Ainda que se possam elaborar conceitos a partir de outros referenciais, não há como prescindir de um conceito dogmático para o Direito Animal, produzido a partir do próprio ordenamento jurídico, no qual se aponte seu objeto e sua diferenciação.
Nesse contexto, o Direito Animal pode ser conceituado como “o conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos dos animais não humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ecológica, econômica ou científica” 1.
O conjunto normativo é composto de regras e princípios que são espécies de normas jurídicas 2, mais especialmente normas jurídicas de primeiro grau, pois são as que servem de comandos para determinar condutas obrigatórias, permitidas e proibidas, ou condutas cuja adoção seja necessária para atingir determinados fins, e constituem o objeto da aplicação 3.
Portanto, dogmaticamente, o Direito Animal só pode ser um conjunto de regras e princípios.
Esse conjunto normativo tem um objeto e uma diferença: atribui direitos a animais não humanos. O objeto do Direito Animal são os direitos dos animais não humanos. Certamente esse é o seu principal elemento diferenciador: para o Direito Animal, os animais não são objetos de direitos, mas sujeitos de direitos. As normas de Direito Animal são normas que contemplam a subjetividade jurídica dos animais.
Mas como isso é possível?
Os animais são seres vivos dotados de consciência (e, por consequência, de senciência), o que é um fato biológico cientificamente comprovado. Esse fato foi objeto de valoração pelo Poder Constituinte Originário brasileiro 4, que decidiu considerar os animais como importantes por si só, dotados de valor intrínseco e, portanto, de dignidade própria. A proteção desse valor/dignidade foi consubstanciada por normas jurídicas constitucionais: a regra da proibição da crueldade e o princípio da dignidade animal (norma/dignidade) 5. Dessas normas jurídicas exsurge o direito fundamental animal à existência digna, do qual derivam, por obra das fontes normativas infraconstitucionais, os direitos subjetivos animais, com fundamentalidade material. O conjunto desses direitos forma a quarta dimensão dos direitos fundamentais.
Conforme a explícita dicotomia constitucional (Art. 225, § 1º, VII), quando o animal não humano é considerado fauna relevante pela sua função ecológica como espécie, é objeto das considerações do Direito Ambiental. Por outro lado, quando o animal não humano importa por si mesmo, é relevante enquanto indivíduo consciente, portador de valor intrínseco e dignidade próprios, e passa a ser objeto das considerações do Direito Animal.
O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião da adequada interpretação constitucional, já teve a oportunidade de manifestar o entendimento sobre a autonomia da regra da proibição da crueldade e sua desconexão com a preservação do meio ambiente. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4983 (ADI da vaquejada), dentre os precedentes vinculantes de Direito Animal, o STF, por meio do voto-vista vencedor do Ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que:
• A vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou da sua importância para a preservação de sua espécie 6. (Grifos nossos)
Não obstante, a mesma Constituição Federal que veda a crueldade contra animais, reconhecendo-lhes valor intrínseco e dignidade própria, também permite a exploração animal, por meio da pecuária, da pesca e da experimentação científica.
Ainda que não se possa fechar os olhos ao valor econômico atribuído pela Constituição a certos grupos de animais, bem como ao valor científico atribuído a outros – valores esses que, em conjunto com o valor ecológico da fauna, consistem em valorações instrumentais dos animais, admitidas pelo próprio texto constitucional –, é possível perceber o avanço civilizacional representado pela valoração intrínseca dos animais, realizada exatamente no dispositivo constitucional que proíbe a crueldade contra animais.
A tarefa do intérprete da Constituição é conciliar todas essas valorações e disposições normativas, sem anular nenhuma. Isso porque os animais têm valor intrínseco e dignidade própria, são sujeitos de direitos – não coisas, nem bens. Mesmo assim, existem animais explorados na pecuária, na pesca e na ciência, com beneplácito constitucional, o que conduz à conclusão de se tratarem de sujeitos de direitos cuja capacidade jurídica é reduzida, porquanto, a priori, não têm o direito à vida no seu acervo de direitos. Mas, ainda assim, são sujeitos de direitos.
Uma das principais consequências do conteúdo dessa interpretação constitucional é a necessária releitura do Código Civil Brasileiro (Art. 82) para afastar qualquer conclusão que resulte em atribuir aos animais o status jurídico de coisa, bem móvel ou bem semovente.
Referências
1-ATAIDE Jr., V. P. Capacidade processual dos animais: a judicialização do direito animal no Brasil. São Paulo: Thomson Reuters, 2022. 416 p. ISBN: 978-6559910960.
2-ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. 670 p. ISBN: 978-8539200733.
3-ÁVILA, H. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2018. 239 p. ISBN: 978-8539204007.
4-SARLET, I. W. ; MARINONI, L. G. ; MITIDIERO, D. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 1407 p.
5-RUZYK, C. E. P. Dignidade da pessoa humana. In: CLÉVE, C. M. Direito constitucional brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. 1. ed. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2014. p. 173. ISBN: 978-8520352434.
6-SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4983. Relator Ministro MARCO AURÉLIO, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017.