Como não perder o seu cliente para a toxoplasmose?
Mitos e verdades do papel do gato na toxoplasmose congênita
Os tutores de gatos frequentemente têm dúvidas com relação ao papel do felino doméstico na transmissão da toxoplasmose, em particular quando a situação envolve gatos e gestantes no mesmo ambiente familiar. Muitos conceitos controversos se formaram a respeito do papel do gato doméstico no ciclo biológico do parasita e do risco do contato direto com esses animais na infecção, em particular na toxoplasmose congênita. Infelizmente, a insensatez predominante tem comumente apontado para a eliminação do gato do convívio humano como resolução simplista do problema, não sendo raro o desconhecimento de boa parte dos profissionais da saúde a respeito das vias de transmissão e do verdadeiro papel do gato no ciclo da toxoplasmose.
A origem do grande problema tem sido a recomendação de evitar o contato com qualquer gato durante o período gestacional, acarretando um aumento do abandono e do número de gatos errantes pelas ruas de várias cidades brasileiras. O médico-veterinário tem papel fundamental nesse processo, pois um pouco mais de conscientização sobre o assunto pode ser o suficiente para tirar o gato do papel de vilão da toxoplasmose e elucidar os reais fatores de risco de se contrair o agente infeccioso. Primeiro, a forma mais comum de infecção do ser humano pelo Toxoplasma gondii não ocorre comprovadamente pelo contato direto com os gatos 1, mas principalmente pelo consumo de carne contendo cistos do parasita e pela ingestão acidental de oocistos esporulados em alimentos como frutas, verduras, leite e água 1.
O consumo de carnes contaminadas contendo cistos do Toxoplasma gondii (agente etiológico) tem sido considerado a principal forma de transmissão da toxoplasmose 2. Produtos cárneos crus, como carnes cruas ou malcozidas, e o consumo de vísceras podem ainda aumentar o risco de transmissão do T. gondii, principalmente quando a preservação desses alimentos é inadequada 3. Outra fonte de infeccção importante é a ingestão de leite não pasteurizado de ovelhas, cabras, vacas e camelos contendo formas do parasita 2.
A relação água/alimentos também é um fator importante de transmissão do agente protozoário, já que a água pode servir como veículo dos oocistos do parasita 3,4. Essa fonte de infecção pode se dar tanto pelo consumo direto da água quanto pelo uso da água contaminada no preparo e no processamento de alimentos, como irrigações de hortas e o seu uso para lavar frutas e verduras 3,4. Alguns insetos, como baratas, moscas e formigas, além de minhocas, podem também servir como vetores mecânicos da disseminação do T. gondii no ambiente 4,5. Já o solo e a areia contaminados com fezes de felídeos contendo oocistos esporulados representam duradouras fontes de infecção desse parasita 5.
É fato científico que os felinos são os hospedeiros definitivos no ciclo do T. gondii e os únicos representantes urbanos a excretarem oocistos do parasita no ambiente por meio de suas fezes quando infectados pela primeira vez (primoinfecção) 4,6. Nessa etapa, os gatos podem se tornar uma fonte de infecção para outros animais, incluindo o ser humano, o que os torna ponto importante na epidemiologia da doença 4,7. Porém, algumas condições são necessárias para essa infecção estar viável à transmissão para seres humanos. A possibilidade de transmissão para seres humanos pelo simples ato de tocar ou acariciar um gato, ou até mesmo através de arranhões e mordidas, é mínima ou inexistente, devido às características de eliminação do agente e de higiene desses animais 8-10.
Os gatos são muito exigentes, e geralmente não permitem que as fezes permaneçam em seu pelo em períodos longos o suficiente para a esporulação do oocisto; prova disso é que o organismo não foi isolado a partir de pelo de gatos que estavam liberando milhões de oocistos sete dias antes 11. A eliminação dos oocistos pelas fezes ocorre por um período muito curto, com duração de uma a duas semanas; esses oocistos levam aproximadamente de um a três dias no ambiente em condições adequadas de umidade e temperatura para esporularem, e depois disso se tornarem infectantes – fator que pode ser eliminado com a limpeza diária das caixas de areia 10. É importante lembrar ainda que nem todo gato já entrou em contato com o T. gondii, portanto, nem todo gato é portador 12,13. Os portadores crônicos do agente dificilmente eliminarão oocistos novamente, mesmo após uma reinfecção, pois os gatos normalmente eliminam o agente apenas na primoinfecção, tornando-se imunes por toda a vida 12,13.
Nem mesmo quando se tornam imunodeficientes, como nas infecções por FIV e FeLV, há um risco maior de esses gatos se reinfectarem ou reexcretarem oocistos 12,13. Além disso, os gatos que habitam apartamentos e se alimentam apenas de alimentos comerciais ou dietas caseiras apresentam menor risco de contato com o agente, e consequentemente um potencial de transmissão menor ainda para seus responsáveis 14. Por esse fato, a infecção por T. gondii é maior em gatos errantes que em gatos domiciliados, devido ao hábito alimentar de caçarem pequenas presas como roedores e pássaros (carnivorismo), tornando importante que se impeça o acesso às ruas por parte desses animais 12.
Os gatos domiciliados geralmente são alimentados com produtos industrializados processados, e por isso livres de formas evolutivas viáveis do Toxoplasma gondii 12. Em geral, os gatos que habitam apartamentos tornam-se infectados por ingestão de cistos em carnes cruas ou malcozidas fornecidas por seus responsáveis (tutores) 10. Em estudo realizado na cidade de Curitiba, o principal fator de risco para a infecção de gatos domiciliados foi a administração de carne crua feita pelos seus próprios tutores 15,16.
Pessoas consideradas suscetíveis de adquirir a infecção devem tentar evitar o contato com cistos teciduais e oocistos, mediante uma série de medidas simples e muitas vezes ignoradas, quando se considera apenas a presença de gatos na casa 17. Entre as principais medidas profiláticas para evitar a toxoplasmose, alguns pontos devem ser considerados, como: manter os gatos domiciliados e bem alimentados, oferecendo alimentos bem cozidos e limpos, e evitar que saiam para caçar; combater os vetores mecânicos, como baratas e outros insetos; utilizar luvas e promover adequada higiene das mãos ao destinar as fezes de qualquer animal; usar luvas para jardinagem a fim de evitar o contato com a terra e, consequentemente, com os oocistos presentes no solo; não ingerir carne crua ou parcialmente cozida, principalmente a suína; lavar frutas e verduras, ou descascá-las, se possível for; lavar com água fervente e sabão as superfícies e utensílios utilizados no preparo de carnes; ferver o leite antes do consumo ou consumi-lo pasteurizado; fazer a limpeza das caixas de areia dos gatos diariamente, preferencialmente por não gestantes ou imunocomprometidos; realizar pesquisa sorológica nos gatos contactantes da família em questão, a fim de estabelecer medidas profiláticas para cada caso 8,10,12,18,19 (Figura 1).
• Evitar consumo de produtos cárneos crus |
• Não ingerir leite de origem animal não pasteurizado ou fervê-lo antes do consumo |
• Evitar consumo de água não tratada |
• Lavar frutas e verduras antes do consumo |
• Utilizar luvas para serviços de jardinagem |
• Utilizar luvas para limpeza das caixas de areia |
• Limpar as caixas de areia diariamente |
• Manter o gato domiciliado e impedir o seu acesso à rua |
• Oferecer somente alimento comercial aos gatos |
• Combater vetores mecânicos (insetos) |
• Higienizar as mãos após dar destino às fezes de qualquer animal |
• Lavar com água fervente e sabão as superfícies utilizadas no preparo de carnes |
Figura 1 – Principais medidas de prevenção da toxoplasmose
Principalmente no caso das gestantes, é necessário desmistificar que o simples fato de ter contato com gatos durante o período gestacional, sem analisar os fatores de risco envolvidos para os gatos e para essas mulheres, seja motivo para que elas tenham que se desfazer de seus animais de estimação 20. Evitar a exposição aos gatos não significa evitar exposição aos oocistos 10. Portanto, o afastamento ou até mesmo a eutanásia de gatos de estimação não soluciona o problema 8,12. Exames realizados previamente nas mulheres e nos seus gatos auxiliam a conduta profilática, pois gatos soropositivos para toxoplasmose já passaram pela fase de eliminação de oocistos e praticamente não apresentam riscos de transmitir a doença 21. Para os gatos soronegativos, é importante que se mantenha a sua soronegatividade, restringindo a sua exposição aos principais fatores de risco 21.
Considerações finais
O contato com gatos individualmente não é, provavelmente, uma forma comum de adquirir toxoplasmose, pelas razões já elucidadas neste artigo. O convívio entre mulheres gestantes e seus gatos representa nada mais do que uma experiência saudável quando se tem conhecimento dos principais mecanismos de transmissão e dos fatores de risco relacionados à doença.
Infelizmente, o desconhecimento de boa parte da população a respeito das vias de transmissão e do verdadeiro papel do gato no ciclo da toxoplasmose ainda é um grande problema. Porém, não há comprovação científica de que o convívio com o gato doméstico aumente as chances de contrair a doença, e desfazer-se do animal por conta da toxoplasmose é um ato que deve ser desmistificado, uma vez que contribui para o crescimento da população de gatos errantes e não traz nenhum benefício para o responsável e seu animal.
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