Introdução
O objetivo deste artigo é sintetizar a política No kill no Brasil e apresentar, entre outros, as Leis no. 13.426/2017 e no. 14.228/2021 como instrumentos jurídicos de direito animal que respaldam a política nacional de controle populacional e sanitário de cães e gatos, assegurando-lhes o direito fundamental à vida.
Desenvolvimento
Cães e gatos, pela condição recente de fazerem parte das famílias multiespécies 1, recebem privilegiada afetividade humana (geralmente recíproca) e são dotados de um reforçado estatuto de direitos fundamentais necessários a uma vida e existência dignas.
Entretanto, nem sempre foi assim.
No final do século XIX, Louis Pasteur, pesquisador francês que desenvolvia uma vacina contra a raiva canina, descobriu que a saliva de cães raivosos veiculava o vírus rábico. A partir dessa descoberta, os cães errantes que viviam nas ruas começaram a ser capturados e eliminados em todo o mundo 2.
Diferentes métodos de extermínio de cães – como afogamento, choque elétrico, câmara de descompressão e morte por asfixia, pauladas, envenenamento e armas de fogo – foram utilizados. Na cidade de Londres, no Reino Unido, por exemplo, era permitido o tiro ao alvo em cães errantes, e em Nova York, Estados Unidos, afogavam-se os animais nos rios. Foi nessa mesma época que surgiram as primeiras entidades de proteção animal, assim como os alojamentos para cães visando o controle da raiva em locais públicos, privados e do terceiro setor, como ONGs 2.
Cabe comentar que a raiva é uma doença zoonótica muito antiga e já era relatada nos Códigos de Eshnunna (1.900 a.C), da Babilônia, que definiam as penalidades para os donos de um cão raivoso cuja mordida resultasse na morte de alguma pessoa 3.
Nos Estados Unidos, a partir da década de 1930, iniciou-se um movimento em defesa do fim da eutanásia para os animais adotáveis. Esse movimento recebeu o nome de No kill 2.
Essa mudança de paradigma teve por base as novas ideias de proteção dos animais resultantes do posicionamento de grandes homens – como o do líder pacifista indiano Mahatma Gandhi – e das lutas das entidades protetoras dos animais ao redor do mundo, bem como dos estudos de especialistas vinculados ou não a instituições científicas e universidades. Todos eles passaram a defender uma nova postura ética do ser humano em relação aos animais 4.
Considerando que os animais apresentam o valor que escolhemos dar a eles 5, no Brasil a captura e a eliminação de cães pelos órgãos públicos responsáveis pela prevenção e controle de zoonoses visava unicamente a saúde humana. Ressalta-se que inicialmente a captura tinha como objetivo controlar a raiva, mas depois passou a ser uma medida de controle de superpopulação dos animais 2.
Próximo à década de 1990, a tendência mundial se alterou, e a fase de captura e extermínio deu lugar a um período de prevenção ao abandono, mais eficiente e humanitária 4. Destaca-se que a fase de captura e extermínio foi a primeira abordagem da Organização Mundial de Saúde (OMS) em 1973 recomendada no 6º Relatório do Comitê de Especialistas em Raiva da OMS.
No 8º Relatório do Comitê de Especialistas em Raiva da OMS foram inseridas recomendações que expressavam uma nova visão dos especialistas. O relatório orientava a prevenção do abandono; para a consequente superpopulação, seria necessário que o poder público adotasse uma série de medidas preventivas.
Essas medidas poderiam ser reunidas em sete linhas de ação, a saber:
i) controle da população por meio da esterilização;
ii) promoção de uma alta cobertura vacinal;
iii) incentivo à educação ambiental voltada para a guarda responsável;
iv) elaboração e efetiva implementação de legislação específica;
v) controle do comércio de animais;
vi) identificação e registro dos animais; e
vii) recolhimento seletivo dos animais em situação de rua 6.
Essas orientações da OMS caracterizam um Programa de Manejo Populacional de Animais.
É imprescindível registrar que essa nova visão apresentada pelos especialistas que elaboraram o 8º Relatório do Comitê de Especialistas em Raiva da OMS teve por fundamento o documento intitulado Guidelines for Dogs Population Management, elaborado em 1990 pela então World Society for the Protection of Animals (WSPA), atual World Animal Protection (WAP) – em português, Proteção Animal Mundial (PAM) – e pela Divisão de Comunicação de Doenças da Saúde Pública Veterinária da OMS 6.
Apesar de não ser um instrumento jurídico, é relevante comentar que a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA), fundada em 1924 como Oficina Internacional de Epizootia (OIE), organizou em 2005 um grupo de trabalho para debater o manejo de cães em situação de rua – o que acabou gerando, posteriormente, um capítulo específico no Código Sanitário para Animais Terrestres 7. Esse registro é importante porque 182 países são membros e seguem as recomendações da OMSA.
Em 4 de julho de 2006 foi sancionada no estado do Rio de Janeiro a Lei no. 4.808, que normatiza a criação, a propriedade, a posse, a guarda, o uso, o transporte e a presença temporária ou permanente de cães e gatos no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, e, no seu Art. 22o, veda a eutanásia para fins de controle populacional 8.
Pode-se apontar a Lei no. 4.808/2006 do Rio de Janeiro como marco inaugural do movimento No kill no Brasil.
A Lei no. 12.916 do estado de São Paulo de 16 de abril de 2008 estabeleceu o controle reprodutivo de cães e gatos: Art. 2o. Veda a eliminação da vida de cães e de gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, exceção feita à eutanásia, permitida nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde de pessoas ou de outros animais 9, ficando proibida a eliminação de cães e gatos sadios.
Em 2008, o Rio Grande do Sul, por meio da Lei no. 10.740 10, também vedou o extermínio de cães e gatos para fins de controle populacional.
Em 2009 foi a vez de o Rio Grande do Sul proibir a eliminação de animais saudáveis a partir da Lei no. 13.193 11. Seguindo a sequência cronológica, em 2010, o estado de Pernambuco instituiu a Lei no. 14.139 12; em 2012, o Paraná criou a Lei no. 17.422 13; em 2016, Minas Gerais instituiu a Lei no. 21.970 14; em 2018, Alagoas promulgou a Lei no. 7.979 15 – todas elas proibindo a eliminação de animais saudáveis.
O estado da Paraíba, pela no. Lei 11.140 16, instituiu o Código de Direito e Bem-Estar Animal, também proibindo a eliminação de animais saudáveis.
É importante destacar que em 2002 o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) editou a Resolução no. 714 – atualizada pela Resolução no. 1.000/2012 17 –, que instituiu normas reguladoras da realização da eutanásia. Nessas normativas – que já demandam nova revisão –, não se admite a eutanásia de animais para fins de controle populacional e nem por conveniência – para resolver um problema do tutor/proprietário.
Apesar dos avanços representados pelas leis estaduais acima arroladas, foi somente com a aprovação da Lei Federal no. 13.426/2017 18 que se criou nacionalmente a política de controle de natalidade de cães e gatos.
A referida lei explicitou:
Art. 1o. O controle de natalidade de cães e gatos em todo o território nacional será regido de acordo com o estabelecido nesta Lei, mediante esterilização permanente por cirurgia ou por outro procedimento que garanta eficiência, segurança e bem-estar ao animal.
Entretanto, foi vetado o trecho que abordava a fonte de recursos financeiros, fato esse que dificulta extremamente a execução desse importante instrumento jurídico de Direito Animal.
Complementarmente, foi aprovada a Lei no. 14.228 19, que proíbe em todo o território nacional a eliminação de cães e gatos por órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais, salvo em situações específicas que permitam a eutanásia.
A redação da lei é a seguinte:
Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre a proibição da eliminação de cães e gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, salvo as disposições específicas que permitam a eutanásia.
Art. 2º. Fica vedada a eliminação da vida de cães e de gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, com exceção da eutanásia nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais.
§ 1º. A eutanásia será justificada por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no caput deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial.
§ 2º. Ressalvada a hipótese de doença infectocontagiosa incurável, que caracterize risco à saúde pública, o animal que se encontrar na situação prevista no caput deste artigo poderá ser disponibilizado para resgate por entidade de proteção dos animais.
Art. 3º. As entidades de proteção animal devem ter acesso irrestrito à documentação que comprove a legalidade da eutanásia nos casos referidos no Art. 2º desta Lei.
Art. 4º. O descumprimento desta Lei sujeita o infrator às penalidades previstas na Lei nº. 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 (Lei de Crimes Ambientais).
Art. 5º. Esta Lei entra em vigor após decorridos 120 (cento e vinte) dias de sua publicação oficial.
A partir dessa lei se consolida efetivamente a política No kill em todo o território brasileiro – ou seja, não é permitido mais fazer cessar a vida de cães e gatos passíveis de adoção ou de cuidados médicos que garantam a manutenção da vida com qualidade.
Discussão
Esta discussão tem que ser iniciada ressaltando-se que foi a pressão das ONGs de proteção e defesa animal que provocou a mudança de paradigma em relação à cessação da eliminação de cães para controle populacional 20.
Como visto, cães e gatos contam com um estatuto jurídico privilegiado para a proteção da vida e da dignidade individual. Recentemente, contam com a proteção especial do tipo penal qualificado, descrito no Art. 32, § 1º-A, da Lei no. 9.605/1998 21, introduzido pela “Lei Sansão”, no. 14.064/2020, que intensifica a punição para quem ofende a dignidade de cães e gatos, deles abusando, maltratando-os, ferindo-os ou mutilando-os.
A Lei no. 13.426/2017 é outro instrumento jurídico importante, pois o controle da natalidade de cães e gatos nas cidades não é a única, mas é ferramenta fundamental em um Programa de Manejo Populacional de Cães e Gatos 22, pois impede a ocorrência de crias indesejadas que podem acabar resultando em abandono e sofrimento animal.
A Lei no. 14.228 19, de 20 de outubro de 2021, ao vedar a eliminação da vida de cães e de gatos pelos órgãos de controle de zoonoses, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, com exceção da eutanásia nos casos de males, doenças graves ou enfermidades infectocontagiosas incuráveis que coloquem em risco a saúde humana e a de outros animais, reafirma que cães e gatos, mesmo os recolhidos a centros de controle de zoonoses (CCZs), canis públicos ou estabelecimentos oficiais congêneres, têm direito à vida, admitindo-se a eutanásia apenas em casos de doenças incuráveis e que possam arriscar a vida alheia, humana ou não, e a saúde pública.
Doenças que já têm tratamento médico-veterinário, como a leishmanione visceral em cães 23 e a esporotricose em gatos 24, não mais autorizam a morte desses animais, mesmo que contagiosas para os seres humanos ou para outros animais. De qualquer forma, garante-se que “a eutanásia será justificada por laudo do responsável técnico pelos órgãos e estabelecimentos referidos no caput deste artigo, precedido, quando for o caso, de exame laboratorial” (Art. 2º, § 1º).
Ante a normatividade do princípio da participação comunitária25 e as múltiplas funções das entidades da sociedade civil que realizam a proteção dos animais, a Lei no. 14.228/2021 possibilita que essas entidades resgatem os cães ou gatos abrigados nos CCZs, canis públicos e estabelecimentos oficiais congêneres, desde que não estejam acometidos de doenças infectocontagiosas incuráveis que possam representar riscos à saúde pública, para lhes dar destinação mais adequada e conforme o princípio da dignidade animal 26, inclusive pela inclusão em famílias multiespécies.
Dessa forma, as entidades de proteção animal passam a figurar como agentes de verificação desses estabelecimentos de abrigo de cães e gatos – incluídos os Centros de Controle de Zoonoses –, pois a elas deve ser franqueado acesso irrestrito à documentação, inclusive os respectivos prontuários médico-veterinários e os laudos e exames laboratoriais referidos no Art. 2º, § 1º da lei que comprovem a legalidade da eutanásia, conforme disciplina a própria Lei no. 14.228/2021.
No entanto, parece justificável exigir, até para racionalizar o fornecimento de documentos e prevenir possíveis abusos, que a entidade de proteção animal esteja legalmente constituída e preveja a proteção animal entre seus fins estatutários.
Note-se, a propósito, que não há previsão legal para que pessoas físicas ou protetores(as) independentes, que não se consubstanciem em entidades (pessoas jurídicas, com CNPJ), possam ter acesso irrestrito a prontuários e documentos sobre mortes de animais, conforme Art. 3º da mencionada lei, muito embora possam evocar os termos da Lei de Acesso a Informações para providência similar (Lei no. 12.527 de 2011) 27.
Ressalta-se, com ênfase, que o posicionamento mais produtivo – e por isso ideal – é o de parceria respeitosa entre os órgãos de controle animal e as ONGs, pois assim se oferta o melhor aos animais, que é o desejo de todos.
Entretanto, se houver evidência de eutanásia ilegal ou abusiva, as ONGs poderão exercer sua função jurídica, processando civil e administrativamente os responsáveis pela morte do animal e demandando ao Ministério Público a respectiva punição.
Com essas novas normas, opera-se um salutar controle externo desses estabelecimentos no que tange à morte de animais, prevenindo-se os abusos que podem caracterizar o crime qualificado contra a dignidade animal, previsto no Art. 32º, §§ 1º-A e 2º, da Lei no. 9.605/1998 (cf. determina o próprio Art. 4º da Lei no. 14.228/2021).
Como as entidades de proteção animal passam a ter o direito à documentação sobre a eutanásia de cães e gatos mantida nos estabelecimentos públicos referidos na lei, a eventual recusa em fornecê-la justifica a impetração de mandado de segurança, sem prejuízo da apuração de eventual infração administrativa cometida pelo responsável pelo CCZ ou pelo canil público, conforme previsto em lei.
Subsidiariamente, pode-se usar a aplicação das normas de acesso às informações, conforme previsões contidas: a) na Lei no. 12.527/2011 – inclusive no que se refere à responsabilização dos agentes públicos envolvidos que recusarem injustamente o fornecimento dos documentos ou prontuários (Art. 32o); e b) na Lei no. 13.460/17 – conhecida como Código de Proteção e Defesa dos Direitos do Usuário dos Serviços Públicos da Administração Pública.
Conclusão
O Brasil tem instrumentos normativos importantes que protegem cães e gatos, inclusive pela atribuição de direitos fundamentais. Esses animais, por terem o direito fundamental à vida – que não pode ser violado –, têm capacidade jurídica plena 28.
O Brasil adota a política No kill de não eliminação de cães e gatos, sobretudo a partir das Leis Federais no. 13.426/2017 e no. 14.228/2021.
Referências
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