Menu

Clinica Veterinária

Início Opinião Direito médico-veterinário Cirurgia para controle populacional
Direito médico-veterinário

Cirurgia para controle populacional

Parceria ou castramóvel

Matéria escrita por:

José Alfredo Dallari Júnior

23 de jul de 2024

A convivência harmoniosa entre as espécies passa por respeito e cuidados, incluindo o controle populacional que ajuda a prevenir o abandono. Créditos: Ermolaev Alexander A convivência harmoniosa entre as espécies passa por respeito e cuidados, incluindo o controle populacional que ajuda a prevenir o abandono. Créditos: Ermolaev Alexander

Como médico-veterinário sempre atuei ativamente para ajudar a resolver ou pelo menos equacionar o problema dos animais de rua. Por defender uma solução cirúrgica, fui às vezes mal compreendido e até sofri acusações injustas. Mas sempre entendi que a postura do poder público precisava mudar, e ainda defendo que a postura ideal é a de parcerias com os médicos-veterinários locais, com as prefeituras valorizando os empresários locais, em vez de buscar soluções fora da região.

Tempos atrás os problemas dos animais de rua eram resolvidos com a mistanásia *, isto é, o sacrifício coletivo promovido pelas “carrocinhas”, ao passo que a melhor forma é atuar com programas de educação da população para a posse responsável, a adoção e o controle populacional por meio da cirurgia de ováriossalpingo-histerectomia (OSH) e da orquiectomia, popularmente conhecidas como castração.

No estado de São Paulo, em meados de 2011, iniciou-se uma discussão sobre o assunto, mas ainda sem o amadurecimento do poder público e da sociedade, e sem eles a quantidade de animais só tende a aumentar e a gerar problemas de saúde pública. Infelizmente, quem continua a sofrer são os próprios cães e gatos.

Sempre foi nosso entendimento que o médico-veterinário precisa assumir seu papel na solução desse problema – afinal é quem tem a competência técnica e legal para realizar os procedimentos anestésicos e cirúrgicos. Além disso, ainda é necessário quebrar um paradigma, isto é, passar a encarar a OSH e a orquiectomia como procedimentos sociais e não como procedimentos exclusivos da elite.

Para serem tratadas como cirurgias sociais, o custo dessas intervenções deve ser reduzido ao mínimo, pois o objetivo é solucionar um problema crônico de nossa sociedade, e podemos ajudar a resolvê-lo levando esse entendimento às classes sociais menos favorecidas.

A ideia é oferecer os procedimentos às classes de baixa renda em parceria com o poder público, por meio de projetos sociais implantados por meio de licitações por credenciamento, de forma paralela e não excludente – isto é, com a contratação de profissionais da mesma localidade. Assim, as campanhas de castração podem ser promovidas de forma continuada nas localidades mais carentes e o dinheiro dos impostos fica no município. Os profissionais locais que se interessam em participar não se veem alijados do processo, e caso surjam intercorrências, a população terá a quem recorrer, ao contrário do que ocorre quando se contratam empresas de fora, que, uma vez realizada a campanha, vão embora no dia seguinte e os problemas continuam no município.

 As faculdades de medicina veterinária, os conselhos regionais e federal e os profissionais precisam se envolver na solução dessa questão social de saúde pública, e encarar a castração em campanhas voltadas à população mais carente como um ato social participativo, que valoriza a importância do trabalho voluntário, e também que abrir mão da margem de lucro não é, de forma alguma, aviltar a profissão.

Por sua vez, o médico-veterinário precisa compreender que engajar-se socialmente na resolução do problema engrandece a profissão, traz maior reconhecimento e respeito a todos os profissionais e ajuda a neutralizar quaisquer críticas que tentem retratá-lo como “mercenário”.

É importante compreender que o profissional fez uma escolha socioeconômica, que vive de sua profissão, busca seu ganho e sustentabilidade financeira no dia a dia da medicina veterinária, mas que também assume uma postura objetiva em relação à castração, pois ela constitui etapa importante do controle populacional. Ao encará-la como uma cirurgia de cunho social, o médico-veterinário fica valorizado como profissional perante a sociedade.

É muito importante compreender a diferença entre cirurgias para controle populacional e outros procedimentos, como os voltados à resolução da piometra, cesarianas, cirurgias neoplásicas ou intervenções ortopédicas. As cirurgias de castração são realizadas em animais sadios, com metodologias que envolvem custos reduzidos, ao contrário dos procedimentos empregados em animais doentes, que exigem maior atenção e envolvem alta complexidade e maiores custos.

Existe um conceito em direito que fala da relação “Fato x Valor x Norma”. Por meio dele, a sociedade e o poder público e político começam a apreciar os Fatos que ocorrem na comunidade. Com isso, o fato passa a ter um Valor social, uma importância que antes não era apreciada. A partir desse momento, as pessoas começam a exigir uma solução e, por fim, acaba estabelecendo-se a Norma, que visa disciplinar o problema e sua solução.

­

Campanhas de conscientização para posse responsável devem incluir ações de castração e adoção, entre outros cuidados e responsabilidades para com os animais pelos tutores. Créditos: a katz

­

Antigamente a regra era a mistanásia. Os protetores foram se movimentando, a sociedade começou a entender a necessidade e acabou surgindo uma lei. Hoje, o direito dos animais é uma forte vertente social.

A sociedade percebeu a necessidade do controle populacional, partiu em busca de soluções, vieram os primeiros cirurgiões veterinários utilizando técnicas minimamente invasivas**, nasceram as campanhas de castração. No inicio, os médicos-veterinários que se envolviam eram às vezes criticados e até denunciados por colegas e não havia regras. Hoje, porém, as campanhas são disciplinadas pelos conselhos, e a sociedade solicita o envolvimento dos médicos-veterinários, para que participem colaborando. Também no atendimento público veterinário a sociedade pede mudanças, e há o entendimento de que elas surgem com o tempo. 

Os protetores podem ajudar, e também compreender a necessidade de sobrevivência econômica dos profissionais, que trabalham para sobreviver e não por diletantismo, pois o médico-veterinário não é discípulo ou cosplay de São Francisco, ele tem contas a pagar no final do mês, não pode trabalhar de graça, também precisa sobreviver.

Nesse sentido, cabe à sociedade cobrar o poder público para que as campanhas de castração sejam realizadas com médicos-veterinários da própria cidade e para que se estabeleçam regras para a realização dessas campanhas, buscando parcerias para custear material como anestésicos, antibióticos, fios de sutura, agulhas e seringas, restando somente o custo da mão de obra do profissional.

É da união dos envolvidos que pode sair a força e a solução dos problemas, ao passo que brigas e criticas somente geram mágoas e dificultam a resolução desse problema crônico da sociedade.

Como médico-veterinário sempre envolvido com a causa e com o problema dos animais de rua, vejo e defendo as campanhas de castração como parte importante de uma solução duradoura e efetiva, e vejo também o lado do profissional, que estudou, investiu seu tempo e dinheiro para obter seu diploma, e tem contas a pagar no fim do mês. Essa é em resumo minha posição pessoal.

Acredito que antes de mais nada é preciso conduzir a questão com bom senso. Críticas, disputas e brigas nunca levam a nada.

Gestores públicos e protetores devem trabalhar em parceria com os profissionais locais e evitar trazer profissionais de fora para realizar campanhas, algo que sempre gera muita insatisfação e só deveria ocorrer em último caso.

É fundamental também compreender que o profissional médico-veterinário, que ama os animais e escolheu estudar a medicina veterinária, fez uma opção de trabalho e vive da sua profissão, não é um diletante, depende dos recursos financeiros proporcionados pelo seu trabalho.

Respeitar as opiniões de todos também é fundamental, afinal a sociedade é constituída por pessoas diferentes, que agem e pensam diferente. A verdade absoluta não existe.

Protetores e poder público precisam ter no profissional médico-veterinário um parceiro, um colaborador, uma pessoa que detém a competência para o tratamento e a cirurgia.

Juntos, o poder público, os protetores de ONG’s ou independentes, os amantes de todos os animais e os médicos-veterinários podem juntar esforços para resolver o problema social e de saúde pública que envolve os animais de rua. E, vale lembrar, a questão não se restringe ao controle reprodutivo e à posse responsável, pois envolve doenças e zoonoses como a leishmaniose, a esporotricose e a raiva, entre outras, que também precisam ser consideradas.

Juntos, com bom entendimento, podemos mudar o mundo.

 

Notas

* A eutanásia tem a intenção de ser um ato de misericórdia, propiciando ao doente o término de seu sofrimento. Já  mistanásia é a morte miserável, infeliz, fora e antes do seu tempo. Segundo Pessini , a mistanásia “é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana”.

** Aprendi a técnica no ano de 1997, com o dr. Roney Migliari (in memorian)

 

 

 



Leia também

Direito médico-veterinário Atendimento em domicílio
Direito médico-veterinário Comportamento profissional doloso