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Direito Animal

A qualificação jurídica dos animais no anteprojeto de reforma do Código Civil

Matéria escrita por:

Vicente de Paula Ataíde Junior

22 de maio de 2024

Créditos: Zerbor Créditos: Zerbor

Acompanhamos, no último dia 17 de abril, a entrega formal do anteprojeto de reforma do Código Civil, em mãos do presidente do Senado Federal, senador Rodrigo Pacheco, resultado do trabalho dos membros da Comissão de Juristas, instituída em 24 de agosto de 2023.

Como membro-consultor para direitos animais na Comissão de Juristas, trago, nesta coluna, alguns ensaios sobre as propostas incluídas no anteprojeto que dizem respeito aos animais.

Comecemos com a proposta de nova qualificação jurídica dos animais.

Como se sabe, a Parte Geral do Código Civil não define a natureza jurídica dos animais. Não diz o que são os animais para o Direito. Nem pessoas, nem bens. A qualificação tradicional dos animais como bens semoventes é decorrente da interpretação dada, sobretudo, ao atual art. 82, considerando que os animais são “suscetíveis de movimento próprio”, “sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”.

A primeira proposta de reforma, contida no relatório da Subcomissão da Parte Geral, criando um art. 82-A no Código Civil, nos causou, de fato, uma tremenda preocupação, dado que qualificava os animais como “objetos de direito”, algo pior do que coisas ou bens, pois aniquilaria as iniciativas para se atribuir direitos a animais. Isso também constou do relatório final, apresentado em 26 de fevereiro, com a diferença de que deslocava o dispositivo para o art. 91-A, mas ainda no livro sobre bens.

Essa preocupação transcendeu os trabalhos da Comissão e gerou uma reação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que emitiu nota técnica contrária a essa qualificação dos animais como objetos de direito, por entendê-la como retrocesso em termos de proteção do meio ambiente e dos animais.

Os embates em torno dessa qualificação surtiram efeito, de modo que, nas sucessivas redações do artigo apresentadas pela relatoria geral, a expressão “objetos de direito” foi suprimida do proposto art. 91-A.

O art. 91-A, aprovado pela Comissão e constante do anteprojeto de reforma do Código Civil, é o seguinte:

“Seção VI – Dos Animais 

Art. 91-A. Os animais são seres vivos sencientes e passíveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial. 

§ 1º A proteção jurídica prevista no caput será regulada por lei especial, a qual disporá sobre o tratamento físico e ético adequado aos animais. 

§ 2º Até que sobrevenha lei especial, são aplicáveis, subsidiariamente, aos animais as disposições relativas aos bens, desde que não sejam incompatíveis com a sua natureza, considerando a sua sensibilidade.”1

Parece um pouco mais do que evidente que o caput do art. 91-A é um avanço em termos da qualificação civil dos animais: não são qualificados como coisas, nem como bens, mas pelo que efetivamente são, ou seja, seres vivos sencientes, tal qual se extrai da interpretação do inciso VII, parágrafo primeiro, do art. 225 da Constituição.

A precisa e exata qualificação jurídica dos animais foi delegada à lei especial (§ 1º), a qual, no entanto, precisará respeitar dois vetores fundamentais: (1) deverá dispor sobre um tratamento físico e ético adequado aos animais; (2) deverá respeitar a natureza especial dos animais, enquanto seres vivos sencientes, por isso passíveis de proteção jurídica especial.

Queremos crer que a construção da lei especial para proteger juridicamente os animais deverá ser fatiada, ou seja, várias leis especiais deverão ser aprovadas para constituir um estatuto dos animais, dada a diversidade de características entre as espécies de animais e os diferentes graus de dependência e vulnerabilidade em relação aos seres humanos, sobretudo entre animais domésticos e silvestres, o que poderia gerar dificuldades para a aprovação de um único estatuto geral dos animais.

Mas o que gerou uma forte objeção da nossa parte, especialmente na semana final de debates concentrados, ocorrida na primeira semana de abril, foi a adoção do regime subsidiário de bens aos animais, enquanto não vier a lei especial exigida para a sua definitiva qualificação jurídica.

Não obstante, é de se notar que a aplicação desse regime subsidiário de bens é atenuada ou mitigada, pois apenas serão aplicáveis aos animais as disposições sobre bens que não forem incompatíveis com a sua natureza especial de seres vivos sencientes.

Isso quer dizer que, mesmo com esse regime patrimonial transitório, não se descarta a possibilidade de se atribuírem direitos aos animais, pois isso está de acordo com a sua natureza especial de seres vivos sencientes e, pela interpretação conforme a Constituição, dotados de dignidade própria (o que, aliás, já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal).

Mais do que isso, esse regime subsidiário de bens, por ser aplicado de forma mitigada aos animais, de maneira a respeitar o seu estatuto da senciência, não perturba as leis estaduais e municipais mais avançadas, as quais já definem os animais como sujeitos de direitos ou lhes atribuem determinados direitos fundamentais, como é o caso das leis de Santa Catarina (2018), Paraíba (2018), Espírito Santo (2019), Rio Grande do Sul (2020), Minas Gerais (2020), Roraima (2022), Pernambuco (2022), Goiás (2023) e Amazonas (2023).

De qualquer forma, vamos levar ao Congresso Nacional uma alternativa a esse regime subsidiário de bens trazido pelo anteprojeto: o regime subsidiário de entes jurídicos despersonalizados, conforme já defendemos perante a Comissão de Juristas. Como entes jurídicos despersonalizados (como o são o nascituro e as sociedades sem registro), os animais deixam, definitivamente, a qualificação jurídica de bens, ainda que não ingressem na definição de pessoas. 

Também nos parece possível propor ao Congresso Nacional uma modificação topográfica do artigo sobre animais, como o fez a reforma do Código Civil português, em 2017, no sentido de localizá-lo fora do livro relativo aos bens da Parte Geral, prevenindo qualquer interpretação no sentido de atribuir aos animais essa qualificação reducionista e incompatível com o estatuto da senciência animal, de índole constitucional.

1-Disponível em: https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2630. Acesso em: 23 abr. 2024.