O sistema educacional e o trabalho daqui para a frente
Entrevista com Rafael Gianella Mondadori
O professor Rafael Gianella Mondadori, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), publicou recentemente na Revista Brasileira de Reprodução Animal um instigante artigo sobre as novas relações entre a educação e a formação profissional. O ponto central é a divergência entre esses dois universos. Enquanto o sistema educacional ainda opera nos padrões do século passado, despejando “conteúdo” técnico, o universo do trabalho mudou e segue em constante modificação, exigindo qualificações que vão muito além do conteúdo técnico – por exemplo: habilidades de comunicação, saber enfrentar e superar situações caóticas, ter resiliência, empatia, flexibilidade e muitas outras características do universo comportamental. A grande maioria dos professores não está preparada para oferecer aos alunos formatos que estimulem o aprendizado e levem em conta as gigantescas mudanças dos processos que os jovens enfrentarão no mercado de trabalho, agora e no futuro.
Segundo o professor Rafael, é urgente incorporar no sistema educacional, em todos os níveis e em especial nos cursos de medicina veterinária, novos conceitos, terminologias, mecanismos e estratégias educacionais para que o profissional formado hoje se insira com qualidade no universo do trabalho. Nesta entrevista ele destaca itens que merecem análise e reflexão a respeito dessa mudança de paradigma educacional na medicina veterinária.
Clínica Veterinária (CV) – Na sua opinião, quais são as principais mudanças ocorridas no Brasil e no mundo no universo do trabalho da medicina veterinária, especialmente no setor de pequenos animais? Quais os grandes desafios que o profissional enfrenta hoje?
Rafael Mondadori (RM) – Essa é uma pergunta ampla, difícil de responder em poucas linhas, porém necessária. Atualmente, assim como em qualquer atividade do mundo do trabalho, na medicina veterinária o profissional deve estar apto a enfrentar as incertezas desse universo. A medicina veterinária é uma profissão muito ampla, com um escopo de atuação bastante extenso. Especificamente na área de pequenos animais, o conhecimento tem avançado muito rapidamente, com novas abordagens descritas na literatura científica numa velocidade à qual nunca antes a nossa sociedade esteve exposta. Assim sendo, o profissional deve se manter atualizado, ou seja, a educação continuada deve ser uma constante e buscar a aplicação das melhores técnicas dentro de cada situação do seu dia a dia. Tentando resumir a característica mais importante nos dias atuais, pode-se dizer que o profissional tem que ser resiliente. Isso significa adaptar atitudes e comportamentos à evolução tanto da ciência quanto da sua relação com os pacientes e tutores, ou seja: o profissional tem que ser capaz de superar constantemente as adversidades profissionais e pessoais.
CV – Aumentou o número de postos de trabalho que demandam alta qualificação, mas os de qualificação média sofreram redução. O que significa isso na prática para o profissional na medicina veterinária?
RM – Estudos de diferentes instituições, entre elas a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), têm mostrado que o mundo do trabalho tem – e sempre terá – espaço para profissionais altamente qualificados (que é o que se espera daqueles de nível superior, como os médicos-veterinários), assim como para profissionais que exerçam atividades que exijam baixa qualificação, como, por exemplo, os de limpeza, informações, etc., – sendo que as atividades exercidas por estes últimos estão em grande risco por causa do desenvolvimento tecnológico. Diante disso, cabe ressaltar que os profissionais conhecidos por “nem-nem” não têm espaço no mundo do trabalho atual, e terão muito menos no futuro. Isso significa dizer que o médico-veterinário que não é altamente qualificado e treinado para o exercício profissional não tem espaço no mercado. Quando eu digo “altamente qualificado e treinado”, não falo especificamente em conhecimento técnico e habilidade prática em diferentes temas, e sim que o indivíduo saiba quando aplicar seu conhecimento para a resolução efetiva dos problemas na sua atividade profissional.
CV – O que significam as expressões “mundo Vuca – volátil, incerto, complexo e ambíguo” (do inglês volatility, uncertainty, complexity e ambiguity) e “ambiente Bani – frágil (e antifrágil), ansioso, não linear e incompreensível” (do inglês brittle, anxious, nonlinear e incomprehensible)? Poderia dar exemplos?
RM – Esses conceitos interessantes conseguem colocar em palavras as situações que vivemos no nosso dia a dia. Segundo os estudiosos, o mundo Vuca já passou; atualmente, vivemos em um ambiente Bani. Isso significa dizer que temos que nos adaptar a diferentes situações sobre as quais não temos controle, ou seja, temos que nos beneficiar do caos que permeia nossas vivências diárias. A situação que vivemos com a pandemia de Covid-19 nos mostrou com muita clareza essas diferentes circunstâncias. Todos nós, antes do início da pandemia, tínhamos diversos planos para o ano de 2020 – planos esses que certamente foram frustrados. Da mesma forma, cada um de nós conhece exemplos de pessoas que se adaptaram bem a essas mudanças, a esses planos frustrados, enquanto outras não conseguiram reinventar-se, o que ocasionou muito sofrimento, incluindo o desenvolvimento de enfermidades físicas ou mentais. Assim sendo, o profissional deve estar apto a viver em um mundo com essas características. Resumidamente, temos que interiorizar e vivenciar o conceito de antifrágil de Nassim Taleb, beneficiando-nos do caos.
CV – O universo profissional atual, ou seja, o “ambiente Bani”, deve ser ocupado por profissionais que se caracterizem por flexibilidade, gestão do tempo, liderança remota, autonomia, resiliência, empatia, atenção plena, inteligência emocional, etc. Como despertar os sistemas educacionais para essa nova realidade?
RM – As evidências mostram – e eu tenho observado – que o sistema educacional está obsoleto e não atende às demandas nem do mundo do trabalho nem dos estudantes. Atualmente, estou convicto de que o despertar do sistema educacional para essa nova realidade deve ser estimulado com muita veemência pelos estudantes e pelos usuários dos serviços médico-veterinários. Os sistemas educacionais são paquidérmicos, muito resistentes a mudanças. Assim sendo, enquanto não houver uma pressão social forte o suficiente para retirá-los dessa inércia, não vejo muita possibilidade de mudança, principalmente pelo fato de nosso sistema de avaliação e regulação ser falho.
CV – Considerando “o que ensinar” e “como ensinar”, como entende que devem ser as aulas de medicina veterinária nesse novo formato? Que habilidades e estratégias os professores devem desenvolver para que as aulas de fato formem aptidões adequadas a suprir as necessidades dos alunos e futuros profissionais?
RM – Há apenas dois problemas na educação: o que ensinamos e como ensinamos. Essa frase do dr. Roger Schank me encanta pela sua simplicidade e por seu profundo significado. A produção do conhecimento nunca foi tão volumosa como nos dias atuais, o que mostra a importância do tempo que temos que dedicar para optar pelo que deve ser ensinado nos cursos de medicina veterinária. Esse volume de conhecimento torna o ensino conteudista totalmente obsoleto. Assim sendo, devemos ter muito claro o conceito de transferência – ou seja, o estudante aprende um conceito com solidez, e esse conceito é transferido para diferentes situações profissionais. De forma similar, a maneira como ensinamos é extremamente importante, pois a utilização de diferentes metodologias é que permite o desenvolvimento de habilidades e competências importantes para o exercício profissional do futuro médico-veterinário. Com o devido cuidado que se deve ter com as generalizações, é bastante evidente que os métodos tradicionais de ensino não são mais eficientes. Assim sendo, de maneira geral, o aprendizado tem que ser ativo – o que significa dizer que o estudante deve ser protagonista do seu aprendizado.
CV – As informações estão hoje disponíveis de forma imediata na internet. Assim, de que maneira o ensino deve transmitir aos alunos formas confiáveis de navegar com segurança no oceano de informações?
RM – Um dos maiores absurdos que ainda vejo em algumas salas de aula de educação superior são cartazes onde se lê: “PROIBIDO O USO DE CELULAR”. Como dito na pergunta, hoje as informações estão disponíveis de forma imediata na internet; assim sendo, nós, como docentes, devemos ter o papel preponderante de ensinar ao estudante como transformar essas informações em conhecimento e, principalmente, como usar essas informações para resolver os problemas dos usuários da medicina veterinária – quer dizer, da população do planeta.
CV – O sistema educacional atual pune erros, mas sabe-se hoje que os erros e insucessos servem para ser compreendidos e criar um contexto de aprendizagem. De que forma o professor vê a possibilidade prática disso?
RM – Todos nós conhecemos muito bem o ditado “É errando que se aprende”; porém, como é de conhecimento de todos, temos poucas chances de errar durante a nossa vida acadêmica. Assim sendo, nós, docentes, durante a formação dos futuros colegas, temos a obrigação de criar situações em que os estudantes se sintam seguros para errar, podendo, por meio dos seus erros, desenvolver o aprendizado. Além disso, há também uma questão comportamental como pano de fundo: nenhum ser humano se sente confortável em errar, porém o erro faz parte de nossa vida. Assim sendo, temos que saber qual a nossa reação diante de um erro cometido. Por isso, durante a formação acadêmica deve haver uma atmosfera que dê segurança ao profissional em formação para que ele “se sinta seguro em errar”, fazendo com que, gradualmente, absorva esses ensinamentos, de modo que, quando ocorrer um erro durante a vida profissional, esse indivíduo, por já ter vivenciado tal situação, não se desestabilize emocionalmente. Os cursos de medicina veterinária devem ser um aprendizado para a vida e não apenas um aprendizado técnico da profissão.
CV – O atual universo do trabalho valoriza profissionais que “fazem com o que sabem” e sua aptidão de comportar-se e adaptar-se a uma realidade em constante mudança. Como o processo educacional pode evoluir para estimular a criatividade, o pensamento crítico, a comunicação e a colaboração?
RM – Essas características só podem ser desenvolvidas por meio de “aprender fazendo”. A criatividade, o pensamento crítico, a comunicação e a colaboração não são desenvolvidos em um estudante que assiste passivamente a uma aula expositiva. Essas características só podem ser desenvolvidas de forma eficaz quando, por meio de técnicas específicas, o trabalho discente efetivo é estimulado. Quero também ressaltar que, para que essas situações sejam eficientes, deve haver um treinamento docente específico, pois a maioria de nós, que hoje somos professores, não recebeu treinamentos pedagógicos e foi formada sem a aplicação dessas técnicas.
CV – Que sugestões e orientações daria ao professor especializado em determinado assunto para que não induzisse uma especialização precoce em suas aulas?
RM – Basicamente, a orientação para isso é que sejamos, antes de especialistas em determinada área, médicos-veterinários com uma visão holística da profissão. Isso permite que rotineiramente nos questionemos sobre que habilidades e competências são necessárias para um profissional recém-egresso do curso de medicina veterinária. É importante lembrar aqui que, mesmo que não tenhamos essa visão muito clara, existem documentos legais, tanto no Brasil quanto no exterior, que permitem que saibamos qual o perfil do egresso desejado para o médico-veterinário. Para isso sugiro que todos conheçamos o perfil descrito nas Diretrizes Curriculares da Medicina Veterinária (http://portal.mec.gov.br/docman/agosto-2019-pdf/120701-rces003-19/file).
CV – Hoje a quantidade de informações se multiplica exponencialmente, e a inteligência artificial é uma realidade concreta. O aluno precisa saber buscar essas informações, avaliar sua importância e definir o que de fato vale a pena aprender. No entanto, os projetos político-pedagógicos dos cursos (PPCs) são obsoletos, e há evidências de que após dois anos os alunos esquecem 50% de tudo o que aprendem. Que habilidades e competências devem ser trabalhadas na graduação para formar profissionais de qualidade?
RM – É bem verdade que a maioria dos projetos político-pedagógicos (PPCs) dos cursos são obsoletos, pois são conteudistas. Porém, conforme minha experiência, muito mais grave que a obsolescência dos PPCs é que mesmo os documentos bem escritos não são cumpridos. É importante lembrar que todo PPC tem o que se conhece por currículo oculto, ou seja, atividades que são exercidas, porém não descritas no documento; assim sendo, um PPC não muito bem elaborado não é desculpa para um processo educacional mal feito. Para que um PPC acompanhe as diretrizes curriculares nacionais (DCNs), ele certamente tem que ser um documento moderno, cujo conteúdo não é o fator central. Conforme descrito nas DCNs, um PPC bem elaborado tem que levar em consideração três importantes características: conhecimento, habilidades e atitudes. Conhecimento é o que sabemos e o que entendemos; habilidade é como usamos o que sabemos; e, por fim, as atitudes resumem o modo como nos comportamos e nos envolvemos no mundo. O alicerce para esses três importantes pilares deve ser o que se conhece por meta-aprendizado – ou seja, como nos adaptamos e como refletimos sobre os nossos atos –, envolvendo características importantes como metacognição e mentalidade de crescimento.
CV – Se hoje as aulas expositivas não ativam mais a emoção dos alunos e se a emoção é um dos principais fatores estimuladores do aprendizado, como devem ser repensados os PPCs de modo a “ativar” emoções dos alunos?
RM – A psicopedagogia já determina que, para que haja aprendizado, tem que haver estímulo das emoções. Quando falo em aprendizado, falo em mudança de comportamento e não apenas em aquisição de conhecimento. Quando a emoção é estimulada, desenvolvem-se sentimentos, e esses sentimentos levam à mudança de atitudes e comportamentos, transformando a forma como o indivíduo atua na sociedade. Na aula expositiva, em cujo processo o estudante é um ente passivo, as emoções não são estimuladas. Além disso, atualmente, caso o aluno não consiga compreender o que foi tratado em aula, ele pode a qualquer momento, sem nenhum custo, acessar informações muito similares e muitas vezes com uma qualidade maior em plataformas digitais como, por exemplo, YouTube. Há alguns anos, quando não compreendíamos um assunto em uma aula expositiva, a única alternativa que tínhamos era consultar um livro ou as anotações de um colega. Diante disso, a maioria de nós, “formados no século passado”, prestávamos atenção à aula, pois era a única oportunidade que tínhamos de acessar aquele conhecimento de uma maneira mais simples. Resumidamente, nossa emoção era ativada, pois o acesso à informação era escasso.
CV – Como configurar os PPCs para que o aprendizado de habilidades, as atitudes e o meta-aprendizado se alinhem aos conteúdos curriculares?
RM – Realmente, é fácil responder a essa pergunta, porém é difícil executar a resposta. Para que habilidades, atitudes e meta-aprendizado sejam desenvolvidos nos estudantes, é necessário que haja uma alteração na forma como se trabalham os conteúdos. Isso significa que devemos, como instituições de educação superior, trabalhar de forma diferente os conteúdos. Devemos nos fixar em como abordar o conteúdo e não apenas em quais os conteúdos que devem abordados. A literatura científica dessa área é unânime em mostrar que o desenvolvimento dessas características, necessárias para o mundo do trabalho, só pode ser realizado quando os estudantes são o centro do processo de aprendizado. Assim sendo, deve haver uma migração, pois atualmente, na maioria das instituições, o centro do processo é o docente – quando deveria ser o estudante. Com essa mudança, os professores devem ser os “guias”, “mentores”, os “capitães dos barcos”, para que os alunos naveguem com segurança no mar dos conhecimentos e, ativamente, desenvolvam seus conhecimentos, habilidades, atitudes e meta-aprendizado.
CV – Que outras reflexões e análises precisariam ser feitas e com que urgência?
RM – Atualmente, diversos relatórios e documentos produzidos por organizações internacionais, como a OCDE, e também por órgãos do Estado brasileiro, como o Tribunal de Contas da União (TCU), mostram que vivemos um dilema ético na educação superior no Brasil. Esses estudos mostram que o sistema de avaliação e regulação no Brasil é falho, dificultando que a sociedade possa decidir quais são as boas e quais são as más instituições de ensino. Nas conclusões de um deles está escrito: “O sistema de garantia de qualidade […no Brasil] não é totalmente eficaz na prevenção de ofertas fraudulentas e não autorizadas”. Assim sendo, deve-se realizar urgentemente uma reformulação da legislação, permitindo que o sistema de avaliação deixe transparecer para a sociedade a real qualidade dos cursos superiores – porém, principalmente, um sistema de regulação rígido, que impeça que instituições de qualidade precária continuem ofertando cursos. Essa oferta fraudulenta leva ao que chamamos de “estelionato intelectual”, ou seja: o indivíduo e todo o seu ciclo familiar acreditam que estão envidando esforços para a formação em uma profissão, porém, ao entrarem no mercado de trabalho, percebem que foram enganados. Por fim, como sabemos das dificuldades e da morosidade dos sistemas de alteração das legislações – e principalmente nesse caso, em que há interesses econômicos vultuosos por trás dessa oferta fraudulenta –, o que deve ser feito é uma tratativa objetiva com os usuários do serviços veterinários, para que esses, juntamente com instituições sérias, busquem – como existe em todos os países que tratam a educação superior com a importância necessária – um sistema de avaliação amplo para os egressos dos cursos de medicina veterinária.
Referência
1-Mondadori, R. G. Reflexões sobre a educação e o mundo do trabalho no século XXI. Revista Brasileira de Reprodução Animal, v. 47, n.2, p. 124-128, 2023. Disponível em <http://www.cbra.org.br/portal/downloads/publicacoes/rbra/v47/n2/RB%201052%20Mondadori%20p.124-428.pdf>. Acesso em 22 de agosto de 2023.