2025 será um ano de comemorações, mas os preparativos começam agora!

Menu

Clinica Veterinária

Início Opinião MVColetivo Estratégia educativa para a prevenção de ataques e mordeduras por cães em crianças de 5 a 9 anos
MVColetivo

Estratégia educativa para a prevenção de ataques e mordeduras por cães em crianças de 5 a 9 anos

Programa realizado a partir de um estudo em Pinhais, região metropolitana de Curitiba, PR

Estima-se que existem hoje no Brasil cerca de 52 milhões de cães, e sua interação com seres humanos, embora traga inúmeros benefícios para a saúde física e psicológica de ambas as espécies, pode ter algumas consequências negativas, como maus-tratos, abandono e zoonoses, além de agressões ao ser humano, em especial as mordeduras. Créditos: 249 Anurak Estima-se que existem hoje no Brasil cerca de 52 milhões de cães, e sua interação com seres humanos, embora traga inúmeros benefícios para a saúde física e psicológica de ambas as espécies, pode ter algumas consequências negativas, como maus-tratos, abandono e zoonoses, além de agressões ao ser humano, em especial as mordeduras. Créditos: 249 Anurak

Introdução

Observando a trajetória da evolução da espécie humana, é possível analisar a importância da presença dos animais na sociedade e como essa relação interespécie é influenciada por necessidades específicas da época vivida. Os seres humanos e os cães vêm se relacionando há pelo menos 20 mil anos 1, e tal relação começou com a percepção de que esses animais poderiam ser úteis, ajudando na caça e na proteção 2. Assim, o cão se espalhou gradualmente por todos os continentes, até chegar à situação de animal mais próximo dos seres humanos 3. Com a evolução da sociedade, a maneira de encarar os animais foi mudando, e eles paulatinamente deixaram de ser objetos de uso, de forma que hoje as relações entre esses animais e os seres humanos ocupam um novo espaço, marcado pela proximidade e pelo estabelecimento de vínculos afetivos 4. Em estatísticas realizadas no ano de 2013, a população mundial estimada de cães totalizava mais de 700 milhões 5. No Brasil, estima-se a existência de 52 milhões de cães 6.

A interação dos seres humanos com os cães traz inúmeros benefícios para a saúde física e psicológica de ambas as espécies. Apesar disso, essa relação cada vez mais próxima pode ter implicações diretas com consequências negativas, como os maus-tratos a animais, o abandono, as zoonoses e o aumento da incidência de agressões e mordeduras, especialmente no meio urbano 3,7. O comportamento dos seres humanos pode ser interpretado de maneira negativa e/ou incorreta pelos animais, gerando problemas como a agressividade 8. Alguns fatores que contribuem para a agressividade dos animais são a falta de cuidados, os maus-tratos e o livre acesso às ruas, além de estímulos como dor, dominância, alteração hormonal, medo, proteção a alimentos, pessoas, filhotes e território 9,10. O cão é mostrado como a mais frequente espécie agressora dos seres humanos. Nesse contexto, as mordeduras dos animais são preocupantes, não apenas devido à possibilidade de transmissão da raiva ou de outras doenças, mas às suas consequências, como infecções 8,11,12, traumas psicológicos e físicos, afastamento do trabalho (licença médica) e até a morte 13.

No período de 2011 a 2013, foram notificados mais de 3,3 milhões de atendimentos antirrábicos humanos no Brasil, sendo os cães responsáveis por 2,745 milhões de notificações 11. Estima-se que 4,5 milhões de mordidas de cães ocorram anualmente nos Estados Unidos, resultando em quase 900 mil pessoas que necessitam de cuidados médicos 14. As crianças são consideradas de alto risco para ataques de cães 8. No Brasil, no período de 2009 a 2013, a faixa etária entre 5 e 9 anos foi a mais acometida por mordidas de cães, com 391 mil atendimentos, que correspondem a 13,2% do total 11. São as vítimas mais comuns de mordidas de cães – 70% dos ataques fatais –, e mais de metade das mordidas que requerem atenção médica envolvem crianças, cujos comportamentos naturais, como correr, gritar, agarrar, bater, fazer movimentos rápidos e manter contato visual aumentam a probabilidade de lesões 15,16. A falta de compreensão do comportamento natural e da sinalização do cão por parte da criança pode provocar mordeduras 17.

O primeiro passo na educação infantil é determinar qual a população de crianças que corre o maior risco de ser alvo dos cães. O final do ano letivo parece ser o melhor momento para instituir uma campanha, devido ao fato de o ano escolar estar terminando, e, à medida que as crianças gastam mais tempo em ambientes externos, aumenta o risco de exposição aos acidentes 18. Dado o pouco tempo disponível para outras atividades nos currículos das escolas, pode-se solicitar aos conselhos escolares a disponibilização de períodos de cerca de uma hora, convidando profissionais como médicos-veterinários, médicos, enfermeiros e de outras áreas correlatas para a apresentação de palestras 19.

Num estudo com crianças de 5 a 15 anos que procuraram atendimento para mordidas de cães em unidades emergenciais acompanhadas de seus responsáveis, 43% delas não obtiveram sucesso no teste de conhecimentos acerca de prevenção de mordeduras. As crianças mais velhas tiveram resultados melhores do que as mais novas, assim como as crianças cujos pais eram brancos em relação às de pais não brancos. Mais de 70% das crianças nunca haviam recebido educação sobre prevenção de mordidas de cachorro, embora 88% dos pais desejassem isso 20.

Em outro estudo, realizado com crianças de 7 e 8 anos que haviam recebido educação para prevenção de mordeduras e foram expostas a teste de reação à presença de um cão desconhecido 16, a grande maioria das que faziam parte do grupo de controle (79%) se aproximou do cão sem hesitação, enquanto apenas uma pequena parcela das que haviam sofrido a intervenção (18%) se aproximou do cão. Os custos econômicos e sociais relacionados ao tratamento médico dos acidentes de mordedura por cães consomem recursos públicos que poderiam ser aplicados em programas de promoção e prevenção à saúde, que beneficiam um número maior de pessoas 10.

Apresenta-se aqui um programa educativo para a prevenção de mordeduras de cães em crianças com idade entre 5 e 9 anos a partir de um estudo realizado no município de Pinhais, localizado na região metropolitana de Curitiba, a 8km da capital do estado do Paraná.

Pinhais tem uma população estimada em 130.789 habitantes, e sua densidade demográfica é a mais alta do estado, com aproximados 1.923 mil habitantes por km², assumindo a posição de 59ª colocada no ranking nacional 21. Em uma análise retrospectiva dos atendimentos antirrábicos humanos no município de Pinhais, de 2009 até 2015, observa-se uma tendência de crescimento nos atendimentos. Comparativamente, em 2009 foram atendidas 243 pessoas que haviam sofrido agressões, e em 2015 houve 650 atendimentos antirrábicos humanos, mais do que o dobro do total de 2009 22. O bairro Alto Tarumã, onde o número de atendimentos antirrábicos humanos aumentou de 0 no ano de 2009 para 30 notificações no ano de 2015, foi escolhido para a experiência de enfrentamento 22. Foram postas em prática ações educativas em guarda responsável, bem-estar animal e prevenção de mordeduras na escola pública do bairro, a Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental Felipe Zeni (Emeief).

As ações educacionais foram realizadas com base nas “5 chaves para prevenir mordidas de cães’’ 23, que busca orientar e diminuir o número de acidentes com o público mais vulnerável: as crianças. Esse material educativo foi desenvolvido pela World Animal Protection (Proteção Animal Mundial – WAP), em associação com a Global Alliance for Rabies Control (Garc) e Organização Pan-
Americana da Saúde (Opas). Ele pode ser encontrado no endereço:
https://www.worldanimalprotection.org.br/not%C3%ADcia/5-chaves-para-prevenir-mordidas-de-caes ou por por meio do (QRCode) abaixo.

 

 

O kit de materiais é composto por seis itens, que não devem ser utilizados de maneira isolada: guia geral; guia para educadores; cartaz; banner; ilustrações; e vídeos animados.

O guia geral apresenta informações sobre o kit de materiais, orientações sobre seu uso e normas de reprodução. O guia do educador explica a importância de prevenir as mordidas e as razões pelas quais os cães atacam. O material oferece orientações educacionais sobre como prevenir mordidas e a raiva. Cada uma das cinco chaves é abordada em detalhes e traz sugestões de atividades que podem ser realizadas em sala de aula com as crianças para aprofundar o aprendizado. O banner e o cartaz contêm as mesmas informações que o guia do educador, mas de forma resumida e simples, incluindo as mensagens mais importantes que as crianças devem recordar. As ilustrações, num total de oito, são uma ampliação das usadas no banner, no cartaz e nos guias, e devem ser utilizadas em sala de aula para apoiar o aprendizado de cada uma das chaves. Os vídeos fazem parte do material audiovisual que apoia o aprendizado, exemplificando as cinco chaves de uma maneira atrativa e de fácil acesso.

As ações educativas foram realizadas durante o mês de dezembro de 2017, englobando 464 crianças do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, com idade entre 5 e 9 anos. Quinze turmas, com média de 30 alunos cada, receberam palestras de 15 minutos de duração sobre guarda responsável, bem-estar animal e prevenção de mordeduras, seguidas por dinâmicas em grupo com duração de 5 minutos para fixação dos conhecimentos teóricos.

Nas palestras, o banner era afixado na sala de aula e usado concomitantemente às ilustrações, durante a explanação de cada uma das cinco chaves. O método de trabalho em grupo para as crianças consistia na divisão da turma em cinco grupos, cada um dos quais recebia um pacote com as oito ilustrações em tamanho de papel de carta. O educador então simulava uma situação lúdica, presente em uma das ilustrações, após o que cada grupo deveria escolher a ilustração correspondente à situação simulada.

Em seguida, as crianças recebiam uma fotocópia em preto e branco de uma das ilustrações para colorir. Em duas ocasiões, durante o período das ações, foi usada a projeção multimídia dos vídeos animados. Todos os professores envolvidos nas atividades escolares receberam um guia geral, um guia do educador, um cartaz e um pacote de oito ilustrações para treinamento e posterior aplicação na grade de atividades escolares. Em cada sala de aula da escola foi afixado um cartaz que serve de fonte de consulta para as crianças mesmo após o término do projeto.

É essencial estabelecer abordagens educativas sobre a prevenção de agressões de acordo com os níveis de interação entre seres humanos e cães, visto que a agressividade é o resultado da interação inadequada. A fim de educar a população sobre os comportamentos humanos que desencadeiam a agressão por parte de um animal, salienta-se a importância do médico-veterinário como mediador da relação e distribuidor de conhecimento, responsável por orientar e educar a população em geral a respeito de temas essenciais como posse responsável e bem-estar animal, garantindo uma convivência saudável para ambas as espécies. Além da promoção de um trabalho educativo e de conscientização da população sobre os riscos e a gravidade desse tipo de acidente, é necessário implantar medidas de prevenção como registro e vacinação dos cães, controle dos cães errantes, esterilização em grande escala, notificação obrigatória de todos os casos de acidentes de mordedura e cuidados médicos corretos após a exposição, visando a prevenção do acidente antirrábico e o controle e a erradicação da raiva humana.

 

Referências

01-FARACO, C. B. ; SOARES, G. M. Fundamentos do comportamento canino e felino. 1. ed. São Paulo: MedVet, 2013. 242 p. ISBN: 978-8562451225.

02-ALONSO, B. P. M. Estudo dos casos de agressões por cães no município de Araraquara, estado de São Paulo, Brasil. 2005. 51 f. Monografia (Especialista em Saúde Pública) – Faculdade de Ciências Farmacêuticas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Araraquara, 2005.

03-WANG, G. D. ; ZHAI, W. ; YANG, H. C. ; WANG, L. ; ZHONG, L. ; LIU, Y. H. ; FAN, R. X. ; YIN, T. T. ; ZHU, C. L. ; POYARKOV, A. D. ; IRWIN, D. M. ; HYTÖNEN, M. K. ; LOHI, H. ; WU, C. I. ; SAVOLAINEN, P. ; ZHANG, Y. P. Out of southern East Asia: the natural history of domestic dogs across the world. Cell Research, v. 26, n. 1, p. 21-33, 2016.

04-DELARISSA, F. A. Animais de estimação e objetos transicionais: uma aproximação psicanalítica sobre a interação criança-animal. 2003. 407 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2003.

05-HUGHES, J. ; MacDONALD, D. W. A review of the interactions between free-roaming domestic dogs and wildlife. Biological Conservation, v. 157, p. 341-351, 2013. doi: 10.1016/j.biocon.2012.07.005.

06-ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE PRODUTOS PARA ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO. Mercado Pet Brasil 2021. ABINPET, 2021.

07-MUNDIM, A. P. M. Exposição à raiva humana no Município de Cuiabá-MT: epidemiologia e avaliação das medidas preventivas. 2005. 109 f. Dissertação (Pós-graduação em Saúde Coletiva) – Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2005.

08-SCHOENDORFER, L. M. P. Interação homem-animal de estimação na cidade de São Paulo: o manejo inadequado e as consequências em saúde pública. 2001. 82 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

09-FORTES, F. S. ; WOUK, A. F. P. F. ; BIONDO, A. W. ; BARROS, C. C. Acidentes por mordeduras de cães e gatos no município de Pinhais, Brasil de 2002 a 2005. Archives of Veterinary Science, v. 12, n. 2, p. 16-24, 2007. doi: 10.5380/avs.v12i2.9904.

10-OVERALL, K. L. ; LOVE, M. Dog bites to humans – demography, epidemiology, injury, and risk. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 218, n. 12, p. 1923-1934, 2001. doi: 10.2460/javma.2001.218.1923.

11-BRASIL. ; MINISTÉRIO DA SAÚDE. ; SECRETARIA DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Perfil dos atendimentos antirrábicos humanos, Brasil, 2009-2013. Boletim Epidemiológico, Volume 47, Nº 30. Brasília: Ministério da Saúde, 2016.

12-GILCHRIST, J. ; SACKS, J. J. ; WHITE, D. ; KRESNOW, M. J. Dog bites: still a problem? Injury Prevention, v. 14, n. 5, p. 296-301. doi: 10.1136/ip.2007.016220.

13-POLO, G. ; CALDERÓN, N. ; CLOTHIER, S. ; GARCIA, R. C. M. Understanding dog aggression: epidemiologic aspects: in memoriam, Rudy de Meester (1953-2012). Journal of Veterinary Behavior, v. 10, n. 6, p. 525-534, 2015. doi: 10.1016/j.jveb.2015.09.003.

14-WEISS, H. B. ; FRIEDMAN, D. I. ; COBEN, J. H. Incidence of dog bite injuries treated in emergency departments. Journal of the American Medical Association, v. 279, n. 1, p. 51-53, 1998.

15-KEUSTER, T. When man’s best friend attacks: how to progress on dog bites. The Veterinary Record, v. 178, n. 15, p. 365-366, 2016. doi: 10.1136/vr.i1942.

16-CHAPMAN, S. ; CORNWALL, J. ; RIGHETTI, J. ; SUNG, L. Preventing dog bites in children: randomised controlled trial of an educational intervention. British Medical Journal, v. 320, n. 7248, p. 1512-1513, 2000.

17-WRIGHT, J. C. Canine aggression toward people: bite scenarios and prevention. The Veterinary Clinics of North America: Small Animal Practice, v. 21, n. 2, p. 299-314, 1991. doi: 10.1016/s0195-5616(91)50034-6.

18-HARRIS, D. ; IMPERATO, P. J. ; OKEN, B. Dog bites – an unrecognized epidemic. Bulletin of the New York Academy of Medicine, v. 50, n. 9, p. 981-1000, 1974.

19-AMERICAN VETERINARY MEDICAL ASSOCIATION TASK FORCE ON CANINE AGGRESSION AND HUMAN-CANINE INTERACTIONS. A community approach to dog bite prevention. Journal of the American Veterinary Medical Association, v. 218, n. 11, p. 1732-1749, 2001. doi: 10.2460/javma.2001.218.1732.

20-DIXON, C. A., MAHABEE-GITTENS, E. M.  HART, K. W. ; LINDSELL, C. J. Dog bite prevention: an assessment of child knowledge. The Journal of Pediatrics, v. 160, n. 2, p. 337-341, 2012. doi: 10.1016/j.jpeds.2011.07.016.

21-PINHAIS. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pinhais – Panorama. IBGE, 2021. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/pinhais/panorama. Acesso em 18 de dezembro de 2021.

22-PREFEITURA DE PINHAIS. Perfil epidemiológico de Pinhais. Ano 1, nº 1, 2016. Pinhais: Departamento de Vigilância em Saúde, 2016.

23-WORLD ANIMAL PROTECTION. 5 chaves para prevenir mordidas de cães. WAP, 2015. Disponível em: <https://www.worldanimalprotection.org.br/not%C3%ADcia/5-chaves-para-prevenir-mordidas-de-caes>. Acesso em 18 de dezembro de 2021.