A raiva é uma doença infecciosa causada pelo vírus envelopado de RNA do gênero Lyssavirus da família Rhabdoviridae. A doença é considerada uma antropozoonose (doença primária de animais e que pode ser transmitida aos seres humanos) acometendo diversas espécies de mamíferos, incluindo os morcegos. A raiva é um problema sério de saúde pública em mais de 150 países, responsável por milhares de mortes anualmente, principalmente na Ásia e África, locais onde o cão ainda é o principal mamífero responsável pela transmissão. O Brasil não é considerado um país livre da doença e, segundo dados do Ministério da Saúde, entre os anos de 2002 e 2022, foram registrados mais de 200 casos em gatos e mais de 1.700 casos em cães (https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/raiva-animal). No Brasil, foram encontradas 7 variantes antigênicas: variantes 1 e 2, isoladas dos cães; variante 3, de morcego hematófago Desmodus rotundus; e variantes 4 e 6, de morcegos insetívoros Tadarida brasiliensis e Lasiurus cinereus, além de outras duas variantes encontradas em Cerdocyon thous (cachorro do mato) e Callithrix jacchus (sagui de tufos brancos) que não são compatíveis com o painel estabelecido pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC), para estudos do vírus rábico nas Américas. Desde 2016, as variantes identificadas em cães e gatos tiveram origem de morcegos ou de canídeos silvestres.
A raiva apresenta basicamente três ciclos de transmissão, o urbano, representado principalmente por cães e gatos; o rural, representado por animais de produção, tais como bovinos, equinos, suínos e caprinos, e o silvestre, representado por raposas, guaxinins, primatas e, principalmente, morcegos. A doença é transmitida pela inoculação do agente em indivíduos suscetíveis, sendo a mordedura praticada por animal infectado a principal forma de transmissão. O ciclo urbano, com mordedura por cães e gatos acaba sendo a principal via de transmissão da raiva para seres humanos devido ao contato próximo com essas espécies. Outras vias de transmissão já documentadas são aerossóis, ingestão de tecidos contaminados, transplante de órgãos e contato com mucosa de animais contaminados.
Um dos grandes desafios da raiva é que a doença pode ter um longo período de incubação. Em cães e gatos esse período pode variar de 10 dias a 6 meses e em seres humanos de 2 semanas à 6 anos, com uma média de 2-3 meses. O período de incubação é influenciado por fatores como localização da lesão, sua extensão e gravidade além da proximidade com o Sistema Nervoso Central. Em cães e gatos, a eliminação do vírus ocorre pela saliva de 2 a 5 dias antes do aparecimento dos sinais clínicos e persiste durante toda a evolução da doença. Esses longos períodos de incubação podem fazer com que tanto tutores de cães e gatos ou mesmo seres humanos expostos a um acidente por mordedura não associem os sinais ao fato ocorrido, por isso, diante de qualquer acidente envolvendo a mordedura de animais, conhecidos ou não e, vacinados ou não, é importante a busca por orientação do médico-veterinário ou, no caso de seres humanos, a busca por orientação médica.
As manifestações clínicas, de forma geral, podem ser divididas nas seguintes fases: período prodrômico, período furioso e período paralítico, não havendo necessariamente a identificação ou manifestação de todas as fases. Há ainda uma variação de manifestações clínicas de acordo com a variante do vírus envolvida. Após o período de incubação, os primeiros sinais clínicos em cães e gatos geralmente envolvem alterações comportamentais, que duram cerca de 2 a 3 dias. Na fase prodrômica, especialmente em cães, animais agressivos podem tornar-se mais amigáveis enquanto aqueles mais tranquilos podem manifestar sinais de agressividade; esses animais tendem a querer se esconder em locais escuros ou demostram agitação inusitada. Outros sinais envolvidos são febre (geralmente branda), prurido no local da inoculação viral, anorexia, dilatação das pupilas, olhos cobertos pela membrana nictante, além de salivação (que se deve a paralisia dos músculos da deglutição) e alteração do latido, que pode se tornar rouco ou bitonal (devido à paralisia parcial das cordas vocais). A fase furiosa, que geralmente é muito curta ou até ausente, é a mais crítica para ocorrência da transmissão, já que os animais, especialmente os cães, além do comportamento errático, tendem a fugir e perambular e desenvolvem uma tendência a mordedura, seja de objetos, a si mesmo ou outros animais e pessoas que encontrem pelo caminho. Com a evolução, outros sinais neurológicos como convulsões podem surgir. A fase final da doença, geralmente a fase paralítica, se caracteriza por incoordenação motora e paralisia, que se inicia geralmente nos membros e evolui para pescoço e cabeça. A morte costuma ocorrer por parada cardiorrespiratória em decorrência da paralisia muscular. Especial atenção deve ser dada a sinais diferentes dos descritos, especialmente aqueles de paralisia, já que, como elucidado antes, a variante envolvida pode influenciar nas manifestações clínicas. Outro ponto de atenção aos veterinários que praticam a clínica de pequenos animais é que, para sinais neurológicos, a raiva deve sempre ser considerada um diagnóstico diferencial, especialmente em cães, já que doenças como a cinomose podem levar a sinais neurológicos que podem ser confundidos com aqueles da raiva na espécie canina. Ainda, um fator de risco que deve ser considerado é que nos morcegos um dos sinais é a paralisia das asas, impossibilitando-os de voar, tornando-os presa fácil para cães e gatos; portanto, deve-se sempre suspeitar de morcegos (hematófagos ou não) encontrados caídos no chão, em locais e horários não habituais ou ainda que não sejam capazes de se desviar de obstáculos.
Em seres humanos a doença costuma ter como sinais iniciais também alterações comportamentais, como sensação de angústia, dores de cabeça, febre branda e mal-estar, evoluindo para a fase de excitação, hiperestesia, sensibilidade à luz e ao som, dilatação das pupilas e salivação excessiva. Conforme a doença progride, pode haver espasmos musculares, convulsões e paralisia generalizadas, que evoluem para a morte do paciente. O diagnóstico laboratorial da raiva em vida está disponível apenas para seres humanos e pode ser realizado por imunofluorescência direta (sensibilidade limitada com chances de resultado falso negativo) de tecidos específicos, prova biológica com isolamento do vírus (inoculação em camundongos), detecção de anticorpos pela técnica de soroneutralização (apenas para pacientes sem antecedentes de vacinação) e pelo exame de PCR (reação em cadeia de polimerase) com identificação do RNA viral.
Para animais, de acordo com o Manual de Diagnóstico Laboratorial da Raiva (2008), devem ser encaminhados para o diagnóstico o animal inteiro, no caso de espécies silvestres, cabeça ou sistema nervoso central no caso de cães e gatos ou somente o sistema nervoso central no caso de bovinos, equinos e outros animais de produção.
O tratamento da raiva se restringe apenas a seres humanos e conta com protocolos específicos, incluindo o uso do soro antirrábico (Protocolo de Milwaukee e no Brasil, o mesmo protocolo adaptado, Protocolo de Recife). As unidades de tratamento de saúde humanas devem estar preparadas para a intervenção conforme diretrizes do Ministério da Saúde. Mesmo com o tratamento e a intervenção precoce, a raiva é uma doença quase que 100% fatal em seres humanos, havendo pouquíssimos casos registrados de cura. Em animais, a raiva não tem tratamento e é 100% fatal.
A raiva é uma doença que pode ser prevenida por meio da vacinação. Todos os cães e gatos devem ser vacinados de acordo com a legislação brasileira e, segundo as diretrizes internacionais de vacinação como do WSAVA – World Small Animal Veterinary Association (Squires, R.A. et al. WSAVA – Guidelines for the vaccination of dogs and cats, 2024), a vacina antirrábica deve ser considerada como essencial em todos os locais onde a doença não é erradicada. Embora a raiva seja uma doença de difícil erradicação, especialmente pela presença de reservatórios silvestres, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, o controle da raiva canina e eventualmente sua eliminação, poderiam ser alcançados com medidas de vacinação de pelo menos 70% da população canina, como forma de se obter uma imunidade de rebanho e diminuir as chances dos casos humanos. A vacinação é, portanto, a ferramenta mais importante na prevenção da doença em animais e seres humanos e cabe a nós, médicos-veterinários, sermos agentes de saúde e reforçar a importância desta prática.
Referências sugeridas
Kumar, A. et al. Canine rabies: an epidemiological significance, pathogenesis, diagnosis, prevention, and public health issues. Comparative Immunology, Microbiology and Infectious Diseases, 97, 2023.
Ministério da Saúde. Governo Federal. Raiva Animal. Disponível em: www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/r/raiva/raiva-animal
Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância epidemiológica. Manual de Diagnóstico Laboratorial da Raiva. 1. ed., Brasilia-DF, 2008.
Raiva, CID 10:A82 – Guia de Vigilância em Saúde UFU.
World Health Organization. Rabies. Disponível em: http://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/rabies/?gad_source=1&gclid=CjwKCAjwm_SzBhAsEiwAXE2Cv62gRvJSuHvqE6X0FWXY0I0SGpW1m1X-zOSZ7y_lq_sp8VbWaGZirxoC3AcQAvD_BwE
Consales, C. A. ; Bolzan, V. L. Rabies review: immunopathology, clinicas aspects and treatment. J. Venom. Anim. Toxins incl. Trop. Dis, v. 13, n. 1, p. 5-38 , 2007.
Karin Denise Botteon
MV. Msc. Technical Manager Pets
Boehringer Ingelheim Animal Health