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Maus-tratos pelo abandono de animais no período de férias

Amamos nossos animais somente no período letivo?

Cadela lactante, abandonada e suja após chuva intensa. Créditos: 7th Son Studio Cadela lactante, abandonada e suja após chuva intensa. Créditos: 7th Son Studio

Introdução

O presente artigo tem por objetivo demonstrar que o abandono de animais, tanto por omissão quanto por comissão, é crime tipificado na Lei de Crimes Ambientais – Lei n°. 9.605 de 12 de fevereiro de 1998.

Assim sendo, a conduta, infelizmente ainda comum, de abandonar animais de estimação no período de férias escolares, deixando-os sem meios de subsistência, é crime sério que recomenda uma mudança de comportamento e de consciência por parte de todos aqueles que mantêm animais no recinto familiar.

O abandono de animais afeta a saúde animal, humana e ambiental 1, causando comprometimento do bem-estar para os indivíduos que se importam com o sofrimento animal e sobrecarregando física e financeiramente as entidades de proteção animal e os protetores independentes 2.

Especialmente durante os meses de dezembro e janeiro, em virtude das férias escolares e das festas de fim de ano, é comum que famílias viajem a lazer para fora de suas cidades, momento no qual surge a indagação: o que fazer com o animal de estimação? Infelizmente, não é difícil encontrar relatos de pessoas que, diante dessa situação, optaram por abandonar o animal, que passou a ser visto como um entrave à realização das atividades de lazer familiares 3.

No Brasil, no período de dezembro até o Carnaval, a taxa de abandono aumenta 30%, sendo comum encontrar animais assustados e descartados nas proximidades de rodovias ou amarrados em lugares afastados 4. Outra “solução” encontrada pelas famílias é deixar o animal trancado dentro da residência familiar, mesmo que isso implique privá-lo de receber meios de subsistência como comida, água, cuidado e até mesmo abrigo adequado.

 

Cão abandonado e triste vagando por estrada. Créditos: roibu

 

Cães e gatos são os animais de estimação mais comuns nas casas brasileiras. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), o Brasil contava, em 2018, com mais de 140 milhões de animais de estimação, dentre os quais “54,2 milhões de cães, 23,9 milhões de gatos, 19,1 milhões de peixes, 39,8 milhões de aves e mais 2,3 milhões de outros animais” 5. Hoje em dia, além da certeza do aumento de animais domésticos nas casas brasileiras – haja vista que, com a pandemia de Covid-19, muitas pessoas decidiram adotar ou comprar um animal de estimação –, os reflexos dessa realidade também são notados perante a quantidade de cães e gatos vivendo em situação de rua, que alcançou o patamar de 30 milhões no Brasil 6.

Especificamente em relação aos gatos, diferentes são as causas relatadas para o abandono, à medida que a agressividade (73,8%) e a arranhadura (56,9%) foram as razões mais frequentemente citadas para a ocorrência 7.

Em contraposição a essa realidade estarrecedora, cães e gatos podem ser classificados como os animais domésticos que mais têm direitos reconhecidos e garantidos no ordenamento jurídico brasileiro. Eles têm o direito à vida e a uma existência digna plenamente assegurado diante da posição natural de dependência e de vulnerabilidade perante o ser humano, inexistindo motivos de ordem ecológica, científica ou econômica que justifiquem a sua mitigação 8.

Os direitos subjetivos dos cães e gatos também abarcam a alimentação, o domicílio adequado, a saúde e, consequentemente, a proteção contra atos de crueldade e de maus-tratos 9, os quais, nitidamente, se veem afrontados diante da prática do abandono.

Portanto, os tutores humanos têm obrigações positivas e negativas referentes aos cuidados com os animais domésticos, haja vista que, concomitantemente, devem suprir as suas necessidades básicas e são proibidos de submetê-los a violência, crueldade e maus-tratos.

 

Cão velho e sujo, abandonado preso a um poste. Créditos: FooTToo

 

Indo ao encontro do exposto, o Código de Direito e Bem-Estar Animal do Estado da Paraíba (Lei n°. 11.140/2018), por exemplo, caracteriza explicitamente como maus-tratos o abandono de animais. Considerada a lei mais avançada na garantia de direitos fundamentais aos animais, considera ser de responsabilidade dos tutores humanos a garantia de alojamento adequado, alimentação, saúde, bem-estar e acesso ao atendimento médico-veterinário ao animal doméstico durante toda a sua vida, não podendo escusar-se de oferecer essa assistência sob pena de caracterizar prática de abandono e, consequentemente, de maus-tratos:

Art. 22. É de responsabilidade dos tutores a manutenção dos animais em perfeitas condições de alojamento, alimentação, saúde e bem-estar, de acordo com suas necessidades morfopsicológicas, bem como as providências necessárias decorrentes de acidentes ocorridos, sua imediata remoção e destinação adequada dos dejetos por eles deixados em vias ou logradouros públicos.

§ 1º O tutor fica obrigado a garantir a assistência médico-veterinária necessária, sob pena de incorrer em abandono e consequente caracterização de maus-tratos.

§ 2º Os cuidados referidos no caput deverão perdurar durante toda a vida do animal9.

Diante da dificuldade de definir o conceito de “maus-tratos”, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), por meio da Resolução n°. 1.236 de 26 de outubro de 2018, definiu-os como “qualquer ato, direto ou indireto, comissivo ou omissivo, que intencionalmente ou por negligência, imperícia ou imprudência provoque dor ou sofrimento desnecessários aos animais” 10, catalogando, expressamente, o abandono de animais como forma de maus-tratos (Art. 5, IV).

Nitidamente, os atos de abandonar um animal em via pública, com restrição de liberdade ou não, ou de privá-lo de ter acesso à água, a comida e a cuidados básicos, são condutas comissivas e omissivas que provocam sofrimento de ordem física e mental ao animal submetido, razão pela qual são classificadas como maus-tratos.

Dessa forma, a Lei de Crimes Ambientais n°. 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, em seu Art. 32, ao cominar penas à prática de maus-tratos, também inclui a conduta de abandono de animais. Esse artigo prevê a pena de detenção de três meses a um ano mais multa àquele que abusar de animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, maltratá-los, feri-los ou mutilá-los.

Entretanto, em virtude da aprovação da Lei n°. 14.064/2020 (conhecida como “Lei Sansão”), que introduziu o parágrafo 1º-A no referido artigo, as penas para quem cometer as condutas supracitadas contra cães e gatos foram aumentadas, podendo o agente ser condenado a reclusão de dois a cinco anos mais pagamento de multa e perda da guarda, havendo a majoração da pena de um sexto a um terço na ocorrência da morte do animal.

 

Cão abandonado, com escore corporal bastante baixo, vagando em uma cidade. Créditos: Winai Tepsuttinun

 

Em outras palavras, tratando-se de cães e gatos, além da possibilidade de prisão em flagrante do agente que cometer o abandono, este responderá a inquérito policial e a processo penal para a aplicação das respectivas sanções criminais, sem prejuízo das sanções administrativas que podem ser aplicadas pelos órgãos de fiscalização administrativa. Ressalte-se que, por se tratar de um crime permanente, enquanto perdurar o abandono, pode-se efetivar a prisão em flagrante do responsável.

Ademais, o agente poderá ser processado na esfera cível a fim de ressarcir os gastos despendidos com o animal resgatado e mantido por terceiros, além de indenizar o próprio animal pelos danos decorrentes do abandono, naquilo que vem sendo chamado de judicialização terciária 8.

Quanto a este último tema, registre-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em setembro de 2021, reconheceu a capacidade processual, para uma demanda indenizatória, de dois cães abandonados dentro da própria casa pelos tutores, que foram viajar por cerca de 29 dias, deixados sem qualquer assistência, mesmo que prestada por terceiros 8.

Dessa forma, independentemente do modo como o abandono ocorre, tanto a conduta comissiva, removendo o animal da casa onde recebia abrigo, como a omissiva, deixando o animal sem amparo básico, são configuradas como crime, e o responsável poderá responder pela prática de maus-tratos.

A discussão quanto ao tema proposto tem como ponto de partida a Constituição Federal de 1988, documento que sustenta todas as pautas de proteção e de direito animal. Foi esse documento que, por meio do Art. 225, §1°, VII, vedou a submissão de animais à crueldade, garantindo-lhes o direito a uma existência digna, tendo como fundamento fático o reconhecimento da senciência animal.

Para ser senciente é necessária, em algum grau, a presença de consciência 11; dessa forma, a senciência, característica que pode ser entendida como a capacidade de sentir dor, prazer e emoção, foi objeto de consenso científico pela “Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos”, de 2012.

Essa declaração, firmada por diversos especialistas em vários campos da neurologia, afirma que animais vertebrados, e mesmo alguns invertebrados, são capazes de ter consciência, perceber experiências e ter sentimentos, similarmente aos seres humanos, como segue:

A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência, juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os seres humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, dentre os quais todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos 12.

Diante dessa característica intrínseca dos animais e do fato de que a Constituição Federal garante a todos esses seres vivos o direito a uma existência digna, ao proibir a crueldade, impõe-se a criminalização das condutas e atividades humanas que atentem aos seus direitos. A prática de maus-tratos, conduta tipificada pela Lei de Crimes Ambientais, abarca o abandono de animais domésticos, haja vista que, além do sofrimento e da dor provocados nas vítimas, os sujeitos (tutores) responsáveis por elas têm o dever de zelar pelo seu cuidado e bem-estar.

 

Cão abandonado e doente, sozinho em estrada. Créditos: Thalerngsak Mongkolsin

 

Atualmente, além do aumento exponencial da quantidade de lares com animais de estimação, o fato de eles serem considerados membros da família 13,14 infelizmente não impede que o abandono endêmico se intensifique no período de férias escolares e em feriados.

As causas geradoras do abandono envolvem diversos fatores relacionados tanto a mudanças ocorridas na vida dos tutores quanto ao comportamento dos animais visto como negativo 15. Entretanto, o abandono jamais deveria ser cogitado como uma solução aos possíveis problemas enfrentados por seres humanos e seus animais de estimação.

O indivíduo que adota um animal deve ser orientado sobre as responsabilidades associadas a essa escolha, pois o animal terá uma vida longa e necessitará de cuidados básicos que poderão ser custosos a longo prazo 16,17,18.

O vínculo entre seres humanos, animais e o meio ambiente é uma relação dinâmica e mutuamente benéfica, incluindo atitudes, emoções e profundas interações físicas e psicológicas 19.

Considerando isso, não é passível de aceitação o tratamento objetificado de nenhum animal, em especial o doméstico, que é inteiramente dependente dos cuidados do seu tutor. É em razão disso que o Estado brasileiro pune severamente quem abandona animais, a fim de que a prática deixe de ser normalizada e passe a ser conhecida perante a população como um crime sério.

 

Considerações finais

Dessa forma, é possível afirmar que, atualmente, o abandono de animais de estimação – especialmente no período de férias escolares – é classificado como uma prática de maus-tratos e caracterizado, ao mesmo tempo, como ilícito penal, administrativo e civil, ensejando a aplicação de sanções ao responsável por esse crime nas três esferas jurídicas.

Dessa forma, reafirma-se que os animais são sujeitos de direitos fundamentais e que o ordenamento jurídico atual está suficientemente organizado para responder às violações desses direitos, especialmente no que se refere a cães e gatos.

 

Referências

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