Erros e incidentes na prática veterinária
Quanto maior o envolvimento de toda a equipe na identificação das causas e na definição de um plano de ação, maior a redução de riscos
Introdução
Erros ocorrem na medicina veterinária, e pouco se fala sobre eles, por receios legais e insegurança. Dessa forma, são subnotificados, incompreendidos e sua gestão é inadequada. É necessário atuar em direção a uma cultura que aceite que se cometem erros, pois errar é humano, e muitos desses deslizes são provocados por condições organizacionais, operacionais e tecnológicas. O desenvolvimento de intervenções para mitigar o erro veterinário e melhorar a segurança do paciente deve basear-se não somente nas causas, mas também na compreensão dos fatores humanos. É necessário realizar um minucioso trabalho para promover atitudes de resolução dos erros no contexto dos estabelecimentos veterinários.
Por experiência própria e entrevistando colegas de profissão, independentemente do estágio de vida em que se encontram, percebo que o aprendizado ao longo da carreira é contínuo, com base em estudo, experiência, e em erros cometidos ou que testemunhamos.
Atualmente existem no Brasil mais de 300 faculdades de medicina veterinária (cerca de 1/3 das instituições de graduação em medicina veterinária do mundo encontram-se em território brasileiro). Formam-se mais de 5 mil profissionais habilitados por ano.
Uma vez graduados, os profissionais fazem residência, adquirindo experiência em instituições de ensino, sob supervisão de profissionais mais experientes, ou iniciam a carreira imediatamente, atendendo em hospitais, clínicas ou consultórios veterinários, por vezes sem supervisão.
Aceitar que se cometem erros e que não é possível evitá-los totalmente, possibilita torná-los oportunidades de aprendizado, em vez de destacá-los e estigmatizá-los 1,2. Principalmente para profissionais em início de carreira e particularmente nos anos intensos que se seguem à graduação, quando há muita pressão, essa mudança poderia contribuir para assegurar a saúde mental dos profissionais 3,4.
Há muitos anos busco formas de evitar erros. Como responsável técnica em um laboratório de análises clínicas veterinárias, ainda na década de 1980, identifiquei a necessidade de participar de ensaios de proficiência externos para assegurar a qualidade dos serviços prestados. Fomos o primeiro laboratório veterinário a ser habilitado com excelente desempenho, mesmo em comparação com laboratórios renomados atuantes na medicina humana.
Posteriormente especializei-me em gestão para segurança de alimentos. Atuei na implementação de programas de segurança de alimentos em serviços de alimentação. Aprendi na prática que hábitos podem ser melhorados, com treinamento e persistência, e que lindos manuais de boas práticas, dentro da gaveta, são inúteis.
Ao retomar contato com a área clínica e diagnóstica, após alguns anos afastada, encontrei um ambiente com grandes avanços tecnológicos. Mas chamou minha atenção a busca pela qualidade por medo de perda de clientes ou mesmo de punições, em vez de a qualidade como propósito.
Em São Paulo, a grande maioria das denúncias éticas profissionais recebidas em 2012 referiam-se ao atendimento de cães e gatos, principalmente devido ao óbito de animais após procedimentos médicos ou cirúrgicos. Outros eventos que levaram a litígios foram falhas em documentos emitidos ou em informações fornecidas. Cerca de 63% das denúncias tratavam de imperícia, imprudência ou negligência, em que os profissionais envolvidos estavam na faixa etária média de 41,5 anos (mínimo 27 anos e máximo 61 anos), isto é, com cerca de 15 anos de exercício profissional. Com base nos dados analisados na época, os erros e deslizes éticos não puderam ser imputados diretamente a falhas no ensino de graduação 5. Aparentemente, a falta de atualização ou de educação continuada e o despreparo profissional, aliado à utilização de técnicas ultrapassadas ou não condizentes com os casos tratados, são considerados origem de negligência e de erros grosseiros 6.
Qualidade, erros e segurança de pacientes
A qualidade da assistência veterinária inclui, como atributo indispensável, a sua segurança. Esta abrange a preocupação com os diferentes tipos de erros ou falhas, a fim de que o paciente não seja prejudicado pela assistência que visava beneficiá-lo 7,8.
A qualidade da assistência veterinária e a segurança de pacientes refletem o cumprimento de requisitos e a forma como são executados os processos, sendo almejadas por gestores, médico-veterinários e usuários dos serviços, mas nem sempre, definidas e mensuradas. Muitas vezes inexiste sincronia entre as necessidades dos envolvidos, e a falha na comunicação pode levar a entendimentos distintos 4.
Erros na assistência à saude não são recentes: Hipócrates, o pai da medicina, cunhou no século IV a.C. o postulado Primum non nocere: antes de tudo, não causar dano. Anteriormente, o Código de Hamurábi (sec. XVIII a.C., Mesopotâmia) já estabelecera a responsabilidade jurídica do médico em caso de má atuação – “olho por olho, dente por dente” 9.
Surgem, atualmente, novas tecnologias e inovações e essa informação se torna disponível no mercado. Manter-se atualizado exige grande esforço por parte dos profissionais, e limitações financeiras e de acesso a tecnologia por parte dos envolvidos pode influenciar o resultado do serviço prestado.
Na medicina veterinária pouco se fala em erros na clínica, na cirurgia e nas atividades relacionadas a diagnósticos. Quando eles ocorrem, dificilmente são documentados, discutidos e muito menos analisados para que a sua causa seja definida 1,10-12.
A especialidade Segurança do Paciente passou a ser citada em publicações veterinárias internacionais nesta década, com destaque para trabalhos divulgados na Inglaterra. Trata-se ainda de um conceito emergente, e as causas e os facilitadores dos erros ainda não são suficientemente conhecidos 11,13. Apesar dos avanços, até hoje há poucos estudos disponíveis na literatura sobre a prevalência, a natureza e a gravidade dos erros na medicina veterinária.
Prevalência e tipos de erros na medicina veterinária
O erro na medicina veterinária ainda é visto como uma falta de conhecimento ou de habilidade. O estudo de animais submetidos a necrópsia em São Paulo com histórico e achados necroscópicos compatíveis com erro evidenciou 38% dos óbitos em decorrência de negligência, sendo 69% das falhas relacionadas a erros de diagnóstico 14.
Em 2014, Oxtoby considerou na Inglaterra que a segurança de pacientes na medicina veterinária é um “elephant in the room” (literalmente, “um elefante na sala”). Essa metáfora representa um problema ou risco – que obviamente existe e está presente dentro dos estabelecimentos veterinários – a respeito do qual ninguém fala por ser constrangedor 15. Será que essa metáfora caberia no Brasil de contrastes e limitações, com ilhas de excelência com cirurgias de alta complexidade, atendimento em unidades de terapia intensiva e atendimentos especializados? Compilar e interpretar dados da literatura relativos a erros e danos na assistência torna-se difícil sem uma padronização da nomenclatura 16. Para possibilitar as comparações entre os dados obtidos nas diversas fontes disponíveis, e com o intuito de organizar os conceitos e definições relativos à Segurança de Pacientes, a Organização Mundial de Saúde (OMS) 17 elaborou a Classificação Internacional de Segurança de Paciente, definindo o dano não intencional na assistência prestada a pacientes como evento adverso (EA). Este, quando decorrente de erro, é um EA evitável. Incidente é um evento ou circunstância que poderia ter resultado, ou resultou, em um dano desnecessário ao paciente. Nessa nomenclatura, a expressão erro médico não é mais utilizada. Os erros podem ter causas multifatoriais, e outros profissionais podem estar envolvidos neles.
A estimativa de prevalência de erros baseada em litígios é mais inferida do que confirmada, uma vez que se fundamenta em reividicações de proprietários insatisfeitos com os resultados cirúrgicos ou com erros relacionados à prescrição de medicamentos. Erros diagnósticos ou relativos à anestesia – que podem influenciar o tipo de reivindicação ou reclamação – possivelmente são ocultados dos responsáveis ou tutores 11.
Para entender os erros que ocorrem na rotina dos hospitais veterinários no Reino Unido, a atividade de dois estabelecimentos foi acompanhada durante uma semana, com observações de todos os colaboradores, numa abordagem sistêmica 10. Foram registradas as ações e omissões com potencial de gerar eventos adversos aos pacientes, tutores ou responsáveis pelos animais, ou mesmo ao estabelecimento, sendo identificados erros clínicos (medicamentos/doses, preparo cirúrgico, falta de acompanhamento), erros de comunicação (protocolos, procedimentos, ausência ou falha na comunicação face a face) e perda de espécime para análise. Na média, houve um erro a cada 5,5 horas de observação por setor avaliado. A natureza qualitativa do estudo possibilitou a identificação de falhas individuais e falhas sistêmicas latentes, concluindo-se que existem desafios que podem levar a erros no trabalho interprofissional. O aprendizado precisa ser aplicado para melhorar o trabalho em equipe e os procedimentos disciplinares.
Dois levantamentos realizados junto ao setor médico-veterinário na Inglaterra sobre eventos que ocorreram durante atendimentos em estabelecimentos médico-veterinários são apresentados na figura 1.
Levantamento | Dados provenientes de ações judiciais e processos éticos envolvendo médicos-veterinários e colaboradores de estabelecimentos veterinários. Modificado 11,13 | Respostas recebidas após envio de questionário a todos os profissionais um ano após a conclusão do curso (cerca de 25% dos profissionais retornaram o questionário preenchido). Modificado 18 |
Incidente | ||
Prescrição e administração de medicamentos | Medicamento errado; via errada; dose errada; hora errada | Demora em administrar medicação |
Cirurgia | Envolvendo qualquer estágio da cirurgia (excluindo anestesia) | Durante cirurgias ou castração |
Anestesia | Durante algum estágio da anestesia | Durante algum estágio da anestesia/sedação |
Tratamento | Entrega deficiente de assistência à saúde (por enganos, lapsos, falta de habilidade técnica ou desconhecimento) | Terapias incorretas |
Diagnóstico | Diagnóstico incorreto | Falta de realização de teste diagnóstico; teste diagnóstico incorreto; interpretação errada de resultados laboratoriais; interpretação incorreta de raios X |
Identificação de paciente | Paciente recebeu tratamento incorreto porque estava identificado incorretamente | Fármaco aplicado em animal trocado |
Pós-atendimento | Cuidado realizado pelo responsável pelo animal de forma errada – deficiência de comunicação entre responsável e médico-veterinário | Não evidenciado |
Equipamento | Dano a paciente por equipamento com defeito ou com design deficiente | Não evidenciado |
Outros | Não relatado | Comunicação e erros de documentação ou eutanásia |
Figura 1 – Incidentes que colocaram em risco a segurança de pacientes na prática veterinária, segundo levantamentos realizados na Inglaterra
No levantamento baseado em ações judiciais e processos éticos da medicina veterinária na Inglaterra (mais voltados à culpabilização e às indenizações que à segurança propriamente dita), evidenciou-se um predomínio de erros relacionados a cirurgias e intervenções clínicas (Figura 2). As reivindicações cirúrgicas mais comuns relacionavam-se a castração de fêmeas, retenção de itens cirúrgicos e hemorragia. Nas reivindicações relacionadas a intervenções clínicas, os erros envolvendo a escolha de fármaco ou dose excessiva eram mais frequentes 11,13.
A figura 3 mostra o resumo do resultado de levantamento das causas de incidentes relevantes notificadas ao longo de um período de seis meses num hospital universitário veterinário nos Estados Unidos da América (n = 95) 19. Evidenciou-se um predomínio de erros de medicação (paciente, medicamento, dose, via ou hora errados), seguidos de falha de comunicação (paciente com identificação errada; confusão relacionada a receitas e fluxos; falha na passagem de informações; omissões (situações relacionadas a avaliação, diagnóstico, interpretação de dados, desvios de normalidade); situações relacionadas à tecnologia de informação (TI) (atrasos na inserção de dados, tratamentos omitidos, situações com registros e protocolos); recursos humanos (insuficiência de colaboradores, impossibilidade de acessar os colaboradores necessários, incidentes relacionados a colaboradores e clínicos em treinamento); iatrogenia (complicação devida a procedimento ou tratamento não medicamentoso); falhas laboratoriais (perda de amostra ou de documentação, troca de amostras por falha de identificação, resultados não reportados, atrasos, exames inadequados); e equipamentos (falta de acesso, equipamento errado, falhas, problemas de suprimento).
Os levantamentos representados nas figuras 1, 2 e 3 evidenciam a alta prevalência de incidentes relacionados a medicamentos.
Na anestesia, é ponto pacífico que os erros são cometidos especialmente quando o trabalho em equipe envolve processos de decisão complexos e procedimentos altamente tecnológicos 10. Os erros não são notificados por medo da punição, e só são analisados em situações de litígio 12, o que evidencia a ausência de sistemática com fins de aprendizado por meio deles 2.
Eventos adversos evitáveis
O crescente acesso à informação sobre incidentes e processos envolvidos, mecanismos de ação e métodos de prevenção e a pressão pública e regulatória têm feito com que muitos eventos com danos deixem de ser vistos como uma intercorrência da assistência para serem classificados como EAs evitáveis, como, por exemplo, alguns tipos de infecção relacionados aos processos de assistência 8.
Na saúde humana, avalia-se que pelo menos metade dos incidentes assistenciais com dano (EA) poderiam ter sido ser prevenidos 20,21 (EA evitável) por ações muitas vezes simples, como higienização das mãos ou implementação efetiva de lista de verificação 16.
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) mantém um sistema de notificações para avaliar a prevalência dos incidentes em hospitais de todo o país 22. Para fins de conhecimento e como base de comparação com a realidade de estabelecimentos veterinários em nosso país, relaciono alguns eventos notificados no Notivisa (Sistema de Notificações em Vigilância Sanitária):
1) Medicações – A análise dos erros envolvendo medicamentos mostra sua natureza multifatorial, sendo as causas predominantes: falta de conhecimento sobre os medicamentos, falta de informação sobre os pacientes, falhas de comunicação, erros de transcrição, falhas na conferência de doses, problemas relacionados a bombas e outros dispositivos de infusão de medicamentos, monitoramento inadequado de pacientes, problemas no armazenamento e na dispensação, bem como erros de preparo e falta de padronização de medicamentos 22. (Obs.: unidades de cuidado intensivo relatam entre 80-745 erros de medicação por mil pacientes/dia 23,24.)
2) Cuidado intensivo – Perda ou obstrução de sondas, flebites, notificações envolvendo cateter venoso e medicamentos, falhas de documentação, falhas na administração de dietas, falhas nas atividades administrativas, extubação acidental, falhas ocorridas em laboratórios clínicos ou de patologia, situações envolvendo cirurgias, exames, queimaduras, broncoaspiração, agressões, transfusões, quimioterapia, hemodiálise ou tromboembolismo pulmonar 22.
Erros graves, evitáveis, raros, claramente identificáveis e mensuráveis são denominados eventos críticos inaceitáveis ou never events (eventos que nunca deveriam acontecer em serviços de saúde) 25,26. Na medicina humana, esses eventos incluem lesão por queimadura ou choque elétrico em qualquer momento durante o atendimento, cirurgia em paciente ou em local errado, lesão durante a contenção do paciente ou a sua fuga, alta para acompanhamento por pessoa não autorizada – enfim, situações raras, mas que requerem foco para serem evitadas 22.
Os eventos notificados com seres humanos podem potencialmente acontecer também com animais. Contudo, na medicina veterinária não existe regulamentação por parte de órgãos públicos ou entidades de classe em relação às notificações 1,3. Aparentemente, barreiras significativas impedem a implementação de sistemas de notificação de erros no setor, apesar de a necessidade de melhorar o reconhecimento e a notificação de erros para aumentar a segurança de pacientes ser um consenso internacional 1.
Na Inglaterra sugeriu-se a implementação de um sistema de notificação voluntário de eventos adversos em pequenos animais, baseado no sistema de notificação em humanos 11, visando:
• Avaliar a natureza dos eventos adversos na prática;
• Definir os eventos adversos mais frequentes;
• Avaliar quais são os eventos adversos que causam mais danos aos pacientes ou reclamações de proprietários;
• Avaliar os fatores contribuintes para definir recomendações.
Em evento na Suíça entre médicos-veterinários que atuam com anestesia e analgesia de equinos, foi sugerido um sistema de notificação de “incidentes críticos evitáveis” (incidentes envolvendo prejuízo das funções fisiológicas com potencial de levar à morte ou a dano permanente) 12 relacionados à anestesia: obstrução de vias respiratórias, aspiração durante ou após anestesia, medicação/dose/modo de administração errados, falha no equipamento/monitoramento deficiente, hipercalemia não tratada antes da anestesia, acordar durante ressonância magnética, indisponibilidade de bolsa de sangue quando de sangramento agudo, hipoglicemia em neonatos, recuperação ruim e fratura na fase de recuperação 12.
Percepção de risco, comportamentos de risco e incidentes
Pesquisa realizada na Inglaterra mostrou que os médicos-veterinários consideram a segurança do paciente uma preocupação exclusivamente deles. Consistentemente, os profissionais eximem de responsabilidade os colaboradores da equipe ou mesmo da organização, assumindo erros e evidenciando, com senso de responsabilidade exacerbado e por vezes deslocado, as dificuldades de reconhecer certas situações organizacionais 11,12.
Esse posicionamento demanda dos próprios profissionais condições inatingíveis de vigilância, além de dificultar o fortalecimento de relações de confiança mútua na equipe. O nível de responsabilidade assumido coloca os médicos-veterinários numa situação de significativa pressão sobre si mesmos, por falta de entendimento das próprias limitações e dificuldades de visualizar a implementação de processos e treinamentos efetivos 11.
Abaixo cito constatações relativas à medicina humana que poderiam ser aplicadas na medicina veterinária:
• Danos severos não fazem parte da experiência diária dos profissionais individualmente. Os erros são percebidos como eventos raros e não usuais. Um fator que contribui para essa percepção é o fato de muitos dos erros cometidos não levarem a danos nos pacientes, por serem interceptados a tempo ou mesmo a defesa do paciente prevenir o dano 27.
• A procura pela perfeição induz os profissionais a evitarem admitir enganos ou falta de experiência, especialmente quando poucos colegas têm essa atitude 3.
• Os profissionais da área da saúde são treinados nos bancos da faculdade a atuar com alto nível de proficiência técnica, ou mesmo de perfeição, e na prática a grande maioria atua com cuidados adequados 28.
• O paradoxo é que, embora o padrão da prática (mesmo segundo o código de ética aplicável) seja de cuidados sem erros, os profissionais da saúde reconhecem que eles são inevitáveis, e que a perfeição é inatingível 3,28.
Na figura 4 é possível visualizar que as falhas ativas – em que os indivíduos estão diretamente envolvidos em incidentes com o paciente – poderiam ter sido evitadas caso os fatores predisponentes (falhas latentes, condições de trabalho) tivessem sido evitados. Conclui-se que os responsáveis pelas falhas ativas não são os únicos responsáveis pelos danos. Numa cultura de segurança de pacientes, os diferentes setores do estabelecimento precisam estar comprometidos com a segurança deles, viabilizando condições adequadas de trabalho 4,29-31.
A figura 4 mostra que os incidentes muitas vezes se iniciam como consequência negativa de decisões da gestão e de processos organizacionais (por exemplo, a contratação de profissionais recém-formados autônomos para plantões sem que haja um treinamento e capacitação interna e/ou a ausência de processos documentados para consulta), provocando condições de trabalho inseguras (por exemplo, falhas de comunicação entre os turnos) com falhas ativas (por exemplo, terapia inadequada por programação errada do equipamento de infusão).
Falhas ativas (Figura 4) são comportamentos que aumentam os riscos, e tornam o sistema vulnerável. Para evitar que as limitações cognitivas levem a incidentes, é preciso prever barreiras por meio de processos críticos (como, por exemplo, a lista de verificação cirúrgica), de forma que um lapso seja identificado antes de provocar um dano. Aceitar a possibilidade de erro aumenta a adesão a protocolos de segurança em treinamentos.
O estudo dos fatores humanos relacionados a erros ou falhas ativas identifica a existência de limitações cognitivas ou psicológicas (por exemplo, a consequência da distração causada por alguma interrupção da atividade é que, no retorno, não se dá seguimento à atividade anterior 11 – tal como prever ligar o oxigênio no início da anestesia e deixar de fazê-lo após uma interrupção) 30. Há também o excesso de confiança na memória de longo e curto prazo – por exemplo, confundir a dose da medicação, ou errar o cálculo da dose da medicação a ser aplicada 11. Outras situações podem estar relacionadas a excesso de confiança em modelos mentais, efeito de viés cognitivo, como a incapacidade de reavaliar casos refratários a tratamentos por novo ângulo, a tendência a identificar casos raros como situações comuns ou mesmo a cometer enganos na hora da tomada de decisão por falta de experiência 11.
Fatores individuais como cansaço, doença, efeitos de álcool ou drogas, do estresse ou de estados emocionais como frustração, medo, ansiedade, raiva e depressão prejudicam o desempenho no planejamento de ações, aumentando a ocorrência de falhas ativas, ou podem levar ao cuidado inadequado, por falta de comprometimento ou de responsabilidade 11.
As deficiências de habilidade ou de conhecimento técnico levam a um desempenho inadequado na execução de tarefas rotineiras ou na avaliação de situações novas 10,11,30.
Dentre as causas de falhas sistêmicas, fatores predisponentes – como a falta de liderança (por exemplo, falhar ao assumir o controle de situações ou não definir claramente o papel de cada pessoa na equipe nas unidades 11,30) ou a supervisão insuficiente de médicos-veterinários recém-formados ou contratados e enfermeiros – se destacam como causas de incidentes 3. No nível organizacional, a liderança não pode deixar que suas diversas atividades relativas à gestão financeira ou de pessoal a façam deixar de lado os padrões de segurança, seja por falta de entendimento, pela necessidade de protocolos quanto à falta de habilidade ou de comprometimento para assegurar a implementação desses padrões 10,11,30.
As questões relacionadas à cobrança de produtividade, muitas vezes por pressões financeiras, não podem conflitar com a segurança dos pacientes, principalmente nos estabelecimentos que atendem 24 horas para assegurar uma cobertura de pessoal nas folgas, faltas e horários como madrugadas 10,11,30.
Considerando que as falhas de comunicação causam incidentes, é preciso assegurar uma comunicação efetiva entre os membros das equipes, entre os colaboradores de diferentes turnos ou equipes ou entre o corpo clínico e os tutores ou responsáveis pelos animais, por meio de protocolos formais e de escuta ativa 10,11,30.
Frascos de medicamentos com embalagens, rótulos e ou nomes semelhantes de produtos frequentemente mantidos muito próximos nas prateleiras da farmácia ou em gavetas podem levar a trocas de medicamentos 11. A falta de familiaridade com os sistemas de computação ou a confusão ao acessar/inserir dados nos menus 11,12 e problemas de formato e estrutura de equipamentos, como a mudança da ordem dos botões de acordo com cada fabricante 11,30, também são considerados fatores sistêmicos para a ocorrência de incidentes.
Os tutores ou responsáveis pelos animais podem contribuir para que ocorram erros de diagnóstico ou tratamento – por exemplo, ao omitirem informações, não retornarem com resultados de exames complementares ou se recusarem a realizar determinadas intervenções por questões financeiras ou emocionais. Apesar de as situações poderem ser contornadas com habilidade de comunicação, os limites precisam ser respeitados 11.
Fatores relacionados aos animais como agressão (exigindo pré-medicação e reforço de doses) ou a habilidade de correr mais rápido que o veterinário ou o cuidador também são considerados fatores predisponentes a incidentes, assim como outros fatores específicos 11.
Estratégias de redução de riscos e incidentes
Focar na segurança dos pacientes permite em muitas situações prevenir incidentes com danos 10,11. Habilidades não técnicas e fatores sistêmicos, em especial os relacionados à comunicação, ao trabalho em equipe, à liderança, aos protocolos implementados, e aos modelos de produtos e equipamentos podem levar a erros 10,11.
Aceitar que os erros acontecem é o caminho para o menor dano e o melhor resultado humanamente possível. É necessário almejar uma cultura de preocupação construtiva cujo foco esteja na gestão de riscos identificados como mais importantes: planejar, levando em conta os danos possíveis e o conhecimento disponível; distinguir normal de anormal, focando em fatores críticos; reconhecer, aceitar e assumir os erros; desculpar-se por tê-los cometido; aprender com os erros e ensinar os outros a evitá-los 3. A segurança de pacientes não melhora sozinha; é preciso um esforço consciente, sistemático e contínuo para aperfeiçoar os serviços prestados 32. Cientes de que muitos eventos estão relacionados a falhas ativas e falhas de comunicação, pontos críticos precisam ser reconhecidos e trabalhados.
Governança clínica e ciclos de auditoria da qualidade do atendimento veterinário oferecido possibilitam o monitoramento da segurança do paciente e contribuem para a melhora contínua da medicina veterinária baseada em evidências 1.
Indicadores de resultado (que em geral se referem à ocorrência de complicações ou mesmo de óbitos) como taxas de mortalidade anestésica, infecção cirúrgica, diagnósticos específicos, complicações cirúrgicas ou cicatrização pós-cirúrgica são monitorados 33 em alguns estabelecimentos. Adicionalmente, indicadores de processo (o que é feito em relação ao que deveria ser feito) ou de estrutura (o que se tem em relação ao que se quer) também precisam de monitoração.
A notificação interna de eventos adversos representa um esforço para entender, rastrear e prevenir erros 11. Eventos adversos também podem ser detectados por estudo retrospectivo de prontuários, usando estratégias sistemáticas de busca por situações específicas, como valores laboratoriais anormais ou mesmo o uso de medicamentos de alto risco e seus antídotos. As causas dos incidentes precisam ser identificadas para que se aprenda com os erros.
Quanto maior o envolvimento de toda a equipe na identificação das causas dos incidentes e na definição de um plano de ação, maior a redução de riscos e a adesão das equipes às práticas de segurança 25. Estudos relacionados com complicações cirúrgicas potencialmente evitáveis – como reoperação não planejada, infecção de sítio cirúrgico, cicatrização deficiente de ferida cirúrgica, complicações neurológicas, gastrintestinais, urogenitais e morte 34 – evidenciaram uma redução em cerca de 50% dos eventos adversos por meio da implementação de intervenções que visavam prevenir os incidentes mais comuns na anestesia (erros de medicação, fechamento de válvula APL e intubação esofágica) 9 ou da implementação de lista de verificação cirúrgica 34.
As revisões ou conferências de morbidade e mortalidade podem gerar melhoras mensuráveis na segurança de pacientes. Usá-las com ferramenta educacional e de orientação para melhorar o cuidado dos animais traz bons resultados. Elas são baseadas na análise sistemática de situações específicas, identificando as causas potenciais dos eventos adversos que levaram a danos ou mesmo ao óbito de pacientes, sem expor individualmente profissionais 36.
Enfim, o aumento dos riscos na prestação de serviços veterinários de complexidade crescente, bem como a possibilidade de limitações financeiras das partes, são um fato. Casos clínicos e tratamentos cada vez mais complexos aumentam demandas cognitivas com possibilidade de comprometimento de processos decisórios e incidentes com danos a pacientes 37.
A qualidade e a segurança no atendimento aos pacientes podem ser influenciadas por múltiplos parâmetros, entre fatores organizacionais, físicos e recursos humanos. Os parâmetros são mediados por fatores como motivação e comunicação, que afetam a atitude dos colaboradores e seu comportamento, inclusive no trabalho clínico, e podem ter reflexos diretos no resultado do atendimento prestado aos pacientes e na taxa de mortalidade 11.
Errar é humano. Logo, não existem sistemas livres de erros 7.
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