A Lei 5.517/68 estabeleceu as competências privativas do médico-veterinário, bem como criou os Conselhos Regionais (CRMVs) e Federal (CFMV) de Medicina Veterinária, para os quais também delineou as competências e finalidades. Dessa forma, os conselhos são legalmente competentes para apurar e julgar denúncias, bem como para aplicar as sanções previstas.
Denominam-se regras de direito material aquelas que tutelam bem jurídico e atribuem direitos e deveres. Já as regras de direito processual são normas instrumentais que regulam a forma como o processo tramitará quando da suspeita ou real violação ao bem jurídico assegurado 1.
Dessa forma, temos como exemplo o Código de Ética do Médico-Veterinário, que estabelece direitos e deveres inerentes à atuação profissional, portanto, regras de direito material. Já o Código de Processo Ético-Profissional (CPEP) na medicina veterinária, Resolução do CFMV 1.330/2020, cunha as regras processuais às quais o processo ético-profissional (PEP) deve obedecer. Cumpre notar que todo processo deverá obedecer aos princípios constitucionais do devido processo legal, de ampla defesa e contraditório.
A justificativa da importância do presente tema decorre do elevado número de PEPs instaurados. O relatório de gestão do CRMV-SP de 2015 a 2021 revela que, nesse período, foram instaurados 725 PEPs, dos quais 680 foram julgados, e 608 sanções foram aplicadas para 303 apenados. Dentre as denúncias que mais ocorreram estão contempladas o atendimento clínico insatisfatório, a negligência, as falhas em procedimentos cirúrgicos e as castrações 2.
Portanto, objetiva-se com o presente artigo apontar as principais atualizações processuais enunciadas pelo novo CPEP.
Quanto aos prazos, novas normas estabeleceram que serão contados em dias corridos, incluídos sábados, domingos e feriados, bem como que, na ausência de definição de prazo para prática de ato processual, deverá ser considerado o prazo de 5 (cinco) dias. Outras atualizações nesse sentido foram implementadas, porém outros tópicos merecem atenção mais detalhada.
A instrução ao longo de todo o processo foi ampliada em diversos pontos do novo código, visando melhor compreender o caso concreto e cumprir com primazia o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Cita-se o exemplo de a oitiva do denunciado ocorrer ao final da instrução, para que então ele tenha conhecimento de tudo o que foi alegado e assim possa responder de forma ampla.
No Título III, Capítulo I, houve a previsão da Comissão de Admissibilidade para que o presidente do conselho, ao receber a denúncia (quando feita por pessoa física ou jurídica de direito privado) ou a representação (quando realizada por entidades, autoridades ou órgãos públicos), possa encaminhá-la e assim receber auxílio para apreciação relativa à abertura ou não do PEP, tendo em vista o cumprimento ou não dos requisitos necessários previstos nos artigos 20 e 27 dessa mesma resolução. A referida comissão será composta pelo vice-presidente, o secretário-geral e o tesoureiro.
Se a comissão julgar necessária a realização de diligências com o fim específico de obter documentos e outros elementos imprescindíveis à convicção, deverá solicitar ao presidente que proceda à comunicação com o denunciado ou representado para que apresente tais documentos, bem como a outras diligências fundamentais para a obtenção de documentos ou informações, e, por fim, à fiscalização nos locais indicados na denúncia ou representação com a juntada do relatório do fiscal.
As partes poderão ainda solicitar audiência com a comissão, que poderá ouvi-las somente se presentes a maioria de seus membros. Na audiência deverá haver unicamente o registro do que for de interesse das partes, sem que haja a oitiva de testemunhas ou das partes.
Ao final do prazo, a comissão deverá formular um relatório fundamentado, aprovado pela maioria, no qual sugerirá a instauração do processo ou o arquivamento dos autos, de forma individualizada, caso haja mais de um profissional envolvido. Sob posse do parecer da comissão, o presidente então decidirá, de maneira fundamentada com a tipificação das condutas, acerca do arquivamento ou da instauração do processo.
Já na fase de instauração, há a previsão da tramitação autônoma dos processos, quando houver mais de um denunciado ou representado, com a possibilidade de transladar peças necessárias à autuação. Todavia, a critério do presidente, ao considerar o contexto fático, poderá ser instaurado um único processo, desde que de forma justificada.
Um outro ponto inovador foi a previsão da desistência por parte do denunciante, após a instauração e antes do fim da instrução. O requerimento deverá será analisado pelo plenário do conselho, perante a obrigatória oitiva e a anuência do denunciado; somente então se poderá decidir sobre o arquivamento ou o prosseguimento do feito.
Além disso, o instrutor poderá requerer a um especialista na área demandada um parecer técnico que auxilie na decisão acerca da adequação ou inadequação da conduta ora discutida, sem prejuízo do sigilo inerente ao processo ético-profissional.
Tendo em vista que a nova resolução foi aprovada no contexto da pandemia, os criadores buscaram modernizar as normas para acompanhar as necessidades atuais, e assim passou a ser prevista, nas disposições finais do código, a possibilidade de realização de atos processuais via videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, bem como passou a ser solicitado, sempre que possível, o registro de depoimentos e oitivas por recursos audiovisuais, digitais e outras técnicas similares.
Os PEPs têm caráter sigiloso, porém as sessões de julgamento passaram a ser públicas, podendo ser reservadas somente em casos justificados. Ainda, fica vedada a publicação do resultado do julgamento enquanto não ocorrer o trânsito em julgado, ou seja, até quando não couber mais recurso. Nesse cerne, as decisões irrecorríveis ainda permanecerão sob sigilo quando prevejam penalidades confidenciais, dada a própria natureza da pena. Porém, todas as demais decisões serão públicas.
Findo o julgamento em instância regional, mediante a apresentação de apelação e contrarrazões, os autos serão remetidos ao CFMV. Entretanto, o código prevê a remessa obrigatória dos autos, ainda que não haja apelação, em três casos: decisão cuja penalidade seja cassação; decisão condenatória em desfavor de denunciado/representado assistido por defensor dativo, ainda que possa apresentar recurso voluntário; e em caso de decisão não unânime em processos instaurados de ofício.
Dessa forma, ficam caracterizadas algumas das principais atualizações relacionadas aos PEPs trazidas pelo novo CPEP, tais como a primazia do devido processo legal, a criação da Comissão de Admissibilidade, a admissão de parecer técnico por especialista, os atos processuais realizados por recursos audiovisuais e a remessa obrigatória dos autos em novas hipóteses, dentre outras.
Glossário |
Apelação: pedido de revisão da decisão ofertada em primeiro grau pelo juízo de segundo grau |
Contraditório: direito de defesa contra acusação, sendo permitidos todos os meios lícitos de prova |
Contrarrazões: instrumento utilizado para contrapor as alegações da apelação |
Defensor dativo: defensor designado pelo presidente do conselho |
Instrução: fase processual em que se buscam provas para convencimento do julgador |
Juntada: termo de junção em um processo; ato de anexar ao processo |
Oitiva: ato de ouvir o que está sendo dito |
Referências
1-CINTRA, A. C. A. ; GRINOVER, A. P. ; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 384 p. ISBN: 978-8574208374.
2-CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA DE SÃO PAULO. Diretoria do CRMV-SP apresenta Relatório de Gestão 2015/2021 às classes. CRMV-SP, 2021. Disponível em: <https://crmvsp.gov.br/diretoria-do-crmv-sp-apresenta-relatorio-de-gestao-2015-2021-as-classes/>. Acesso em 7 de abril de 2022.