
Maus-tratos psicológicos muitas vezes são negligenciados, mas são cientificamente mensuráveis, pois resultam em microlesões estruturais no cérebro, alterações hormonais e doenças recidivantes. Animais expostos a estresse severo podem sofrer de ansiedade extrema, estereotipias (como lamber, morder ou se automutilar) e disfunções fisiológicas.
A privação reprodutiva em cães, especialmente quando expostos a cio, sem possibilidade de acasalamento, tem sido um tema amplamente debatido. Sob a perspectiva da psiquiatria veterinária e da ecologia comportamental, essa situação deve ser analisada à luz das evidências científicas, da prática clínica e dos princípios que regem o bem-estar animal. A impossibilidade de atender a um comportamento reprodutivo natural pode gerar frustração, estresse e alterações comportamentais significativas, impactando a qualidade de vida do animal. Portanto, é essencial considerar abordagens que minimizem os efeitos dessa privação, respeitando tanto a saúde mental quanto os aspectos comportamentais e fisiológicos dos cães.
O comportamento reprodutivo é uma função biológica essencial nos mamíferos e “cara” do ponto de vista de distribuição de energia no organismo, regulada principalmente por hormônios como a testosterona e a progesterona. Do ponto de vista do bem-estar animal, ferem-se liberdades e domínios, afetando a qualidade de vida.
Impactos da privação reprodutiva nos cães machos
Nos cães machos, a libido é estimulada não apenas pela testosterona, mas também por estímulos sensoriais, especialmente os olfativos. Quando um macho é exposto a uma fêmea no cio sem a possibilidade de acasalamento, pode desenvolver sinais de frustração intensa, incluindo:
• Vocalizações excessivas (uivos, ganidos, latidos persistentes);
• Hiperatividade e agitação extrema;
• Tentativas de fuga e destruição de barreiras;
• Automutilação (lamber ou morder compulsivamente partes do corpo);
• Perda de apetite e comprometimento nutricional;
• Distúrbios do sono;
• Agressividade aumentada, especialmente contra outros machos.
Essa frustração pode gerar riscos físicos diretos ao animal, como fraturas e atropelamentos, além de impactar sua neurobiologia, levando ao estresse crônico e possíveis danos neurológicos. Estudos indicam que a exposição prolongada ao estresse pode desencadear alterações hormonais e neuroquímicas que comprometem o bem-estar geral do animal.
Impactos do estresse nas fêmeas
As fêmeas são particularmente vulneráveis ao estresse devido à complexidade do seu ciclo hormonal. Estudos demonstram que o estrogênio atua como um fator protetor contra doenças cardiovasculares, osteoporose e Alzheimer, além de funcionar como antioxidante.
No entanto, o estresse crônico pode reduzir significativamente seus níveis, aumentando os riscos para a saúde das fêmeas. O estresse prolongado ativa o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA), resultando na liberação excessiva de cortisol, o que interfere na secreção do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH). Isso pode prejudicar a ovulação, a gestação e a saúde óssea, impactando diretamente o bem-estar reprodutivo e metabólico das fêmeas.
Algumas pesquisas também apontam que o estresse crônico pode alterar a expressão de receptores hormonais, agravando distúrbios emocionais e comportamentais. Em fêmeas, os impactos podem ser ainda mais críticos, afetando a fertilidade, a estabilidade emocional e o metabolismo energético. Dessa forma, a criação de ambientes equilibrados e estratégias de manejo que minimizem o estresse são essenciais para garantir o bem-estar hormonal e reprodutivo das fêmeas ao longo da vida.
Privar o acasalamento constitui maus-tratos?
De acordo com a psiquiatria veterinária, qualquer condição que gere sofrimento intenso e persistente pode configurar maus-tratos. Impedir um animal de acasalar sem manejo adequado, deixando-o sob estresse intenso por dias ou semanas, pode se encaixar nessa definição. Contudo, é essencial analisar a duração e gravidade desse impacto.
Algumas abordagens eficazes incluem:
• Separar eficientemente machos e fêmeas em cio;
• Enriquecimento ambiental, com brinquedos interativos e desafios alimentares;
• Uso de feromônios sintéticos para promover relaxamento;
• Aromaterapia, com óleos essenciais calmantes, como lavanda e vetiver;
• Terapias comportamentais, incluindo reforço positivo e treinamento cognitivo;
• Uso de ansiolíticos, se necessário, sob orientação veterinária.
E a castração?
A castração tem sido amplamente adotada como uma medida preventiva e de controle populacional entre os animais domésticos.
Quando olhamos para a questão da saúde pública e do controle do abandono de animais, a castração em larga escala se torna uma medida indispensável.
A superpopulação de animais de rua é uma realidade que requer políticas públicas e ações eficazes e contínuas, e a castração massiva é, muitas vezes, a única alternativa viável. Nesse contexto, a castração deve ser incentivada e facilitada por políticas públicas, garantindo que famílias de baixa renda tenham acesso a esses serviços.
Em ambiente doméstico com machos e fêmeas, em locais de reabilitação animal e canis, a castração torna-se também uma medida necessária.
Contudo, a prática envolve nuances importantes, especialmente quando observada sob as lentes da psiquiatria animal e da clínica médica. É essencial distinguir os contextos em que a castração é necessária (e única opção) daqueles em que ela pode ser prejudicial ou desnecessária.
Sob a perspectiva clínica, a castração, enfatizando a pediátrica, deveria ser reavaliada. A prática interfere no processo natural de desenvolvimento dos animais, podendo resultar em uma série de problemas de saúde a longo prazo, como desequilíbrios hormonais, problemas articulares, e até questões comportamentais.
É fundamental que a decisão de castrar seja tomada com base em uma avaliação individualizada, considerando sempre o bem-estar do animal. O hormônio do crescimento precisa da ativação de outras substâncias, como as somatomedinas, para atuar nas células. O estrogênio e a testosterona influenciam o crescimento ósseo e muscular, sendo determinantes na puberdade. Esses fatores evidenciam como a relação entre ambiente, hormônios e reprodução é complexa e interligada, por isso que a castração pediátrica e precoce não seria indicada e preconiza que seja evitada.
Considerações finais
A discussão sobre a frustração sexual em cães e seu impacto no bem-estar animal é complexa e requer mais investigação científica. Impedir o acasalamento sem um manejo adequado pode causar sofrimento, mas permitir a reprodução indiscriminada também gera problemas graves. O ideal é encontrar um equilíbrio entre o controle populacional e o respeito às necessidades comportamentais dos animais. A legislação de maus-tratos não trata especificamente desse ponto, mas considera o sofrimento evitável como um critério.
Alguns estudiosos da ética animal podem argumentar que impedir o acasalamento sem controle dos impulsos hormonais pode ser considerado uma forma de sofrimento desnecessário. Em resumo, se o sofrimento do animal for intenso, contínuo e sem manejo adequado, pode-se argumentar que a situação configura maus-tratos. No entanto, como não há um consenso normativo específico sobre isso, a discussão é válida e merece mais aprofundamento.
Referências sugeridas
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