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Direito médico-veterinário

A judicialização da medicina veterinária brasileira

Matéria escrita por:

Norma Centeno Rodrigues

18 de set de 2021


A última década tem sido marcada, na medicina veterinária, pela judicialização da profissão. O uso das redes sociais e as facilidades de buscas por meio de programas específicos na internet têm colaborado para que isso venha ocorrendo. Dentro desse mesmo contexto, a propagação de publicações com animais vem acontecendo de forma cotidiana, seja como companheiros em famílias, seja para divulgar e buscar justiça em casos que envolvam abuso e maus-tratos, e, recentemente, a responsabilidade administrativa e civil 1. 

A concepção do mundo percebida por meio da ciência e da tecnologia vem mudando paradigmas no que se refere aos animais, porém as leis brasileiras que regem seus direitos ainda engatinham. O Código Civil Brasileiro, no seu Artigo 82, trata os animais como bens móveis, aqueles que têm movimento próprio, denominados semoventes. Tramita ainda no Congresso Federal Projeto de Lei que muda o status social dos animais, porém a dinâmica que rege a vida e consequentemente os atos jurídicos que daí possam advir não acompanha os trâmites burocráticos quando se trata de mudanças rápidas e necessárias. Isso tem levado aos tribunais inúmeros casos que envolvem os interesses dos animais, surgindo, dessa forma, decisões que vêm regrando outros vereditos similares. 

Desde os anos 1970, quando o filósofo australiano Peter Singer, em seu livro Animal Liberation [Libertação animal (Porto Alegre: Lugano, 2008)], mostrou a situação dos animais de produção, há uma movimentação mundial em relação ao bem-estar desses animais e também daqueles usados em laboratório. Muito se avançou nessa área, que ganhou pesquisadores envolvidos em estudar a ciência do bem-estar animal. Em 2012, na Universidade de Cambridge, um grupo de pesquisadores da neurociência elaboraram um documento denominado “Declaração de Cambridge de Consciência” em animais humanos e não humanos. Nessa declaração, os cientistas afirmaram que, com base nas evidências, os seres humanos não seriam os únicos a ter substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo mamíferos, aves e outras criaturas, inclusive os polvos, tinham os mesmos substratos neurológicos 2. A partir daí, a senciência animal, ou seja, a capacidade de o animal sentir dor, tanto física como psiquicamente, passou a ser aceita pela comunidade científica. 

No Brasil, um marco histórico ocorreu em 2014, durante o III Congresso Brasileiro de Bioética e Bem-estar Animal. Nesse evento foi elaborada a “Carta de Curitiba”, em que palestrantes nacionais e internacionais e autoridades, seguidos pelos mais de 600 participantes do evento, foram signatários do documento, no qual afirmaram: “Nós concluímos que os animais não humanos não são objetos. Eles são seres sencientes. Consequentemente, não devem ser tratados como coisas”. Vicente de Paula Ataíde Junior, quando aborda o tema do direito animal brasileiro, diz que ele se baseia nas noções da senciência e da dignidade animal. Explica o direito animal como direito à tutela jurídica dos animais; uma vez considerados fauna em seu conjunto pela Constituição Federal, a competência legislativa é de responsabilidade da União, dos estados e do Distrito Federal. Ou seja, a União estabelece as normas gerais, e os estados exercem a competência legislativa plena, para atender às peculiaridades inerentes a cada um. 

Nas legislações estaduais, três estados brasileiros têm legislações específicas. Santa Catarina reconhece que cães e gatos são sujeitos de direito, ao passo que o Rio Grande do Sul abrange no seu Código Ambiental todos os animais de estimação, e no estado da Paraíba, no Código de Direito e Bem-estar Animal, os animais são reconhecidos, de forma geral, como titulares de direitos fundamentais, sendo estes listados no seu Artigo 5º, a saber: “Todo animal tem o direito: I – de ter a existência física e psíquica respeitada; II – de receber tratamento digno e essencial a uma qualidade de vida sadia; III – a um abrigo capaz de protegê-lo da chuva, do frio, do vento e do sol, com espaço suficiente para se deitar e se virar; IV – de receber cuidados veterinários em caso de doença, ferimento ou danos psíquicos experimentados; V – a um limite razoável de tempo e intensidade de trabalho, a uma alimentação adequada e a um repouso reparador” 3. 

A medicina veterinária legal, área que, em conjunto com outras relacionadas, atua no auxílio da justiça, embora antiga, vem chamando muito a atenção, em razão das mudanças significativas que a sociedade como um todo vem dispensando aos animais. Isso se verifica principalmente no cuidado dispensado aos animais de companhia, como claramente demonstram as transformações no direito de família e em questões relativas no direito civil. Dados disponíveis no CRMV-SP dão conta de que, no período de 2016 a 2020, 63% dos processos éticos profissionais abertos eram em clínicas veterinárias; em relação aos denunciantes como um todo, 69% eram proprietários/tutores 4. No mesmo relatório observa-se que a maioria das infrações éticas ocorreram em clínicas veterinárias (Figura 1). 

 

Local das ocorrências Percentual de casos nos anos
2016 2017 2018 2019 2020

Campanha de castração

4%

2%

2%

Atendimento domiciliar

4%

4%

3%

2%

Clínica veterinária

42%

71%

62%

54%

76%

Hospital veterinário

13%

6%

9%

18%

Total de casos em números absolutos

48

56

63

95

50

Figura 1 – Locais de ocorrência de infrações éticas referentes ao período de 2016-2020. Adaptado de estatísticas de processos éticos profissionais do CRMV-SP

 

No que tange aos processos cíveis relativos aos danos morais e materiais, as decisões jurisprudenciais vêm deliberando, em sua maioria, levando em conta os laços afetivos entre os animais e seus tutores. Porém, é no direito de família que as mudanças vêm acontecendo de forma mais significativa, acompanhando a dinâmica das relações familiares. Em 2016, o juiz Leandro Katscharowski Aguiar, titular da 7ª Vara Cível da comarca de Joinville, SC, declinou competência em favor de uma das varas da família sobre processo que discutia a posse e propriedade de uma fêmea canina  disputada por casal recém-separado, entendendo que os animais de estimação já estavam merecendo tratamento jurídico distinto daquele conferido a um simples objeto 5.

A decisão do TJ/SP em 2018, na qual o desembargador José Rubens Queiroz Gomes citou jurisprudência da corte no sentido de que a relação afetiva existente entre seres humanos e animais não foi regulada pelo Código Civil e que, como a lei não prevê como resolver conflitos entre pessoas em relação a animal adquirido com a função de proporcionar afeto e não riqueza patrimonial, deve o juiz decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, foi: “Por conseguinte, aplicando-se a analogia acima referida, estando a ação de reconhecimento e dissolução de união estável em trâmite na 3ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central, é deste juízo a competência para o julgamento da ação em que se discute a  ‘posse compartilhada e visitação’ do animal doméstico” – deliberando que a vara de família tem competência para decidir sobre a guarda compartilhada de animais 6. Outras ações já decidiram sobre pensão alimentícia quando, no caso das separações de cônjuges, a guarda é unilateral 7. Como se observa, a rapidez das mudanças na sociedade tem cada vez mais criado decisões judiciais que colocam em pauta os animais e a relação com seus tutores, daí já sendo aceito o conceito mais moderno de família multiespécie. 

O médico-veterinário tem um papel fundamental nessas questões. Quem poderá dizer em juízo qual é o melhor lugar ou quem poderá cuidar melhor do animal a não ser o médico-veterinário? Quem tem conhecimento específico sobre comportamento, características que envolvem raças e espécies que devem ser observadas quando das disputas judiciais? 

O trabalho de levantamento de casos de processos administrativos nos Conselhos Regionais do Rio de Janeiro, Paraná e São Paulo que mostram aumento progressivo de denúncias e processos nesses Estados já é reconhecido 1. Ao mesmo tempo, um estudo recente desses autores também demonstra o aumento exponencial progressivo de processos e de valores de indenização que os profissionais da medicina veterinária vêm sofrendo na esfera cível por alegado erro médico 8. 

Os médicos-veterinários vêm cada vez mais contribuindo com as áreas afins quando se trata de decisões em que os animais são parte das demandas judiciais, consolidando a importância da medicina veterinária legal como área de atuação e a necessidade de ensino e pesquisas nas instituições de ensino da medicina veterinária nacional.

 

Referências

01-SOUZA, C. N. A. ; MAIORKA, P. C. As responsabilidades administrativa e civil do médico-veterinário mediante o erro médico. Revista CFMV, ano XXVI, n. 83, p. 39-42, 2020. ISSN: 1517-6959.

02-LABORATÓRIO DE BEM-ESTAR ANIMAL. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. Declaração de Cambridge sobre a consciência animal. LABEA/UFPR, 2014. Disponivel em: <http://www.labea.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-de-Cambridge-sobre-Consci%C3%AAncia-Animal.pdf> Acesso em 23 de junho de 2021.

03-VIEIRA, T. R. ; SILVA, C. H. Família multiespécie – animais de estimação e direito. 1. ed. Brasília: Zakarewicz, 2020. 395 p. ISBN: 978-6587974002.

04-CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Estatísticas dos processos ético-profissionais. CRMVSP, 2021. Disponível em: <https://crmv-sp.implanta.net.br/portaltransparencia/#publico/Conteudos?id=6043cb96-8a19-4768-8624-bf9ad929236e> Acesso em 23 de junho de 2021.

05-WISBECK, A. ; MEDEIROS, Â. ; COSTA, D. P. ; ARAÚJO, S. Juiz entende que cão não é objeto e remete disputa por animal para Vara de Família. Poder Judiciário de Santa Catarina, 2016. Disponível em: <https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/juiz-entende-que-cao-nao-e-objeto-e-remete-disputa-por-animal-para-vara-de-familia>. Acesso em 23 de junho de 2021.

06-TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Agravo de instrumento nº 2052114-52.2018.8.26.0000.2018. Poder Judiciário/Tribunal de Justiça do Estado de SP, 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/vara-familia-julga-guarda-compartilhada.pdf>. Acesso em 23 de junho de 2021.

07-AGUIAR, J. L. L. Direito dos animais sob os aspectos da guarda compartilhada e dano moral em caso de lesão animal. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. 124 p. ISBN: 978-8551905746. 

08-SOUZA, C. N. A. ; LIMA, D. M. ; SOUZA, A. N. A. ; MAIORKA, P. C. Quantitative and qualitative analysis of lawsuits against veterinarians and correlation of potential risk factors with court decisions. Forensic Science International, v. 310, n. 110233, p. 1-6, 2020. doi: 10.1016/j.forsciint.2020.110233.

 

 



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