
Piometra em onça-parda (Puma concolor – Linnaeus, 1771) – relato de casoPyometra in Puma (Puma concolor Linnaeus, 1771) – case report
Piómetra en puma (Puma concolor Linnaeus, 1771) – relato de caso
Clínica Veterinária, Ano XXVI, n. 154, p. 26-36, 2021
DOI: 10.46958/rcv.2021.XXVI.n.154.p.26-36
Resumo: A piometra nos felinos pode se apresentar com ou sem secreção vaginal, dependendo da abertura do colo uterino. Os sinais clínicos mais evidentes de uma piometra de colo uterino fechado são perda do apetite, apatia, letargia, polidipsia, poliúria, hipertermia e aumento de volume abdominal. A conduta veterinária depende de inúmeros fatores, mas invariavelmente a paciente é submetida a procedimentos cirúrgicos de ovário-histerectomia. O presente relato de caso se refere a uma onça-parda (Puma concolor) de mais de 16 anos sob cuidados humanos em um zoológico do interior de São Paulo com suspeita clínica de piometra fechada. A paciente foi submetida a exame de ultrassom, análises laboratoriais e ovário-histerectomia. O animal se recuperou bem e retornou ao recinto de exposição do jardim zoológico.
Unitermos: felino selvagem, zoológico, infecção uterina, ovário-histerectomia
Abstract: Pyometra in felines may present with a vaginal discharge or no vaginal discharge, depending on the opening of the uterine cervix. The most obvious clinical signs of a closed uterine cervix pyometra are loss of appetite, apathy, lethargy, polydipsia, polyuria, hyperthermia and abdominal enlargement. The veterinary approach depends on numerous factors, but the patient is invariably submitted to an ovariohysterectomy. This case report discusses a puma (Puma concolor), aged over 16 years and under human care in a zoo in the state of São Paulo, Brazil, with clinical suspicion of closed pyometra. The patient underwent ultrasound examination, laboratory analysis and an ovariohysterectomy. The animal recovered well and returned to the display enclosure at the zoo.
Keywords: wild large cat, zoo, uterine infection, ovariohysterectomy
Resumen: En felinos la piómetra se puede presentar con o sin secreción vaginal, dependiendo de que el cuello uterino se encuentre abierto o cerrado. Los signos clínicos más evidentes de cuello cerrado son la pérdida del apetito, apatía, letargia, polidipsia, poliuria, hipertermia y aumento del volumen abdominal. El tratamiento depende de muchos factores, pero es común que a estos pacientes se les realice una ovariohisterectomía. El presente relato refiere a una puma (Puma concolor) de más de 16 años bajo cuidados humanos en un zoológico del interior del estado de São Paulo, Brasil, con diagnóstico presuntivo de piómetra cerrada. Se realizó una ecografía, exámenes de laboratorio y, finalmente, se realizó la ovariohisterectomía. El animal se recuperó bien, y volvió a su recinto de exposición en el zoológico.
Palabras clave: felino salvaje, zoológico, infección uterina, ovariohisterectomía
Introdução
A onça-parda (Puma concolor) é o mamífero terrestre de maior distribuição latitudinal do mundo, ou seja, a espécie é encontrada desde o sudoeste do Canadá até o sul da Argentina. As onças-pardas (Figura 1) são animais com enorme adaptabilidade para ocupar espaços naturais, habitando diferentes paisagens com distintas coberturas vegetais, desde áreas de terras planas e de baixas altitudes até elevadas altitudes na cordilheira dos Andes 1. Em território nacional, a espécie pode ser encontrada na floresta Amazônica, na Mata Atlântica, no Cerrado, na Caatinga, em campos e matas do Pantanal, e nos Pampas e serras da Região Sul do país 1.
Espécies de animais selvagens que ocupam grandes áreas de distribuição geográfica recebem inúmeras denominações locais, e a onça-parda é um bom exemplo disso. No Brasil a espécie é conhecida como suçuarana, puma, onça-bodeira, jaguaruna, onça-vermelha, leão-baio; em países latino-americanos o animal é conhecido como puma, león americano, león bayo, león colorado, león de montaña, mítzli e onza bermeja 1,2.
A onça-parda, menor do que a onça-pintada, é o segundo maior felino silvestre do Brasil, com peso médio de 35 a 45 kg para exemplares fêmeas e machos, respectivamente 3. Os filhotes nascem pintados, mas ao longo do tempo a pelagem se transforma em uma coloração uniforme que varia do marrom-acinzentado ao marrom-avermelhado 3.
O status de conservação das onças-pardas na natureza é considerado pouco preocupante, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), e elas não estão citadas na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçada de Extinção do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) 4,5 (Figura 2).
As onças-pardas são uma espécie muito bem representada fora da natureza; são comuns e numerosas em zoológicos, aquários e centros de resgates, e a grande maioria delas são submetidas a técnicas contraceptivas visando um controle populacional. O Zoológico Municipal de Sorocaba tem um plantel estimado em 1.250 animais selvagens, dividido em 340 espécies distintas em uma área de 12,8 hectares.
A piometra é o acúmulo de material purulento no útero secundário a uma infecção bacteriana. Essa enfermidade é descrita em cadelas e gatas-domésticas e é mediada por hormônios. Ocorre no diestro, secundariamente a hiperplasia endometrial cística (resultante de exposição crônica a progesterona) 6.
A etiopatologia das infecções uterinas em animais ainda requer maiores estudos e pesquisas. Elas são multifatoriais, com ação hormonal e repetidos ciclos reprodutivos, independentemente de gestações, alterações endometriais e fatores bacterianos 6. A piometra é resultado da proliferação de células do endométrio e do aumento da secreção das glândulas uterinas, gerando acúmulo de líquido na luz do órgão e diminuição da contração do miométrio, com prevalência do fechamento da cérvix em felinos 6.
As piometras são classificadas como abertas, com presença de secreção vaginal purulenta e odor fétido, ou fechadas, sem a presença de secreção vaginal 7. Os casos clínicos de piometras fechadas (colo uterino fechado) em animais são mais preocupantes e de prognóstico reservado, em decorrência de endotoxemia e alto risco de ruptura do útero 7.
As consequências de casos clínicos de piometra fechada são variáveis e dependem da reação de cada organismo, mas quase sempre os prognósticos são reservados e invariavelmente direcionados para cirurgia de emergência. Os principais sinais clínicos observados em piometras fechadas são perda de apetite, apatia, letargia, polidipsia, poliúria, hipertermia e aumento de volume abdominal, evoluindo para septicemia e até mesmo óbito 6. A poliúria e a polidipsia são mais relatadas em cadelas do que em gatas, sendo que em grandes felídeos esses sintomas também são pouco observados. Tanto as gatas-domésticas como as fêmeas de grandes felídeos apresentam leucocitose e algum grau de lesão renal, dependendo da paciente e do tempo de evolução 7,8.
Em animais selvagens, os sinais clínicos de infecções uterinas podem ser imperceptíveis e passar despercebidos com facilidade por tratadores e médicos-veterinários inexperientes. Devemos dar especial atenção aos felinos selvagens que têm o hábito de fazer a higiene corporal por meio de lambedura, sendo importante notar alterações na frequência dos processos de limpeza e se o comportamento se concentra em determinadas regiões em detrimento de outras, o que pode indicar incômodo ou desconforto. A conduta veterinária em relação ao processo inflamatório do útero depende da gravidade e da evolução do processo infeccioso na paciente 1.
Quando a piometra se apresenta na forma clássica, é de fácil diagnóstico, sendo o corrimento vaginal o principal sinal clínico, mas sua identificação pode ser desafiadora quando não há corrimento, ou seja, em casos clínicos de piometras fechadas. O diagnóstico preliminar é baseado no histórico da paciente, nos exames físicos e ginecológicos, nas análises hematológicas e bioquímicas do sangue e nos exames ultrassonográficos e/ou radiográficos do abdômen. É necessário executar de forma cuidadosa a palpação abdominal, para evitar ruptura do útero fragilizado 7.
O líquido intrauterino é facilmente visualizado no exame ultrassonográfico. A ecogenicidade do conteúdo luminal é variável, e o líquido do conteúdo uterino geralmente é caracterizado como conteúdo luminal anecogênico em hidrometras e mucometras ou como conteúdo luminal ecogênico em piometras, de teor exsudativo 9. O exame radiográfico é utilizado para auxiliar no diagnóstico de piometra, contudo o resultado geralmente é inconclusivo; além disso, todas as condições uterinas que reproduzam radiopacidade de tecido mole ou fluida, tais como hidrometra, hemometra, piometra, mucometra, torção uterina e útero não gravídico, não podem ser diferenciadas, assim como esse exame não permite a avaliação da parede uterina. Em distensões severas do útero observa-se que o órgão ocupa a região ventrocaudal, com deslocamento das alças intestinais 10.
Na medicina de animais selvagens, por diversos fatores, entre os quais o acesso limitado aos pacientes, os sinais clínicos mascarados associados ao diagnóstico tardio e até mesmo à baixa ocorrência de casos clínicos de infecções uterinas, é aconselhável encaminhar a paciente para o procedimento cirúrgico o mais rápido possível. Exames clínicos e laboratoriais são essenciais para direcionar a melhor terapia 11.
A piometra é uma infecção comum em animais domésticos e incomum em animais selvagens, porém já foi diagnosticada em leoas 12-16, leopardas 17, tigresas 18,19, onças-pintadas 20 e gatas-palheiras 21, todas mantidas sob cuidados humanos.
As piometras são mais comuns em animais adultos, acima de 10 anos de vida, mas não está descartada em animais jovens 7.
O presente relato de caso descreve a ocorrência de piometra fechada em uma fêmea adulta de onça-parda (Puma concolor) submetida a ovário-histerectomia total e com boa recuperação.
Relato de caso
O relato de caso é decorrente de um quadro de infecção uterina em uma fêmea adulta de onça-parda (P. concolor) pesando 38 kg, mantida no Zoológico de Sorocaba por mais de 16 anos. A onça-parda estava alojada no recinto com um exemplar macho adulto vasectomizado, e por isso não havia sido submetida a nenhum tratamento anticoncepcional durante toda a estada no zoológico. Havia sido resgatada na natureza e encaminhada ao Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) de Campo Grande, no estado de Mato Grosso do Sul, e em seguida ao Zoológico de Sorocaba. Não foi possível precisar a sua idade, estimada em mais de 16 anos de vida. Em ronda diária da equipe médico-veterinária do zoológico e com as informações fornecidas pelo tratador, observou-se sobra de alimento nas últimas refeições e um menor deslocamento do animal pelo recinto. Essa alteração de comportamento provocou o agendamento de um exame clínico. Sedada no próprio recinto, a onça-parda foi encaminhada ao Hospital Veterinário do Zoológico para exames complementares e coleta de material biológico.
O protocolo anestésico utilizado na contenção química foi uma associação de cloridrato de cetamina a 10%, na dose de (10 mg/kg), e cloridrato de midazolam b 0,5%, na dose de 1 mg/kg, aplicados pela via intramuscular, com auxílio de dardo anestésico e zarabatana. Durante o exame clínico observou-se temperatura retal de 38,4 ºC, indicando leve quadro febril. A palpação revelou discreto aumento de volume na cavidade abdominal, mais precisamente no hipogástrio. A paciente não apresentava alterações na genitália nem secreção vaginal evidente. O escore corporal era de 3/5, e verificou-se um leve quadro de desidratação.
Ainda sob efeito do procedimento anestésico, realizaram-se o exame ultrassonográfico e a coleta de sangue para exames laboratoriais. Por meio de um aparelho de ultrassom Mindray M5 e de um transdutor na frequência de 5 a 7,5 MHz, observaram-se o útero e os cornos uterinos com dimensões aumentadas, medindo aproximadamente 4,5 cm de diâmetro em corte longitudinal. O conteúdo uterino apresentou imagem hipoecogênica/anecogênica no lúmen do órgão e paredes de espessura diminuída, compatíveis com a distensão do útero, direcionando a suspeita clínica para piometra fechada sem secreção vaginal (Figura 3).
Os ovários apresentavam topografia habitual, dimensões mantidas, contornos irregulares e hiperecogênicos. O ovário esquerdo media 4,4 cm x 3,5 cm, com área discretamente hipoecogênica compatível com corpo lúteo em regressão e ovário direito medindo 4,7 cm x 3,6 cm (Figura 4).
O resultado laboratorial do hemograma não apontou alteração. Ao longo da estada do animal no zoológico, durante exames de rotina, realizaram-se três exames de sangue completos, cujos resultados não apresentaram nenhuma alteração significativa, exceto um leve aumento nos níveis de ureia e de alanina aminotransferase 2 (Figuras 5 e 6).
Exames laboratoriais | 1º exame (9/9/13) | 2º exame (18/6/19) | 3º exame (31/5/21) | Valor de referência 1,22 |
Eritrócitos | 6,05 milhões/mm³ | 6,42 milhões/mm³ | 5,96 milhões / mm³ | 6,64 a 8,18 milhões/mm³ |
Hemoglobina | 10,8 g/dL | 10,9 g/dL | 10,4 g/dL | 10,49 a 13,13 g/dL |
Hematócrito | 32,7% | 35,1% | 30,9% | 30,6 a 38,9% |
VCM | 54,05 fL | 54,67 fL | 51,85 fL | 43,9 a 50,08 fL |
HCM | 17,8 pg | 17 pg | 17,5 pg | 15,08 a 16,75 pg |
CHCM | 33% | 31,1% | 33,7% | 32,95 a 35,73% |
RDN | 19,1% | 20% | 15,2% | 14,81 a 16,91% |
Proteína total | 6,9 g/dL | 7,1 g/dL | 8,2 g/dL | 6,7 a 7,9 g/dL |
Leucócitos | 6,86 mil/mm³ | 8,62 mil/mm³ | 6,84 mil/mm³ | 6,28 a 10,42 mil/mm³ |
Neutrófilos | 78%: 5.351 mm³ | 74%: 6.378,8 mm³ | 68%: 4.651,2 mm³ | 61 a 89%: 2.940 a 29.250 mm³ |
Eosinófilos | 2%:137 mm³ | 0% | 0% | 0 a 2%: 0 a 1.570 mm³ |
Basófilos | 1%: 69 mm³ | 0% | 0% | 0 a 1%: 0 a 124 mm³ |
Linfócitos | 13%: 892 mm³ | 24%: 2.068,8 mm³ | 27%: 1.846,8 mm³ |
7 a 36%: 434 a 6.375 mm³ |
Monócitos | 6%: 412 mm³ | 2%: 172,4 mm³ | 5%: 342 mm³ | 1 a 6%: 42 a 744 mm³ |
Contagem plaquetária | 336 mil/mm³ | 315 mil/mm³ | 324 mil mm³ |
176 a 408 mil/mm³ |
Figura 5 – Resultados de hemogramas realizados em onça-parda (P. concolor) no Zoológico de Sorocaba
Exames laboratoriais | 1º exame (9/9/13) | 2º exame (18/6/19) | 3º exame (31/5/21) | Valor de referência 1,22 |
Creatinina | 2,53 mg/dL | 1,74 mg/dL | 1,9 mg/dL | 1,7 a 3,1 mg/dL |
ALT | 22 U/I | 56 U/I | 130 U/I | 19 a 215 U/I |
Fosfatase alcalina | 3 U/I | 5 U/I | 31 U/I | 1,5 a 24 U/I |
Ureia | 42,4 mg/dL | 45,17 mg/dL | 67 mg/dL | 20 a 38 mg/dL |
Figura 6 – Resultados de exames bioquímicos realizados em onça-parda (P. concolor) no Zoológico de Sorocaba
Não foi possível realizar exame radiográfico no momento da contenção química para o exame de ultrassom. Visando celeridade, o animal foi encaminhado para cirurgia em função dos resultados dos exames laboratoriais e físico, aliados ao resultado do exame de ultrassom que concluiu a possibilidade de piometra.
Realizado o agendamento do procedimento cirúrgico, o animal foi encaminhado ao Hospital Veterinário da Universidade de Sorocaba (Hovet/Uniso) para cirurgia de ovário-histerectomia. Um novo protocolo anestésico foi utilizado com a associação de cloridrato de cetamina a 10%, na dose de (6 mg/kg), e cloridrato de midazolam b 0,5%, na dose de 0,5 mg/kg, aplicados pela via intramuscular, com auxílio de dardo anestésico e zarabatana. Após 12 minutos, estabeleceu-se o acesso venoso e a continuidade do protocolo anestésico visando anestesia geral. Após a instalação da fluidoterapia (ringer lactato c, 4 mL/kg/h), administrou-se fentanil d na dose de 5 mcg/kg, associado a lidocaína e 1 mg/kg, por via intravenosa, e, em outra seringa, propofol f na dose de 3 mg/kg, também por via intravenosa, até que o animal permitisse a intubação 3-25.
Após a intubação orotraqueal, com emprego de laringoscópio, administrou-se isoflurano g pela via inalatória em quantidade suficiente para manutenção do animal em plano anestésico e realizou-se a monitorização de parâmetros basais (ECG, SpO2, EtCO2, Pani) (Figuras 7 e 8).
Após tricotomia da região abdominal ventral desde a cartilagem xifoide até a região púbica, realizou-se antissepsia com digliconato de clorexidina h 0,5% (Figura 9). A paciente foi posicionada em decúbito dorsal. A diérese foi realizada com uma incisão umbílico-púbica, seguida de divulsão do tecido subcutâneo para visualização da linha alba.
O acesso à cavidade abdominal foi realizado pela incisão da musculatura sobre a linha alba. Os afastadores Farabeuf foram posicionados para exploração da cavidade e exteriorização dos cornos uterinos. A ovário-histerectomia pela técnica das três pinças foi iniciada pelo corno uterino esquerdo, que apresentava aumento de volume e presença de aderência do epíplon. Promoveu-se a ligadura dupla do pedículo com fio não absorvível Nylon 1 i. O mesmo procedimento foi realizado no corno uterino contralateral. Na região da cérvix realizou-se ligadura com fio não absorvível Nylon 1 i para maior segurança do procedimento (Figura 10).
Após a ovário-histerectomia, a cavidade foi inspecionada, e não se encontraram focos hemorrágicos. Na síntese da linha alba utilizou-se fio não absorvível Nylon 1 i em padrão interrompido Sultan, seguido da sutura de aproximação do tecido subcutâneo com fio absorvível (Vicryl 0 j) em padrão intradérmico; na dermorrafia realizou-se sutura em padrão simples com fio não absorvível (Nylon 1 i). Como medicação pós-operatória, o animal recebeu meloxicam k na dose de 0,2 mg/kg, dipirona l na dose de 25 mg/kg e antibiótico (enrofloxacina m 5 mg/kg) por via intramuscular, ainda no centro cirúrgico.
Coletaram-se amostras para cultura bacteriana e tecido uterino em formol a 10% para exames (Figura 11).
Para evitar maiores deslocamentos, a paciente permaneceu por 10 dias internada em um recinto de dimensões reduzidas no setor veterinário do Zoológico de Sorocaba, onde lhe foram administrados antibióticos (enrofloxacina m 5 mg/kg), por um período de 10 dias, e anti-inflamatório (meloxicam k 0,2 mg/kg), por 3 dias, ambos duas vezes ao dia e administrados por via oral, antes da alimentação. Não houve necessidade de curativos locais na cicatriz cirúrgica, nem tampouco a paciente tocou ou lambeu o ferimento, que evoluiu de forma satisfatória. Posteriormente foi transferida do setor veterinário para o recinto de exposição. No momento, 90 dias após o procedimento, a onça-parda está bem, alimentando-se normalmente (Figura 12).
A cultura bacteriana resultou no isolamento de agente Gram (+) da espécie Staphylococcus xylosus.
No exame microscópico do fragmento uterino, observou-se lúmen repleto de debris celulares e neutrófilos degenerados com necrose em tecido epitelial, intenso infiltrado inflamatório composto por neutrófilos, linfócitos, plasmócitos e macrófagos em lâmina própria e obstrução das glândulas do endométrio por infiltrado inflamatório ou necrose (Figura 13).
Discussão
Na ordem Carnívora e em animais domésticos, as infecções uterinas são mais frequentes em cadelas do que em gatas, possivelmente pelo fato de as gatas estarem menos expostas à influência do hormônio progesterona, em razão das características comportamentais e fisiológicas da família Felidae durante o ciclo reprodutivo 26. Em animais selvagens, a infecção uterina é pouco relatada, mas, quando diagnosticada de forma precoce, os prognósticos são favoráveis, conforme comprovado no presente caso clínico, no qual o intervalo entre o diagnóstico e o procedimento cirúrgico foi de dois dias.
Os casos clínicos de piometra em animais selvagens com boa recuperação da paciente são incomuns. Infelizmente, a casuística demonstra que em sua grande maioria eles são diagnosticados post mortem 27-32. Os casos bem-sucedidos são resultado de procedimento cirúrgico (ovário-histerectomia) 33. No presente relato de caso, realizou-se o procedimento cirúrgico, e o fator determinante para sua realização foi a suspeita de piometra, confirmada pelo exame de ultrassom, apesar dos valores inalterados da série branca da paciente.
O exame de ultrassom é o meio de diagnóstico mais indicado em animais com suspeita de piometra, fornecendo informações precisas ao médico-veterinário sobre o tamanho e a espessura da parede do útero, assim como sobre a característica do conteúdo do lúmen uterino. O exame de ultrassom também é utilizado como diagnóstico diferencial para neoplasias e gestação, e, dependendo da celularidade, auxilia no diagnóstico entre mucometra, hidrometra e piometra 34.
As principais alterações no hemograma em gatas e cadelas com piometra são diminuição do número de hemácias e aumento do número de leucócitos, mas no presente relato de caso os padrões hematológicos estavam dentro dos parâmetros normais para a espécie 22,35.
O desenvolvimento da piometra é pouco claro, e as bactérias envolvidas no processo infeccioso são espécies comensais do trato digestório ou urinário. A pesquisa do bioagente envolvido na infecção uterina por meio de culturas bacterianas não é realizada de forma rotineira em pacientes diagnosticadas com piometra. Em resultados de culturas bacterianas realizadas em gatas-domésticas com diagnóstico de piometra, foram isoladas bactérias pertencentes aos gêneros Escherichia sp, Staphylococcus sp, Proteus sp e Klebsiella sp 36, corroborando o resultado do presente caso clínico com isolamento de Staphylococcus xylosus do conteúdo uterino da onça-parda.
Considerações finais
O artigo relata a primeira ocorrência de piometra em onça-parda mantida sob cuidados humanos em zoológico, com boa recuperação da paciente após o procedimento cirúrgico.
A rapidez do diagnóstico e o procedimento cirúrgico foram determinantes para o sucesso do tratamento e a pronta recuperação da paciente. Entre o diagnóstico de piometra por meio de ultrassom e a cirurgia passaram-se apenas dois dias, o que gerou a expectativa de um bom prognóstico. Atualmente, a fêmea de onça-parda está alojada no setor de exposição do zoológico, acompanhada de macho da mesma espécie e gozando de boa saúde.
Produtos utilizados
a) Dopalen®. Ceva. Paulínia, SP, Brasil
b) Dormire®. Cristália. Itapira, SP, Brasil
c) Solução de Ringer com lactato®. Eurofarma. Ribeirão Preto, SP, Brasil
d) Fentanest®. Cristália. São Paulo, SP, Brasil
e) Lidocaína®. EMS. Hortolândia, SP, Brasil
f) Propovet®.Ouro Fino. Cajamar, SP, Brasil
g) Isoforine®. Cristália, Itapira, SP, Brasil
h) Riohex®. Rioquímica, São José do Rio Preto, SP, Brasil
i) Nylon monofilamento®. Shalon. Anapólis, GO, Brasil
j) Vicryl®. Shalon, Anapólis, GO, Brasil
k) Maxican®. Ouro Fino, Cajamar, SP, Brasil
l) Febrax 0,5%. Lema Biologic do Brasil. Vespasiano, MG, Brasil
m) Chemitril®. Chemitec. São Paulo, SP, Brasil
Agradecimentos
Aos servidores do Hospital Veterinário da Universidade de Sorocaba (Hovet/Uniso), à profa. dra. Ana Carolina Rusca Correa Porto, coordenadora do Curso de Medicina Veterinária da Universidade de Sorocaba (Uniso), aos médicos-veterinários residentes Luan de Souza Santos e Flávia Paiffer, da Universidade de Sorocaba (Uniso), aos tratadores e estagiários do Zoológico de Sorocaba e à médica-veterinária patologista Viviane Cristhiane Nemer.
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