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Pesquisa demográfica da profissão

A importância de conhecer a formação, a empregabilidade, o perfil, a satisfação profissional e as expectativas do médico-veterinário no Brasil

Matéria escrita por:

Clínica Veterinária

9 de mar de 2022

O médico-veterinário Felipe Wouk aborda nessa entrevista a preocupante explosão da profissão no país, a contribuição do CRMV-PR e de outras entidades do setor para o conhecimento da sua demografia, e o estudo que empreende hoje junto com parceiros sobre a demografia médico-veterinária brasileira O médico-veterinário Felipe Wouk aborda nessa entrevista a preocupante explosão da profissão no país, a contribuição do CRMV-PR e de outras entidades do setor para o conhecimento da sua demografia, e o estudo que empreende hoje junto com parceiros sobre a demografia médico-veterinária brasileira

Pesquisas demográficas são valiosas para conhecer uma população e dessa forma planejar ações para melhoras futuras. Essa ferramenta é igualmente estratégica para as profissões. A Ordem dos Médicos-Veterinários da França, equivalente ao nosso Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), há mais de 40 anos realiza periodicamente um estudo demográfico da profissão, que determina inclusive o número de vagas que serão ofertadas nas quatro escolas de medicina veterinária francesas!

A formação universitária e pós-universitária, a empregabilidade, a satisfação profissional e as expectativas do médico-veterinário são temas relevantes e precisam ser conhecidos em detalhes.

O Brasil é campeão mundial de cursos de medicina veterinária (493 – dados de agosto de 2021!) e nos últimos três anos (dados do CFMV) tem formado 12.300 novos profissionais por ano em média (um crescimento de 23%). A título de comparação, em um conjunto de 39 países pertencentes à Federação Europeia de Veterinária (Federation of Veterinarians of Europe – FVE) são graduados em média 8 mil novos profissionais por ano, fato considerado por eles alarmante!

Em 31 de agosto de 2021, o médico-veterinário Felipe Wouk publicou no site do CRMV-PR o artigo: “A demografia médico-veterinária necessita ser controlada”.

A partir daí, Felipe Wouk decidiu, com a ajuda de parceiros, empreender um estudo da demografia médico-veterinária brasileira que em breve disponibilizará em site específico um questionário para ser voluntariamente respondido pelos colegas.

 

O artigo: “A demografia médico-veterinária necessita ser controlada” está disponível no site do CRMV-PR, no link: https://www.crmv-pr.org.br/noticiasView/5864_noticia.html

A seguir, a entrevista de Felipe Wouk concedida à revista Clínica Veterinária em 1º de fevereiro de 2022.

 

Clínica Veterinária (CV) – Além do estudo demográfico que a França faz regularmente, existem outros?

Felipe Wouk (FW) – Sim! Especificamente no Brasil, o estudo censitário mais recente sobre a demografia médico-veterinária em nosso país data de 2016, no estado do Paraná, produzido por um consórcio de entidades de classe: Sindicato dos Médicos Veterinários do Paraná (Sindivet-PR), Conselho Regional de Medicina Veterinária do Paraná (CRMV-PR) e Associação Nacional de Clínicos Veterinários de Pequenos Animais (Anclivepa-PR). O estudo foi intitulado “Perfil, opinião, satisfação e expectativas dos médicos-veterinários com a profissão”. Para valorar um dado importante para o controle da demografia veterinária revelado por esse estudo paranaense, é preciso rememorar a história do Exame Nacional de Certificação Profissional (ENCP). Essa foi uma iniciativa regulatória do CFMV, como requisito para a inscrição do médico-veterinário no sistema CFMV/CRMVs. Esse exame nacional foi aplicado aos recém-graduados de 2002 a 2007 e teve 13 edições. Em um estudo feito pelo Ministério da Educação em conjunto com o CFMV, comparou-se a capacidade de avaliar a qualidade da formação profissional do ENCP em relação ao sistema oficial de avaliação. O ENCP evidenciou maior eficiência para discriminar qualidade. No censo Sindivet/CRMV-PR/Anclivepa, 53% dos médicos-veterinários advogam o retorno do ENCP como uma forma de melhor qualificar a nossa profissão! Alguns outros destaques desse censo: 43% desejam o aperfeiçoamento do ensino, julgando faltar o aprendizado prático e a capacitação para o mercado de trabalho, ao qual chegam sem noções de empreendedorismo e gestão pessoal e de negócio; boa parte está progressivamente insatisfeita com a profissão e queixa-se da falta de ética nas relações entre profissionais e da desunião da classe médico-veterinária.

O estudo demográfico mais recente da medicina veterinária foi feito em 2018, na Europa, capitaneado pela FVE: o “Survey of the veterinary profession” (um estudo detalhado da profissão veterinária) (https://fve.org/cms/wp-content/uploads/FVE_Survey_2018_WEB.pdf https://fve.org/cms/wp-content/uploads/FVE_Strategy_2020_R2_Web.pdf https://www.fve.org/cms/wp-content/uploads/FVE-VET-FUTURES-single-pages_web.pdf). Inaugura-se nessa publicação uma forma de análise situacional mais relevante do que simplesmente o número de estabelecimentos destinados ao ensino médico-veterinário. Trata-se da relação do número de médicos-veterinários por mil habitantes. Nos 39 países europeus membros da FVE, para uma população de 810.103.433 cidadãos, trabalham 309.144 médicos-veterinários, o que confere uma relação média de 0,38 médicos-veterinários/mil habitantes.

 

Publicações da Federation of the Veterinary profession in Europe (FVE)

 

Os Estados Unidos e o Canadá também coletam e analisam dados regularmente. Alguns exemplos nos dão o panorama do continente americano. O Canadá, com 38 milhões de habitantes, conta com 13 mil médicos-veterinários egressos de cinco cursos, com uma relação de 0,33 médicos-veterinários/mil habitantes. Nos Estados Unidos, com 328 milhões de habitantes e 119 mil médicos-veterinários que se graduam em 33 cursos, a relação é de 0,36. No México, com 131 milhões de habitantes e 58 mil médicos-veterinários, a relação é de 0,44. Infelizmente, no continente latino-americano não existe essa cultura que valoriza o conhecimento de dados para a proposição de políticas profissionais.

 

CV – Que aspectos merecem destaque desse estudo da Federação Europeia de Veterinária?

FW – Mais da metade dos médicos-veterinários europeus vivem nos seguintes países com as respectivas relações de médicos-veterinários por mil habitantes: Ucrânia (0,91), Espanha (0,58), Itália (0,50), Alemanha (0,50) e Reino Unido (0,41). Distribuídos pelos 39 países membros da FVE, existem 52 cursos de medicina veterinária que formam cerca de 8 mil novos profissionais a cada ano, o que é considerado alarmante pelos europeus.

Alguns outros dados desse censo merecem destaque: 69% dos médicos-veterinários europeus acham que os cursos não estão formando profissionais com as habilidades necessárias; 64% acham que muitos colegas exercem a profissão sem estar qualificados; 62% afirmam que estão se graduando profissionais em excesso. O estudo também sinaliza que na Europa já ocorre uma “superprodução” de médicos-veterinários, uma vez que 23% dos profissionais estão subempregados e 11% estão há mais de dois anos sem emprego. Para encontrar um emprego que garanta independência econômica, leva-se em média dois anos!

 

CV – Que evidências demográficas conhecidas no Brasil são motivo de preocupação?

FW – No Brasil, mais alarmante do que a relação de 0,7 médicos-veterinários/mil habitantes, que é extremamente alta, é o número de instituições de ensino superior com cursos de medicina veterinária. Com uma população de 215 milhões, trabalham no Brasil 154.312 médicos-veterinários, formados em 493 cursos – dados de agosto de 2021!!! A relação média no país, de 0,7, é quase o dobro da encontrada na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. O mais preocupante é revelado por um censo do CFMV: em 2017 eram 117 mil médicos-veterinários, e em 2021, 154 mil, um crescimento de 23% em três anos, com uma média de 12.300 novos profissionais por ano. Desse contingente, 71%, ou seja, 109.422 profissionais, trabalham nas regiões Sul (23%) e Sudeste (48%), com as seguintes relações por estado: RS (1,24), SC (1,07), PR (1,20), SP (0,93), MG (0,75), RJ (0,69) e ES (0,59). Os estados do Sul do Brasil têm uma relação de médicos-veterinários por mil habitantes que é o triplo dos índices europeu e norte-americano! O pior índice europeu é o da Lituânia, 1,29, que se equipara ao do Rio Grande do Sul. No entanto, o estado brasileiro com a maior concentração de médicos-veterinários não se encontra nessas regiões. Trata-se do Mato Grosso do Sul, com uma relação de 1,83. São 5.153 médicos-veterinários para 2.809.000 habitantes, o quíntuplo da média europeia e norte-americana!!

Poder-se-ia pensar na China como pior cenário, mas as informações disponíveis indicam que lá atuam 130 mil veterinários, sendo 13 mil na área de pequenos animais. Na China formam-se por ano 1.600 médicos-veterinários, e os que decidem trabalhar em clínicas saltaram de 10% para 40%. Para uma população de 1,4 bilhão, tem-se uma relação de 0,092.

Para exemplificar, Portugal, Espanha, Itália e Alemanha têm índices próximos de 0,5, considerados muito problemáticos pelos europeus, e que se equiparam ao índice do Espírito Santo. O Reino Unido tem índice de 0,41, que corresponde ao de Sergipe, e a França, de 0,29, correspondente ao do Amazonas. Essa relação é constante na França há 40 anos, desde quando a Ordem dos Médicos-Veterinários (organismo equivalente ao nosso CFMV) passou a regular o número de novas vagas para o concurso de acesso às quatro escolas de medicina veterinária públicas, não existindo cursos privados no país. Ali a demografia veterinária é avaliada anualmente, verificando-se aposentadorias, óbitos e estudos de demanda junto aos empregadores possíveis, e é desse modo que se determina o número de novos profissionais a serem formados (https://www.veterinaire.fr/system/files/files/2021-11/ODV-ATLAS-NATIONAL-2021.pdf).

 

Atlas demográfico da profissão veterinária francesa

 

CV – De que maneira a formação profissional está impactando a realidade da profissão no Brasil?

FW – O fato de a educação privada médico-veterinária ter-se tornado um grande negócio, especialmente no Brasil, fez com que, dos 32 cursos existentes em 1980, tenhamos chegado aos 493 em agosto de 2021, e esse número não para de aumentar: hoje já corresponde a mais da metade de todos os cursos existentes no mundo! Uma análise ética e moral da qualidade do ensino impõe uma pergunta: onde encontrar tantos docentes bem-formados, com experiência profissional prévia e maturidade intelectual para lecionar em 493 cursos? Boa parte de quem está ensinando deveria ainda estar aprendendo. Profissionais são contratados como sumidades multidisciplinares, porque terão que “ensinar” três, quatro, até cinco disciplinas ou mais, com baixos salários, tudo isso para diminuir os custos. Nesse sentido também, profissionais com doutorado custam mais caro, e muitas vezes permanecem empregados só até o momento da avaliação pelo MEC. O mérito e a qualidade não são valorizados por muitos mantenedores, que, por sua vez, cobram gordas mensalidades – exercendo um verdadeiro estelionato intelectual.

O egresso muitas vezes somente vai se dar conta do seu despreparo para o mercado de trabalho quando sofre, no Sistema CFMV/CRMVs, um processo ético-disciplinar por imperícia. Médicos-veterinários são contratados como docentes, dedicando-se ao emprego sem a devida vocação, mas rendendo-se às condições dos mantenedores por razões de subsistência econômica. Alguns, inclusive, sofrem por trair seus valores e crenças mais valiosos, o que leva a um esboroamento moral das instituições de ensino e de boa parte desses médicos-veterinários. Outra consequência é um processo de autoengano coletivo como mecanismo de defesa: “o professor finge que ensina, e o estudante finge que aprende”. Como resultado, entrega-se à sociedade, em muito casos, um profissional que não atende ao perfil profissional de um egresso estabelecido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN).

Para agravar, esse profissional terá uma baixa remuneração e será pouco reconhecido socialmente.

Felizmente, em outras situações nos deparamos com profissionais que já durante a graduação se conscientizam das deficiências de sua formação e passam a buscar alternativas para uma educação continuada; isso, no entanto, pode demandar recursos financeiros que não estão disponíveis a todos, ocasionando mais desigualdades.

Há cursos de medicina veterinária no Brasil, públicos e privados, que se equiparam aos melhores existentes na Europa, nos Estados Unidos e em outros países, mas, infelizmente, nesse universo de 493 cursos, são a minoria. No Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação do Mercosul (Arcu-Sul), iniciativa do Mercosul Educacional, 14 cursos brasileiros foram acreditados. O Sistema CFMV/CRMVs instituiu um sistema de acreditação que distinguiu até agora poucos cursos. É evidente nesse cenário que o sistema oficial de avaliação pelo MEC há muito tempo não discrimina qualidade, como demonstram relatórios elaborados pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), disponíveis publicamente.

Encontramo-nos em uma rota de perda dos valores da nossa cultura profissional, da autoestima e do reconhecimento social, formando mal a maioria dos médicos-veterinários brasileiros, para o subemprego ou o desemprego. É preciso mudar!

Para que possamos racionalmente produzir as mudanças necessárias para uma formação médico-veterinária de qualidade, é necessário iniciar pelo controle da demografia veterinária. O primeiro passo é realizar no Brasil, a exemplo do que fez a Federação Europeia de Veterinários (Federation of Veterinarians of Europe – FVE), um censo demográfico nacional da profissão.

Com alegria, comunico que, com o patrocinínio de parceiros da indústria farmacêutica veterinária (Vetnil, Labyes e Organact), de uma empresa de assessoria em pesquisa científica (AAC&T) da colega Camila Martins e com o apoio do CRMV-PR, do qual sou consultor ad hoc para assuntos da educação médico-veterinária, daremos início na segunda quinzena de março ao estudo da demografia médico-veterinária brasileira! Agradeço vivamente a essas empresas e ao Conselho do Paraná pela confiança e pelo apoio para a realização desse trabalho. Comigo colaboram dois colegas que igualmente sempre defenderam a necessidade desse estudo, os professores Rafael Mondadori e Marcelo Pacheco.

 

CV – De que maneira será desenvolvido o estudo da demografia médico-veterinária brasileira e quando serão publicados os resultados?

FW – Resumidamente, as etapas são: delineamento do estudo, submissão a um comitê universitário de ética na pesquisa, criação de interface web exclusiva para coleta de dados, projeto de marketing para coleta de dados, análise estatística de dados e a edição e publicação dos resultados.

Para a obtenção dos dados já foi definido um questionário e variáveis de interesse. Neste momento o projeto está sendo submetido ao Comitê de Ética da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A coleta de dados será realizada toda ela online mediante preenchimento voluntário de questionários pelos colegas em uma plataforma digital exclusiva, com absoluto respeito ao sigilo e à Lei de Proteção de Dados.

Essa plataforma estará disponível para inserção de dados no dia 1º de abril deste ano e permanecerá aberta até o final do mês de setembro.

Na sequência será realizada a análise estatística exploratória completa, com tabelas, gráficos e combinações de análises das variáveis pertinentes ao propósito do estudo.

Também será feita a análise inferencial para o perfil do médico-veterinário respondente do questionário.

Constarão do estudo, mediante o emprego de ferramentas de geoprocessamento, o mapeamento do perfil dos entrevistados e a identificação das áreas do país onde os perfis se diferenciam.

Após todas as análises, será confeccionado um relatório técnico contemplando métodos, resultados e principais interpretações relevantes.

Ao final, o material será publicado em forma de livro com registro no ISBN.

 

CV – Quais serão os desdobramentos possíveis após a publicação do estudo?

FW – Busca-se a sensibilização das autoridades do Ministério da Educação, responsáveis pela autorização da abertura de novos cursos superiores de medicina veterinária, para a necessidade de estabelecer, a exemplo do que ocorreu com a medicina humana após a publicação do estudo deles sobre a demografia médica, um período de pelo menos cinco anos sem a abertura de novos cursos.

Espera-se que a sensibilização também ocorra entre gestores e mantenedores de cursos privados, a fim de que prevaleça a qualidade e não a quantidade. Nesse sentido, o estudo deverá fornecer subsídios e argumentos para o retorno do Exame Nacional de Certificação Profissional e a necessidade do cumprimento das Diretrizes Curriculares Nacionais da Medicina Veterinária.

A falta de clareza sobre os nossos valores, tanto pessoais quanto profissionais, e as situações em que tais valores se veem ameaçados enfraquecem o sentimento de pertencimento a uma classe, levando à perda do envolvimento e da motivação. É preciso que cada um de nós, como médicos-veterinários, reflita e se engajeno resgate e no fortalecimento dos nossos valores profissionais.