazer parte da missão dos estabelecimentos veterinários. E “Isso é questão de gestão”!
Referências
1-Projeto de Lei nº 179/2023, que “Reconhece a família multiespécie como entidade familiar e dá outras providências”. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2346910>. Acesso em 25 de dezembro de 2023.
2-ROSENBERG, M. B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. 5ª ed. São Paulo: Ágora, 2021.