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Direito médico-veterinário

O diálogo necessário da perícia e da assistência técnica veterinária com os operadores do direito

Matéria escrita por:

Esther Mercedes Espejo de Faria Alvim, Paulo César Maiorka

14 de set de 2023

A segurança do paciente e a dos profissionais envolvidos no seu atendimento é vital para o devido processamento legal em casos em que animais estão envolvidos. Créditos: 
Prilutskiy A segurança do paciente e a dos profissionais envolvidos no seu atendimento é vital para o devido processamento legal em casos em que animais estão envolvidos. Créditos: Prilutskiy

Introdução

O direito médico é uma área em crescente evolução e se encontra amparado por princípios e normas emanadas da legislação vigente, normas do Conselho Federal de Medicina (CFM) e das agências reguladoras, além da doutrina e de farta jurisprudência. Os operadores do direito que atuam nessa seara enfrentam desafios pela abrangência do assunto e a necessidade de especialização para complementar sua formação, muitas vezes insuficiente no ensino de graduação. Mais recentemente, o direito vem sendo demandado em questões médicas, mas, neste caso, envolvendo animais. De maneira análoga ao que acontece na medicina humana, a aplicação da legislação vigente, das normas do Conselho Federal de Veterinária (CFMV) e das agências reguladoras, bem como a doutrina e a jurisprudência, ainda necessitam de aprimoramento, haja vista uma crescente tendência de processos envolvendo suspeita de erro médico em medicina veterinária 1. Esse aumento do número de casos visto na esfera judicial também se observa em processos administrativos nos Conselhos Regionais e no Conselho Federal de Medicina Veterinária 2.

O Poder Judiciário vem sendo demandado de maneira crescente em situações que envolvem animais. Casos de maus-tratos e suspeita de erro médico são crescentes nos tribunais. Tais situações impõem ao operador do direito um desafio, pois nem sempre as situações já conhecidas na esfera do atendimento aos seres humanos se aplicam aos casos com animais. Outra situação é a diferença na evolução da ciência e da técnica em medicina veterinária, aliada aos altos custos de exames que seriam necessários para elucidar um caso concreto. Nesse mesmo diapasão, a falta de normativas e regulamentações para esses casos torna ainda mais complexo o seu atendimento e processamento pelo Poder Judiciário. Temos ainda que os principais exames são encontrados apenas em grandes centros e têm altos custos. Neste texto apresentamos um panorama dos exames e de sua aplicação em situações de perícia em casos com animais.

A medicina legal é uma área do conhecimento que dá suporte fundamental para a elucidação de fatos relacionados à saúde, à identificação de lesões e, inclusive, à determinação da causa da morte de um indivíduo em situações trazidas ao Judiciário 3. Essa especialidade é uma das mais antigas na medicina humana e recentemente vem tomando também enorme proporção na medicina veterinária 4,5, constituindo outra área em que os operadores do direito estão sendo chamados a atuar 1.

Em um processo que verse sobre questões de saúde ou nas situações relacionadas a crimes, faz-se necessária a produção de provas que auxiliem o magistrado na elucidação dos fatos e na formação de sua convicção. Dentre as diferentes modalidades de prova, a perícia médico-legal é análise fundamental cuja ausência no processo penal nem mesmo a confissão do agente pode suprir. O exame de corpo de delito é mandatório em lesões que deixam vestígios, e essas análises são divididas em duas modalidades: o exame direto e o indireto. O exame direto se caracteriza por estudos e conclusões feitas por um perito designado pelo Poder Judiciário para executá-lo em vestígios deixados diretamente no corpo do animal pelo agente causador 3.

Exames realizados em pacientes ainda vivos ou em cadáveres precisam ser realizados por profissionais habilitados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), e, se se tratar de animais, por médicos-veterinários habilitados pelo CFMV. O exame indireto, geralmente em situações de crimes, também deve ser conduzido por peritos. Com o desaparecimento de vestígios materiais, não sendo possível a análise direta, o perito terá outros objetos para elaborar o exame de corpo de delito, que pode ser realizado a partir do estudo de fichas clínicas, prontuários, receitas, fotografias, filmes e vídeos ou quaisquer outros objetos que possam revelar a identidade do agente causador das lesões ou da morte 3. 

Embora o direito médico e a medicina legal, na esfera do atendimento aos seres humanos, sejam bastante evoluídos, na medicina veterinária existe um cenário ainda em construção 4. Dessa maneira, há desafios constantes para os profissionais do direito que se deparam com essa realidade no seu cotidiano profissional. Na medicina humana há um número maior de pesquisas e profissionais, farta bibliografia, cursos especializados e programas de residência, além de instituições públicas e privadas dedicadas exclusivamente a esses temas. Na medicina veterinária inexiste a figura de Institutos Médico-Legais (IML), e as especialidades médicas ainda se encontram em estágios muito pouco evoluídos no país 4,5,6.

Os serviços de saúde animal são prestados em sua grande maioria de maneira privada, por inexistir a figura de um Sistema Único de Saúde (SUS) para animais. Ao mesmo tempo, há pouca presença de laboratórios de diagnóstico e exames específicos fora dos grandes centros urbanos. Outro ponto são os altos custos, que não são subsidiados pelo SUS ou por planos de saúde, e que muitas vezes impossibilitam um atendimento equiparado aos animais como os que existem para seres humanos. Dessa forma, as expectativas podem ser frustradas e gerar uma falsa sensação de negligência ou imperícia no atendimento aos animais 4,7,8.

Dentre os exames mais procurados e importantes para situações de direito médico e medicina legal em veterinária está o de corpo de delito, especialmente exames necroscópicos para constatação de possível erro médico ou de crimes de maus-tratos 8.

Os exames e análises podem ser a peça mais importante perante um processo jucicial ou administrativo. A seguir apresentamos alguns.

 

Perinecropsia

Consiste na análise do local onde se deu a morte ou do local onde o cadáver foi encontrado. A presença de vestígios coletados no local pode ser importante para elucidar a forma como o animal morreu. Em caso de crime, esse exame deve ser conduzido por peritos criminais oficiais.

 

Patologia clínica

Consiste em uma série de exames bioquímico-laboratoriais e de líquidos corpóreos que são realizados in vivo ou no cadáver, para buscar marcadores do estado de saúde do animal. Pode ser encontrada em instituições de ensino superior (IES) ou em laboratórios privados por todo o território nacional.

 

Patologia forense

Realiza necropsias documentadas que determinam a causa de morte e os principais achados e doenças do animal, sendo acessível em todo o território nacional, especialmente em instituições de ensino superior (IES) e em laboratórios privados.

 

Imagiologia

Utiliza técnicas como radiografia, tomografia computadorizada e ressonância magnética para avaliar o cadáver e constatar alterações morfológicas ou a presença de corpos estranhos que possam ter contribuído para a morte do animal. Com exceção da radiografia, as demais técnicas são mais acessíveis apenas nos grandes centros.

 

Tanatologia forense

Propicia uma avaliação do tempo decorrente desde a morte.

 

Traumatologia forense

Descreve as lesões e utiliza um padrão de descrição de lesões provocadas no animal, bem como as possíveis energias vulnerantes que foram aplicadas 3.

 

Entomologia forense

Avalia a fauna cadavérica com vistas a estimar o tempo decorrido desde a morte. Essas três últimas áreas são mais restritas na medicina veterinária, com poucos estudos e validação para animais, de maneira diferente do que acontece com a espécie humana, e geralmente são realizadas pela patologia forense animal 4.

 

Toxicologia forense

Avalia a presença de substâncias tóxicas no corpo do animal e sua possível relação com sua morte. No entanto, há poucos laboratórios, em sua maioria na Região Sudeste, que realizam tais exames para animais, sendo que têm alto custo.

 

Identificação de espécies

É importante quando são encontrados apenas restos mortais sem morfologia preservada. No entanto, diferentemente da espécie humana, que tem diversos marcadores que permitem identificar um indivíduo, na medicina veterinária essa determinação de indivíduo ainda não é possível ou é muito difícil. Em medicina veterinária vem sendo usada, mais corriqueiramente, apenas a análise de DNA mitocondrial para determinar a espécie animal e a diferenciação de material de origem humana, quando se faz necessária 3,4.

A tutela jurídica dos animais é um tema que vem se desenvolvendo e subsidiando a criação de uma nova área do direito, o direito animal. Recentemente, o conceito de dano animal também vem sendo absorvido 8, de forma que sua repercussão se torna evidente nas esferas administrativa, civil e penal 5. Portanto, ao se deparar com um caso que envolva animais, os operadores do direito devem ter em mente que há uma grande diferença de acesso aos exames e a instituições tais como os há para a espécie humana, o que dificulta a obtenção de provas fidedignas e elucidativas para casos concretos 4,5. A falta de normativas específicas para casos que envolvam animais torna mais difícil, mesmo com o uso de analogia do que já existe definido para casos humanos, a solução dos casos que envolvem animais 6.

A evolução dessa área é notória desde a criação da Associação Brasileira de Medicina Veterinária Legal (ABVML), em 15 de agosto de 2009, e o surgimento de cursos de especialização e aperfeiçoamento que vêm cobrindo uma lacuna na formação dos profissionais, haja vista a não obrigatoriedade do seu ensino na graduação com exceção de poucas instituições de ensino superior (IES) 11.

Neste ano de 2023, foi criada a primeira Comissão de Direito Médico-Veterinário na Ordem dos Advogados (OAB), Seccional do Estado do Rio de Janeiro 12. No mês de julho também deste ano, ocorreu o I Encontro Nacional de Perícia Médica Veterinária e Direito, realizado pela ABMVL e pela Comissão de Direito dos Animais da OAB, Seccional de São Paulo. A organização apresentou temas inovadores da perícia civil, com foco em erro médico, na importância da assistência técnica, na análise e visibilidade do processo judicial, nos métodos alternativos de resolução de conflitos e no relatório de necropsia como prova de ouro, ademais de mesa redonda com casos de sucesso e de falhas na quesitação – temas que já são corriqueiramente tratados na medicina humana e que fazem parte do debate atual na medicina veterinária legal. 

Quanto à doutrina, recentemente já vemos o surgimento de obras importantes dedicadas ao tema 13,14. E também os profissionais com formação em medicina veterinária e em direito vêm avançando no tema, produzindo pesquisas 1,2 e geração de obras de referência 15 para consolidação da doutrina e formação de fonte de referência para os operadores do direito, auxiliando os magistrados no entendimento dessa nova demanda social.

 

Considerações finais

Por fim, os operadores do direito devem contar com o auxílio de peritos e assistentes técnicos veterinários experientes – especialmente por ser um tema que não é tratado no ensino do direito. A importância de os profissionais médicos-veterinários estarem habilitados e atualizados para a realização de exames e documentos com finalidade pericial é enorme, pois tanto a segurança do paciente quanto a dos profissionais envolvidos no seu atendimento é vital para o devido processamento legal em casos em que animais estão envolvidos.

 

Referências

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14-CONCEIÇÃO, C. D. C. ; LOBATO, S. R. S. Medicina veterinária X processos judiciais (como evitá-los). Rio de Janeiro: Editora do Autor, 2018.

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