O médico-veterinário e o Código de Defesa do Consumidor
A compreensão do código e de suas regulamentações é fundamental para o profissional evitar riscos em sua atuação
O médico-veterinário precisa entender que existem momentos em que ele é um consumidor e em outros ele é um fornecedor de serviços e mesmo de produtos; assim, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e as suas regulamentações incidem no seu dia a dia.
É importante também ressaltar que a legislação consumerista brasileira é tida como uma das mais avançadas.Em todo o texto e nas interpretações, a base consiste na razoabilidade e na proporcionalidade.
Na atualidade, é fácil perceber que todos conhecem e exigem os seus “direitos”, e para isso nem é necessário muito esforço; mas, em relação aos “deveres”, a conversa já muda muito.
Também é bom destacar que, como dono de pet shop, de casa agropecuária ou de qualquer local onde se venda um produto, a sua responsabilidade é objetiva, e cabe nesse ponto a inversão do ônus da prova.
Porém, quando um fato se dá em decorrência de prestação de serviço, aí sim, como um profissional liberal atuando na área médica, ou seja, para um prestador de serviços, a interpretação muda, e a responsabilidade passa a ser subjetiva, de meios; e, nesse tipo de problema, não cabe a inversão do ônus da prova, e a culpa deve ser comprovada.
Essa diferenciação e a conscientização do médico-veterinário são importantes para evitar as inúmeras situações nas quais muitos profissionais acabam por infringir o CDC sem ter noção dos riscos e das responsabilidades a que ficam expostos.
O CDC parte do princípio de que o consumidor é a parte mais vulnerável nas relações de consumo. O legislador brasileiro entendeu que “a vulnerabilidade do consumidor decorre do princípio constitucional da isonomia, partindo-se da ideia segundo a qual os desiguais devem ser tratados desigualmente, na proporção de suas desigualdades, a fim de que se obtenha a igualdade desejada”. Essa postura é corrente em todos os doutrinadores do direito; assim, é inegável que o consumidor já é de antemão considerado a parte mais fraca na relação.
Ao destacar o critério de “escolha” de produtos, também existe o conceito da vulnerabilidade do consumidor, pois imagina-se a situação na qual, quando o profissional prescreve um medicamento pelo nome comercial de um produto que seja vendido quase que exclusivamente em seu estabelecimento, essa escolha já nasce reduzida, e cabe aqui a interpretação de que existiu uma indução, uma restrição à vontade e ao direito de escolha do consumidor. Esse é um dos motivos pelos quais o profissional deve receitar sempre pelo princípio ativo e ter o cuidado de evitar produtos “exclusivos” de sua loja, pois caberia aqui uma condenação, caso exista algum questionamento em um processo.
O consumidor tem o direito de optar por aquilo que existe e é oferecido no mercado, de forma ampla, permitindo a busca por preço e melhores condições de pagamento. A receita do médico-veterinário elaborada com o nome comercial de um produto ou ração que muitas vezes patrocina o próprio estabelecimento do profissional fere essa escolha; nesse caso, a oferta já foi decidida unilateralmente pelo médico-veterinário, visando seus interesses empresariais, que são, evidentemente, os da obtenção de lucro.
Também é comum no dia a dia dos estabelecimentos veterinários realizar serviços ou aplicar produtos sem a anuência do tutor – aquela situação corriqueira em clínicas e pet shops em que o animal vai para uma cirurgia de ovariossalpingo-histerectomia (cirurgia de OSH) e o profissional aproveita a anestesia e faz uma limpeza de tártaro, ou quando o animal vem para banho e tosa e lhe é aplicado um medicamento para combater pulgas e carrapatos, e o responsável pelo atendimento, justificando sua atitude como “bom atendimento” ou “economia de tempo”, realiza o serviço ou aplica o produto sem uma autorização clara do tutor – autorização essa que poderia ser feita por mensagem de texto via WhatsApp.
Tal conduta é considerada uma prática abusiva no Art. 39 do CDC.
Seção IV – Das Práticas AbusivasArt. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço;
VI – executar serviços sem a prévia elaboração de orçamento e autorização expressa do consumidor, ressalvadas as decorrentes de práticas anteriores entre as partes;
Parágrafo único. Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento.
Propaganda enganosa ou abusiva no CDC
Segundo o Código de Defesa do Consumidor:
Art. 37 – É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1º – É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 3º – Para os efeitos deste Código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
Novamente, é importante diferenciar o vendedor de produtos do prestador de serviços, e é este último que precisa ter mais atenção.
Quem já não viu uma propaganda citando “a melhor equipe”, os “melhores equipamentos” e outras expressões comuns em material publicitário? Tais propagandas, além de ferirem a ética profissional, induzem o consumidor a escolher. De modo semelhante, a publicação “do antes e do depois” é indiretamente uma garantia de bons resultados, é uma situação que força o consumidor em sua decisão e escolha, pois, diante das imagens, ele acredita que aquele profissional seja sempre infalível, que sempre os seus tratamentos alcancem resultados positivos e que todos os pacientes que passem pelo seu atendimento sejam curados.
Nesses casos, existindo um processo, a propaganda pode ser considerada enganosa, colaborando na formação de juízo e no peso da condenação.
Assim, o profissional tem de estar atento a suas peças publicitárias, e não existe a justificativa de que “é certo porque outros estão fazendo”. O profissional deve sempre atentar para a ética profissional e para o CDC ao realizar qualquer tipo de propaganda, quer seja impressa ou em mídia virtual, lembrando-se também de que determinadas atitudes podem ser consideradas concorrência desleal.
Infelizmente, “fazer porque todos fazem” é um comportamento que invade as redes sociais e é prejudicial à medicina veterinária como um todo, sendo um fenômeno que contamina todas as profissões.
O profissional que começa a sua vida tem uma certa ânsia em conquistar espaço e ganhar clientela, e hoje em dia é comum encontrar pessoas vendendo cursos ou ferramentas de marketing voltados para o segmento médico-veterinário. Infelizmente, nem todos executam o serviço proposto com ética e respeito aos colegas, e muitos o fazem de forma “canibalista”, favorecendo a concorrência predatória e antiética, comportamento que expõe os colegas a queixas e processos éticos.
É importante que todos os colegas tenham conhecimento do CDC, compreendam seus conceitos e também entendam o Código de Ética, a Resolução 1.138/16 e outras que tratam diretamente de propaganda e publicidade dentro da medicina veterinária.
Referências
01-CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA VETERINARIA. Resolução nº 1138, de 16 de dezembro de 2016. Aprova o Código de Deontologia e Ética Profissional do Médico Veterinário, CFMV, 2016.
02-BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispões sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Gov.br, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acesso em 20 de outubro de 2022.
03-BERGSTEIN. G. A informação na relação médico-paciente. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 280 p. ISBN: 978-8502203068.
04-GAUDERER, E. C. Os direitos do paciente – um manual de sobrevivência. 3. ed. Rio de janeiro: Record, 1991. 223 p.
05-NUNES, R. Curso de direito do consumidor. 13. ed. São Paulo, Saraiva Jur, 2019. 944 p. ISBN: 978-8553605248.
06-DALLARI Jr., J. A. Direito médico-veterinário. 1. ed. São Paulo: Recanto das Letras, 2021. 281 p.