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Bem-estar animal

Lacen/PR se torna o primeiro laboratório de saúde pública do Brasil a não usar animais de laboratório

Substituição da prova biológica com camundongos pelo qPCR para o diagnóstico de raiva animal

Créditos: Fernando Gonsales Créditos: Fernando Gonsales

Contextualização sobre a raiva

A raiva é uma zoonose negligenciada 1. É uma encefalite viral aguda e progressiva causada pelos danos que o Lyssavirus, da família Rhabdoviridae, provoca no sistema nervoso central dos mamíferos 2. A raiva é considerada uma doença 100% letal, e está presente em todos os continentes do mundo. Nos países em desenvolvimento, principalmente na Ásia e na África, milhares de pessoas morrem anualmente devido a essa encefalite viral, cuja estimativa anual é de 56 mil óbitos/ano 1.

No Brasil, atualmente há poucos casos por ano de óbitos humanos por raiva. Entre 2010 e 2018, houve 36 casos de óbitos no país, sendo que desses somente 9 tiveram o cão como animal agressor 3. O que tem favorecido a redução de casos humanos no Brasil é a menor circulação das variantes caninas do vírus e a maior conscientização das pessoas quanto ao risco do contato com animais suspeitos. Outro fator importante no controle da raiva no Brasil é o monitoramento da circulação viral nos ambientes rural, urbano e silvestre, por meio da vigilância laboratorial de animais suspeitos 3.

 

Breve histórico do diagnóstico de raiva animal no Lacen/PR

Completando 125 anos de história no dia 21 de dezembro, o Laboratório Central do Estado do Paraná (Lacen/PR) é o segundo laboratório mais antigo do Brasil. Nele são realizados inúmeros exames diagnósticos dos mais variados graus de complexidade, entre os quais o diagnóstico de raiva animal é uma das ações do Programa de Vigilância da Raiva no estado.

 

Biotério do Lacen/PR, local onde os camundongos eram mantidos e observados no diagnóstico de raiva animal pela técnica de isolamento viral com inoculação em camundongos. Créditos: Guilherme Augusto Minozzo – Lacen/PR

 

O serviço de diagnóstico de raiva animal no Lacen/PR vem recebendo nos últimos anos em média 4 mil amostras anualmente para diagnóstico. Essas amostras são oriundas de cães e gatos considerados suspeitos de raiva e de todos os mamíferos silvestres encontrados mortos no estado do Paraná, com destaque para o grande volume de amostras de morcegos que o laboratório recebe.

Até meados de 2019, o Lacen/PR realizava duas provas de diagnóstico, conforme a recomendação do “Manual de Diagnóstico Laboratorial da Raiva” do Ministério da Saúde 4. Uma delas era a imunofluorescência direta (IFD), metodologia considerada padrão-ouro pelo Ministério da Saúde (MS) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 5.

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Gaiola de camundongos inoculados com amostra positiva de raiva na imunofluoresciencia direta (IFD). Créditos: Guilherme Augusto Minozzo – Lacen/PR

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Além da IFD, realizava-se o isolamento viral em camundongos, ou prova biológica, que ainda é considerado um método padrão-ouro pelo MS 4. A OMS reconheceu recentemente o qPCR (reação em cadeia da polimerase em tempo real) como uma técnica válida para o diagnóstico de raiva post mortem em animais 5. Conhecendo-se as inúmeras vantagens que essa metodologia apresenta perante outras técnicas usadas no diagnóstico da raiva, como a IFD, a prova biológica e o isolamento viral em cultivo celular, favoreceu-se a implantação dessa nova metodologia no Lacen/PR. Além disso, a expertise em biologia molecular presente no Lacen/PR e os equipamentos necessários para o PCR em tempo real permitiram que fosse possível realizar a validação da técnica de qPCR e a sua implantação no serviço de diagnóstico da raiva animal do laboratório.

 

Validação da Técnica de qPCR

Antes de começar a se usada na rotina do laboratório no serviço de diagnóstico da raiva, a técnica de qPCR foi validada, ou seja, foi feita uma comparação de resultados de amostras positivas e negativas para a raiva entre três técnicas diferentes: a IFD, a prova biológica e o qPCR. A intenção era garantir que os resutados da técnica a ser implantada em substituição à prova biológica fossem precisos e confiáveis. O protocolo de PCR em tempo real para a raiva e outras lissaviroses foi desenvolvido por Wadhwa e colocaboradores em 2917 6. A realização da validação do qPCR no Lacen/PR contou com o apoio técnico e alguns insumos do Centers for Diseases Control and Prevention (CDC/USA). Na validação utilizaram-se amostras positivas e negativas oriundas de diversas espécies animais, obtendo-se resultado de 100% de concordância entre as técnicas.

Após a validação do qPCR, essa técnica passou a ser utilizada na rotina do laboratório em substituição à prova biológica, que foi abandonada completamente, proporcionando ao Lacen.OR tornar-se provavelmente o primeiro laboratório de saúde pública do Brasil a não usar a experimentação animal nas atividades de diagnóstico.

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Gráfico das curvas de amplificação do material genético no RT-qPCR (PCR em tempo real). Créditos: Guilherme Augusto Minozzo – Lacen/PR

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Vantagens do qPCR

A implantação do qPCR para a raiva no lugar da prova biológica proporcionou inúmeras vantagens ao serviço, ao laboratório aos profissionais envolvidos e à sociedade. Destaca-se como uma das principais vantagens, se não a principal, o abandono da experimentação animal no diagnósticfo de raiva, deixando-se de usar aproximadamente 26 mil camundongos por ano. Apesar de se respeitarem as condições adequadas para o bem-estar animal, não era possível afirmar que os animais usados no diagnóstico de raiva não passassem por situações de estresse e sofrimento. Com essa substituição, o Lacen/PR cumpre as diretrizes de organismos internacionais e do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) 7 no que diz respeito à introdução de técnicas alternativas que substituem a utilização de animais.

Além de não usar mais camundongos, o serviço de diagnóstico de raiva animal ganhou em agilidade. O tempo para a liberação dos resultados foi reduzido em 80% (de 26 para 4 dias, em média). Dependendo da urgência do caso, o resultado de qPCR pode sair em até 24 horas, o que nunca aconteceria com a utilização de camundongos.

A biossegurança também foi muito favorecida com a implantação do qPCR no lugar da prova biológica, que de modo geral demanda mais contato e manuseio com as amostras de tecido nervoso central. Além de expor o profissional ao risco no momento da inoculação intracraniana dos camundongos, a prova biológica requer cuidados redobrados na manutenção e na higienização das gaiolas dos animais, e demanda que a imunofluorescência direta (IED) seja repetida em casos suspeitos, para o que é necessário fazer nova coleta do sistema nervoso central (SNC). Essa técnica exige ainda que os animais sejam submetidos a eutanásia após o período de observação, o que gera um desgaste nos profissionais envolvidos. E mais: as gaiolas forradas de serragem e as mamadeiras precisam ser lavadas, e todos os resíduos gerados, somados às carcaças dos animais, precisam ter um destino adequado após serem esterilizados. Além de tudo isso, essa técnica necessita de salas com infraestrutura adequada de ventilação, controle de temperatura e umidade, que precisam ser isoladas do resto do laboratório.

Some-se a isso o fato de o PCR em tempo real ter custos menores com insumos do que a prova biológica, gerando uma economia estimada em mais de R$235.000,oo por ano para o laboratório. Outra vantagem importante é a capacidade de processamento de amostras do laboratório, que foi ampliada cerca de oito vezes, e que favoreceu também a liberação mais rápida dos resultados.

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Aparelho Termociclador AI 7500 Real-Time PCR System (Applied Biosystems, Foster, CA, EUA) utilizado para a técnica de RT-qPCR no Lacen/PR. Créditos: Guilherme Augusto Minozzo – Lacen/PR

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Premiação Expoepi

Essa inovação implantada no Lacen/PR foi oficializada na 16ª edição da Mostra Nacional de Experiências Bem-Sucedidas em Epidemiologia, Prevenção e Controle de Doenças (Expoepi). O Lacen/PR recebeu o primeiro lugar pela “Melhor experiência na área: enfrentamenteo das doenças neglicenciadas ou em eliminação como problema da saúde pública” com o trabalho “QPCR em substituição à prova biológica para o diagnóstico de raiva animal: uma contibuição à saúde pública, à saúde do trabalhador e ao bem-estar animal”.

 

Referências

1-HAMPSON, K. ; COUDEVILLE, L. ; LEMBO, T. ; SAMBO, M. ; KEIFFER, A. ; ATTLAN, M. ; BARRAT, J. ; BLANTON, J. D. ; BRIGGS, D. J. ; CLEAVELAND, S. ; COSTA, P. ; FREULING, C. M. ; HIBY, E. ; KNOPF, L. ; LEANES, F. ; MESLINM, F. X. ; METLIN, A. ; MIRANDA, M. E. ; MÜLLER, T. ; NEL, L. H. ; RECUENCO, S. ; RUPPRECHT, C. E. ; SCHUMACHER, C. ; TAYLOR, L. ; VIGILATO, M. A. N. ; DUSHOFF, J. J. Estimating the global burden of endemic canine rabies. PLoS. Neglected Tropical Diseases, v. 9, n. 5, p. e0003709, 2015. doi: 10.1371/journal.pntd.0003786.

2-FOOKS, A. R. ; BANYARD, A. C. ; HORTON, D. L. ; JOHNSON, N. ; MCELHINNEY, L. M. ; JACKSON, A. C. Current status of rabies and prospects for elimination. Lancet, v. 384, n. 9951, p. 1389-1399, 2014. doi: 10.11016/S0140-6736(13)62707-5.

3-MINISTÉRIO DA SAÚDE. Raiva: o que é, causas, sintomas, tratamento, diagnóstico e prevenção. Brasília: Ministério da Saúde, 2019.

4-MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual de diagnóstico laboratorial da raiva. 1. ed. Brasília: Ministério da Saúde. 2018. 108 p. ISBN: 978-85-334-1454-9.

5-WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO expert consultation on rabies: third report. Geneva: WHO Press, 2018. 183 p. ISBN: 978-9241210218.

6-WADHWA, A. ; WILKINS, K. ; GAO, J. ; CONDORI, R. E. C. ; GIGANTE, C. M. ; ZHAO, H. ; MA, X. ; ELLISON, J. A. ; GREENBERG, L. ; VELASCO-VILLA, A. ; ORCIARI, L. ; LI, Y. A pan-lyssavirus Taqman real-tima PT-PCR assay for the detection of highly variable rabies virus and other lyssaviruses. PLoS Neglected Tropical Diseases, v. 11, n. 1, p. e0005258, 2017. doi: 10.1371/journal.pntd.0005258.

7-MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÕES E COMUNICAÇÕES. Normativas do Concea para produção, manutenção ou utilização de animais em atividades de ensino ou pesquisa científica. 3. ed. Brasília: Concea, 2016.