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Vacina recombinante contra a Leishmaniose Visceral Canina, única chancelada pelo MAPA para comercialização no Brasil

Leishmaniose é uma questão de saúde pública e o médico-veterinário tem papel fundamental no combate

Matéria escrita por:

Clínica Veterinária

10 de fev de 2023


Msc. PhD Claudio Nazaretian Rossi, médico-veterinário, especialista em dermatologia veterinária. gerente técnico da Unidade Pet da Ceva Saúde Animal

Causada por protozoários do gênero Leishmania, sendo o agente etiológico no Brasil pertencente à espécie Leishmania infantum (= chagasi), a leishmaniose visceral (LV) é uma zoonose capaz de acometer diversas espécies domésticas e silvestres, além do homem. A doença é endêmica mundialmente e, de acordo com o Ministério da Saúde e Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS/OMS), de todos os casos humanos registrados na América Latina, cerca de 90% ocorrem no Brasil.

Raposas silvestres e marsupiais são os principais reservatórios do protozoário e não são acometidos pela doença, mas o papel dos cães no ciclo da LV é muito relevante, visto que eles atuam como reservatórios importantes na transmissão da enfermidade para os humanos, especialmente nas áreas urbanizadas.

O inseto flebotomíneo, que é o principal vetor do protozoário, ao picar um animal infectado pode abrigar o parasita em seu tubo digestório, onde ocorre parte do ciclo biológico da Leishmania até a formação da sua forma infectante (promastigota metacíclica). Após isso, ao picar um cachorro ou humano sadio, o parasita presente no tubo digestório do inseto pode ser transmitido, desencadeando um novo ciclo de transmissão da doença para outro hospedeiro vertebrado.

Com a inoculação do protozoário em sua forma flagelada na pele do cão, ocorre inicialmente uma resposta inflamatória local e a fagocitose do parasito por células de defesa, particularmente macrófagos, dentro dos quais ocorre a perda do flagelo e o protozoário atinge a forma amastigota, que se multiplica por divisão binária no interior destas células. A multiplicação das Leishmanias pode promover o rompimento dos macrófagos, desencadeando a sua liberação e nova fagocitose por outros macrófagos, até a sua disseminação, nos animais suscetíveis, para qualquer órgão, tecido ou fluido corporal, especialmente para órgãos linfoides (linfonodos, medula óssea, baço e fígado).

Do momento em que o cão contrai o protozoário até o aparecimento das primeiras manifestações clínicas da doença podem se passar meses há anos. Embora possa permanecer assintomático, um animal infectado pode atuar como reservatório do parasita, dificultando o controle da enfermidade, especialmente nas áreas em que há muita incidência de flebotomíneos, pois pode ser picado por outros insetos que passam adiante o protozoário ao picar animais ou pessoas. Esta é uma das razões pelas quais a LV é considerada uma doença silenciosa, de evolução crônica, e que está em ascensão no país, particularmente no que tange a dispersão territorial.

Até pouco tempo, a eutanásia de cães positivos para LV era obrigatória. Atualmente, apesar da possibilidade em determinados casos, a eutanásia não é mais mandatória, mas é importante destacar que não há até o momento fármacos disponíveis no mercado que promovam a cura parasitológica dos animais infectados, ou seja, que possibilitem eliminar por completo o parasitismo dos cães acometidos, mas apenas controlá-lo, com possibilidade de assim amenizar as manifestações da doença.

Dessa forma, o papel do médico-veterinário no combate à LV é importante para a saúde pública do país, pois é ele o responsável por orientar a prevenção da doença canina, e monitorar e controlar a carga parasitária de cães infectados, acompanhar a evolução clínica do animal e tratá-lo em caso de recidiva, além de auxiliar no monitoramento do número de animais acometidos na região para o controle epidemiológico da enfermidade.

 

Qual a importância de prevenir a leishmaniose visceral canina (LVC)?

Além do fato de não haver cura parasitológica, com consequente necessidade de acompanhamento de animais acometidos pelo resto da vida, importante salientar que o tratamento da LVC apresenta alto custo, havendo ainda o risco da ocorrência de recidivas da doença, ou mesmo não resposta à terapia instituída. Além disso, há possibilidade de que cães acometidos sirvam como fonte de infecção para o inseto vetor, propiciando assim a disseminação da enfermidade, com risco inclusive de acometimento de humanos, para os quais também pode ser potencialmente fatal se não tratada.

Outro agravante, não existem vacinas para prevenir a leishmaniose visceral humana (LVH), por isso o controle epidemiológico da doença se baseia nas ações contra os vetores (flebotomíneos) e reservatórios vertebrados – em especial os cães domésticos, para os quais se recomenda uso de repelente com o intuito de tentar impedir a infecção, aliado à vacinação anti-LVC, ações estratégicas para interromper o ciclo doméstico e urbano da LV.

 

Por que devemos vacinar os cães contra a LVC?

A imunização objetiva o estímulo da resposta imune do cão considerada protetora contra a infecção (resposta celular ou Th1), podendo gerar uma proteção individual de até 92 a 96% ao animal imunizado, conforme estudo de fase III realizado, mas como qualquer vacina, ainda é possível que os cães vacinados sejam infectados e se tornem portadores do protozoário.

Mesmo nestes casos, o diferencial entre um cão que foi vacinado e depois contraiu a doença e um animal infectado sem ter sido vacinado, é que o indivíduo que já foi imunizado previamente e que não respondeu de forma plenamente satisfatória à imunização, ou seja, eliminando a infecção, em geral desenvolve menos manifestações clínicas e possíveis complicações devido à doença. Mais importante do que isso é que os cães previamente imunizados normalmente apresentam menor parasitismo tecidual, o que atua ativamente na redução das taxas de transmissão do protozoário por meio do vetor.

 

Como foi elaborada a vacina recombinante contra a LVC? Ela é segura e eficaz?

A vacina recombinante contra a LVC apresenta em sua composição um fragmento de DNA da Leishmania infantum (= chagasi) utilizado para obtenção em laboratório da proteína A2, que é a responsável pela resposta imunológica direcionada contra o parasita. A elaboração da vacina contou com a parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a antiga farmacêutica Hertape Calier, e seu desenvolvimento aconteceu no Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia de Vacinas (INTCV), ligado à Fundação Oswaldo Cruz.

A proteína A2 foi o primeiro antígeno identificado na Leishmania donovani, e o primeiro fator de virulência específico das formas amastigotas de Leishmania sp. Anticorpos anti-A2 foram encontrados em amostras de soro de cães que apresentavam a infecção ativa da LV, e em menor número no soro de pacientes assintomáticos, fato importante para a indução da proteção contra a doença por meio da vacina.

Para o seu desenvolvimento foi necessário, além de muito estudo, testes experimentais de eficiência e segurança em diferentes níveis. A fabricação de vacinas recombinantes exige rigorosos protocolos sanitários que atendam às Normas de Biossegurança e às Boas Práticas de Fabricação (BPFs). Para ser aprovada pelo Ministério da Saúde (MS) e pelo MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), e posteriormente liberada para o mercado, a vacina precisou passar por três fases diferentes de estudo, incluindo testes duplo-cego, onde nenhum dos tutores dos animais que participaram dos estudos sabia quais deles receberam a vacina.

É, até o momento, a única vacina veterinária disponível no mercado brasileiro que passou por ensaios clínicos de fase III com resultados satisfatórios de segurança e eficácia, conforme disponíveis em literatura e chancelados pelos órgãos interministeriais (MS e MAPA) do governo.

 

Como funciona a vacina recombinante contra a leishmaniose?

A resposta imunológica desencadeada pela vacina, e que vai atuar na proteção do organismo do animal caso ele tenha contato posterior com a Leishmania por meio da picada do flebotomíneo, é a resposta tipo 1, também conhecida como resposta celular (Th1). É importante ressaltar que a vacina não impede a infecção pelo vetor, por isso é sempre recomendado que a proteção seja reforçada por produtos inseticidas e/ou repelentes que previnam a picada dos mosquitos.

Os dados mostram que a vacina contra a Leishmaniose protegeu um número significativo de cães em desenvolver a doença, e aqueles vacinados sintomáticos apresentaram um atraso neste processo e abrandamento das manifestações clínicas, se comparado aos animais não vacinados (FERNANDES. A. P. et al., 2008). Ou seja, o intuito de promover o estímulo imune adequado e apropriado para eliminar o parasita ou ao menos reduzir as manifestações clínicas, reduzir o número de protozoários circulante no animal e controlar o ciclo de novas infecções, é indubitavelmente alcançado por meio da vacinação.

 

Quais os riscos da vacina para os cães?

Assim como qualquer produto biológico, a vacina recombinante contra a LVC pode promover algumas reações que devem ser imediatamente tratadas, de acordo com a orientação do médico-veterinário. Quase sempre a reação adversa não decorre da proteína recombinante A2, mas de outros componentes que são essenciais para promover a resposta imunológica do animal vacinado ou utilizados para estabilização da vacina.

As reações mais comuns são decorrentes de uma resposta imune individual exacerbada contra a saponina, que tem importante papel no estímulo da resposta imunológica do tipo Th1. Na grande maioria dos casos, são manifestações transitórias concentradas no local da aplicação, como dor, formação de pápula ou nódulo, edema, eritema, alterações na coloração da pelagem, alopecia e reações de hipersensibilidade (alérgicas), com a possibilidade de ocorrência de prurido. Além dessas, apesar de serem de rara ocorrência, podem ocorrer manifestações sistêmicas, como febre, êmese, diarreia, angioedema, que se não tratadas antecipadamente e de maneira adequada podem evoluir para anafilaxia e óbito do paciente.

Ainda, alguns cuidados devem ser tomados a fim de evitar outras complicações, como não vacinar os animais que fazem uso de antibióticos, anti-inflamatórios (esteroidais ou não esteroidais) ou medicações que possam promover efeito imunossupressor. Cães que apresentam doenças de base também não devem ser imunizados contra a LVC, por isso é importante e recomendado que os animais sejam examinados e testados contra a doença antes de vacinados, conforme determinado pelo MS e MAPA.

 

O que recomenda o Ministério da Saúde?

O Ministério da Saúde reforça que o uso da vacina contra a LVC é indicado apenas para a proteção individual dos cães, não devendo ser aplicada em outros animais ou em humanos, e só devem ser vacinados animais assintomáticos com resultados sorológicos não-reagentes para a LV. Reforça, ainda, que outras medidas (como uso de repelentes/inseticidas que atuem contra o vetor) devem ser adotadas em associação.

Por ser uma vacina recombinante e promover o estímulo predominante da resposta celular, os animais vacinados não-infectados pelo protozoário não apresentam sorologia positiva para a doença nos testes sorológicos convencionais disponíveis no mercado nacional. Desta forma, é possível diferenciar os animais vacinados dos animais infectados, requisito do Ministério e que é importante para a campanha pública de controle da LV.

Nos últimos anos vivenciamos uma busca acelerada por vacinas e tivemos mais clareza sobre como a imunização coletiva é importante. A LV é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma das doenças mais negligenciadas do mundo, e o nosso papel como promotores da saúde única é utilizar da melhor forma todas as ferramentas que temos disponíveis para combater ou reduzir os seus efeitos.

 

Referências

CFMV – Por que a Leishmaniose é questão de Saúde Pública?. Disponível em: https://www.cfmv.gov.br/por-que-a-leishmaniose-e-questao-de-saude-publica/comunicacao/noticias/2020/07/14. Acesso em 19/01/2023.

CFMV – Guia de bolso de Leishmaniose Visceral. Disponível em: https://www.cfmv.gov.br/guia-de-bolso-sobre-leishmaniose-visceral/comunicacao/publicacoes/2020/11/02/#1 . Acesso em 19/01/2023.

FERNANDES, A. P. et al. Protective immunity against challenge with Leishmania chagasi in beagle dogs vaccinated with recombinant A2 proteinVaccine, v. 26, p. 5.888-95. 29 out. 2008.

MINISTÉRIO DA SAÚDE – Leishmaniose Visceral. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/l/leishmaniose-visceral . Acesso em 19/01/2023.

ROSSI, C. N. et al. Retrospective analysis of LEISH-TEC pharmacovigilance data in Brazil, May 2017-May 2019. Animal Leishmaniosis International Veterinary Event – ALIVE Congress, Málaga-Spain, S26, p.157-159, 2022. Proceedings.

TOEPP, A. et al. Safety analysis of Leishmania vaccine used in a randomized canine vaccine/immunotherapy trial. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, online, 2018.