Modelos espontâneos de cardiopatias em animais de companhia
A cardiologia translacional tem grande importância na substituição da experimentação animal por modelos espontâneos de cardiopatias em animais de companhia

A teoria darwiniana de evolução das espécies e o reconhecimento de que a humanidade compartilha características biológicas e sociais semelhantes com todos os seres vivos, seja por questões religiosas ou meramente antropocêntricas, ainda gera polêmica e desconforto. De fato, peculiaridades como a complexidade de nossas organizações sociais e capacidades específicas parecem criar um abismo entre o homem e os outros animais. A espantosa compatibilidade de 98,6% do genoma humano com o dos chipanzés deixou claro que, para a ciência, essa distância sempre foi ainda menor. Essa consciência de que há mais semelhanças do que diferenças entre os seres vivos que habitam este planeta tem sido a base de todo o conceito de medicina e pesquisa translacional, já discutido em edições anteriores 1.
O envolvimento do uso de animais na medicina é notório. A liberação de qualquer medicamento para o mercado passa inevitavelmente por testes de eficácia e toxicidade em animais de laboratório. Mas e se a contribuição dos animais para a medicina fosse além da experimentação? É bastante claro que nossos animais de estimação adoecem espontaneamente, inclusive de enfermidades crônicas, e são acompanhados com zelo excepcional pelos mais atenciosos tutores. Mas até que ponto essas doenças são tão semelhantes às que nós, seres humanos, apresentamos, a ponto de podermos enxergá-las como uma mesma enfermidade acometendo ambas as espécies? Se os animais de companhia dividem o mesmo ambiente que seus tutores, quanto da observação deles não reflete melhor a complexa interação hospedeiro/agente/ambiente, em comparação com as cobaias de laboratórios? Quanta informação já documentada não poderia ser aproveitada se os médicos, ao se depararem com uma doença, se perguntassem “será que os animais têm isso?”.
A medicina translacional é a ponte que permite que informações obtidas em modelos animais de doenças de ocorrência natural contribuam com as várias especialidades médicas, de maneira não experimental e eticamente indiscutível. Atualmente, muitos centros veterinários dispõem de tecnologia e informação suficientes para atender às exigências de pesquisas biomédicas. Com o constante crescimento e aperfeiçoamento das especialidades, associado à disponibilidade cada vez maior de equipamentos de referência para diagnóstico, como tomografia e ressonância magnética, animais doentes têm recebido atenção médica quase equivalente à de seus tutores. E o estudo cada vez mais aprofundado das enfermidades, chegado ao nível molecular, tem aproximado as descobertas de pesquisas veterinárias e médicas de maneira surpreendente.
Em edições anteriores, discorreu-se sobre as importantes contribuições da aplicação da medicina translacional na especialidade da “oftalmologia única”. Neste texto, foram expostas as principais cardiopatias adquiridas nos animais de companhia e suas similaridades com o que tem sido descrito na medicina (Figura 1).
Cardiopatia | Espécie acometida | Correspondente em seres humanos |
Degeneração mixomatosa da valva mitral | cão (pequeno porte) | prolapso mitral |
Cardiomiopatia hipertrófica | gato | cardiomiopatia hipertrófica |
Cardiomiopatia dilatada | cão (grande porte) | cardiomiopatia dilatada |
Cardiomiopatia arritmogênica | cão (boxer) | cardiomiopatia arritmogênica |
Cardiomiopatia tireotóxica | gato | cardiomiopatia tireotóxica |
Cardiomiopatia hipertensiva | cão e gato | cardiomiopatia hipertensiva |
Cardiomiopatia diabética (?) | cão | cardiomiopatia diabética |
Fibrilação atrial | cão (grande porte) | fibrilação atrial |
Distrofia muscular de Duchenne | cão (golden retriever) | distrofia muscular de Duchenne |
Figura 1 – Cardiopatias primárias e secundárias a alterações sistêmicas, de ocorrência espontânea em animais domésticos, e seu correspondente em seres humanos
Modelos animais espontâneos na cardiologia comparada
Degeneração mitral
A degeneração mixomatosa da válvula mitral (DMVM) é a causa mais comum de insuficiência mitral em cães e representa a cardiopatia adquirida de maior ocorrência nessa espécie 2. Embora muitas causas sejam discutidas, é normalmente uma condição primária, sendo mais frequente em raças de pequeno a médio porte. Essa doença se caracteriza por uma protrusão das válvulas atrioventriculares para dentro do átrio, resultante da deposição anormal de glicosaminoglicanos nas cúspides e cordoalhas tendíneas 3. Pouco se sabe sobre os mecanismos moleculares envolvidos na fisiopatologia da doença, mas estudos indicam que, assim como em doenças valvulares de seres humanos, níveis aumentados de sinalização da serotonina (5HT) possam estar envolvidos. A partir de estudos anatomopatológicos, há evidências de que muitos cães desenvolvem a DMVM com o passar da idade, sendo essa cardiopatia muito similar micro e macroscopicamente à doença mitral em seres humanos 4.
De forma semelhante, o prolapso da valva mitral em seres humanos é normalmente uma condição primária, resultante da degeneração mixomatosa dos folhetos e das cordoalhas tendíneas. Assim como na DMVM em cães, a regurgitação mitral crônica tende a desencadear remodelamento cardíaco excêntrico, apresentando na maioria dos casos um comportamento benigno, mas também podendo evoluir para quadros de insuficiência cardíaca congestiva e morte súbita 4. O diagnóstico é normalmente feito na adolescência, mas as complicações tendem a aparecer em indivíduos de meia-idade e idosos 5. Por esse motivo, a existência de um modelo animal no qual a doença se desenvolvesse espontaneamente e o curso fosse mais rápido permitiria um acompanhamento mais criterioso da progressão dos sinais clínicos e da resposta ao tratamento. O reconhecimento do cão com DMVM como um modelo espontâneo da doença permite a transposição de informações entre as duas áreas médicas, sendo benéfico para ambas as espécies.
Cardiomiopatia hipertrófica (CMH)
A CMH é a cardiopatia mais comum em gatos domésticos, sendo considerada importante causa de insuficiência cardíaca congestiva e tromboembolismo nessa espécie. Em medicina, é a razão mais comum de morte súbita em indivíduos jovens, sendo também importante causa de ICC e fibrilação atrial em pacientes de mais idade 6. Apesar de algumas divergências relacionadas ao curso da doença, existem evidências suficientes para se acreditar que a CMH em seres humanos e em felinos domésticos seja essencialmente a mesma doença. Similaridades fenotípicas como hipertrofia assimétrica do ventrículo esquerdo sem causa aparente e enchimento diastólico comprometido são achados comuns às duas espécies. Histologicamente, a desorganização do arranjo de cardiomiócitos, lesões microvasculares (espessamento da camada média das artérias coronárias intramurais) e fibrose intersticial difusa também são alterações compartilhadas 7. Do ponto de vista genético, há evidências de um componente hereditário em ambas as espécies e a prevalência em determinadas raças, como o maine coon, sugere uma condição familial de transmissão autossômica dominante 8.
A partir de muitas perspectivas, a CMH felina se assemelha à humana, tornando o gato um modelo espontâneo de uma doença de grande importância para o ser humano. O reconhecimento dessas similaridades e sua exploração na pesquisa científica tendem a resultar em maior entendimento dos mecanismos patofisiológicos que levam à ICC nessa cardiopatia.
Cardiomiopatia dilatada
A cardiomiopatia dilatada é a terceira cardiopatia hereditária mais comum em seres humanos e a segunda mais frequente em cães 9. É caracterizada por dilatação das câmaras cardíacas e disfunção sistólica, podendo levar a quadros de ICC e à morte súbita. Tanto no cão quando em pessoas, a progressão da doença ocorre de modo semelhante, apresentando normalmente uma fase assintomática, uma se gunda fase de alterações elétricas sem evidências clínicas e por fim uma fase avançada com sinais de ICC, in cluin do tosse, dispneia, perda de peso e síncopes 10. Nessa fase, o paciente, seja humano ou canino, requer tratamento sintomático, e o prognóstico é ruim. Assim como as semelhanças fenotípicas e de progressão, o tratamento dessa cardiopatia também é muito parecido nas duas espécies. Salvo a alternativa do transplante em casos avançados da doença, sendo a CMD hoje o principal motivo para a utilização desse recurso entre as cardiopatias não isquêmicas em seres humanos, o tratamento sintomático dos indivíduos acometidos tem semelhanças marcantes com o que é preconizado nos cães, normalmente envolvendo inibidores da ECA, diuréticos e inotrópicos 9.
Diferenças histopatológicas referentes ao tipo de infiltrados nos cardiomiócitos foram encontradas na CMD de cães de raças distintas. Além disso, fatores como a idade de acometimento e a velocidade de progressão também variam entre as raças predispostas, como doberman, terranova, dogue-alemão e cão-d’água português, o que sustenta a hipótese de que existem diferentes tipos de CMD canina 11. Da mesma forma, a CMD em seres humanos também de monstra ter apresentações distintas, com diferentes idades de acometimento, progressão e prognóstico 12. Quanto aos padrões de herança genética, também existem variações. A CMD em seres humanos é normalmente resultante de uma herança autossômica dominante, mas casos de heranças mitocondriais e autossômicas recessivas ligadas ao cromossomo X também já foram relatadas. Em cães, existem evidências de herança autossômica dominante de penetrância variável, mas também há relatos de herança autossômica recessiva e de herança ligada ao cromossomo X9.
Apesar de todas as evidências de que a cardiomiopatia dilatada é uma única entidade clínica que acomete seres humanos e cachorros, estudos alusivos às bases genéticas da CMD em cães ainda estão distantes do que há descrito em nossa espécie. O mapeamento genético das diferentes raças de cães acometidos trará benefícios não só para a medicina veterinária, por meio da identificação precoce de animais predispostos, como para as pesquisas médicas, a partir da identificação de mutações em genes específicos, que podem também estar envolvidos na CMD em seres humanos.
Considerações finais
As vantagens da aplicação da medicina translacional na cardiologia são inúmeras, e a cada dia parecem ser mais frequentes. A contribuição da medicina veterinária para a medicina humana e vice-versa tem sido mais evidente a cada nova semelhança descoberta entre as enfermidades comuns nas duas práticas médicas. Quanto mais as pesquisas se aprofundam, principalmente no tocante ao entendimento subcelular dos processos patológicos, mais similaridades são encontradas, permitindo um estreitamento cada vez maior da lacuna que separa essas duas importantes áreas da saúde. A existência de modelos animais espontâneos para as principais cardiopatias que acometem seres humanos e o reconhecimento das enfermidades como únicas permite que as duas áreas médicas trabalhem em conjunto, somando as descobertas e subtraindo as incertezas, trazendo benefícios mútuos para o coração dos seres humanos e de nossos animais de companhia.
Referências sugeridas
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