Considerações sobre o artigo 32 da Lei Ambiental e suas repercussões na perícia criminal
Nos termos da Constituição Federal vigente, o artigo 225 constitui oportunidade única em que a responsabilidade pela fruição de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tanto para a presente como para as futuras gerações, não se atribui somente à nação, tratando-se de uma responsabilidade compartilhada entre o poder público e a coletividade (Constituição Federal/1988).
Em relação aos animais, manifestou-se o legislador constituinte ao incluir no texto da Carta Magna, no art. 225, parágrafo 1º, inciso VII, a vedação de práticas que submetam os animais a crueldade.
A própria Constituição fez previsão obrigatória para que fosse elaborada uma lei que pudesse dar melhor proteção ao meio ambiente. Tendo em vista a complexidade do assunto, aproximadamente dez anos mais tarde , criou-se a ampla Lei Ambiental n. 9.605/98, que no seu preâmbulo diz: “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de conduta lesivas ao meio ambiente”.
O artigo 32 da Lei Ambiental disciplina um dos diversos crimes praticados contra a fauna, exemplificado na passagem “a prática de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, tendo como pena a detenção de três meses a um ano, além da multa”. Assim, pode-se dizer que tal artigo tanto tipifica o crime, bem como o qualifica 1.
A investigação do crime de maus-tratos a animais é um dos mais frequentes motivadores de solicitações de perícias em medicina veterinária legal. A relevância do tema tem estimulado o desenvolvimento de protocolos periciais e pesquisas acadêmicas, visando o aperfeiçoamento do exame de corpo de delito relacionado a animais.
Preliminarmente, é necessária uma análise do significado das palavras “crueldade”, “abuso”, “maus-tratos”, “ferir” e “mutilar”, uma vez que constituem termos-chaves para a compreensão dessa modalidade criminosa, cuja interpretação serve de base à perícia médico-veterinária e ao correto enquadramento legal.
O sentido do termo “crueldade” vem se expandindo de maneira marcante a partir do conceito preconizado na literatura jurídica. Historicamente, a crueldade era definida como a instigação da dor e do sofrimento de forma deliberada, intencional, sádica e diferente dos padrões comumente en contrados. Atualmente, deduz-se do Código Penal Brasileiro que a crueldade pode ser definida como qualquer ato que, por intenção ou negligência, esteja associado a fazer o mal, atormentar ou prejudicar 2,3,4.
Abuso significa uso incorreto, despropositado, indevido, demasiado. Assim, pode ser considerado abuso, por exemplo, o uso de animais para tração de cargas superiores à sua capacidade física, o excesso de esforço em práticas desportivas, a sua exposição ao público em condições que aviltam o comportamento natural da espécie e o abuso sexual. Deve-se ressaltar que o termo abuse, em inglês, parece ter uma conotação mais ampla, podendo incluir várias formas de crueldade, como ferir ou mutilar 4.
Do ponto de vista técnico, os maus-tratos podem ser definidos como as ações diretas ou indiretas caracterizadas por negligência, agressão ou qualquer outra forma de ameaça ao bem-estar de um indivíduo 4.
Depreende-se da legislação que o crime de maus-tratos se origina tanto de uma ação como de uma omissão (negligência). Um animal negligenciado é aquele privado de uma ou mais das necessidades básicas da vida: alimento, água, abrigo e tratamento veterinário 5.
Os maus-tratos podem ter caráter intencional ou não intencional. Os autores ainda sugerem categorizá-los instituindo um paralelo com os casos de maus-tratos contra crianças, classificando-os em maus-tratos de ordem física, sexual, psicológica e de negligência 5.
Ao realizarmos um estudo comparado dos crimes contra a fauna e dos crimes contra a pessoa, notamos que maus-tratos, de acordo com o Artigo 136 do Código Penal Brasileiro (CPB), são definidos como o crime de quem expõe a perigo a vida ou a saúde de quem se encontra sob sua autoridade, guarda ou vigilância. Os casos de maus-tratos contra animais diferem de outros crimes, tendo em vista que a evidência primária é um animal que, quando ainda vivo, necessita ser alojado, alimentado e cuidado, muitas vezes por longos períodos. Esse aspecto está diretamente relacionado às possíveis tomadas de decisões perante uma ocorrência de maus-tratos, considerando que a apreensão do animal implica responsabilidade pela sua adequada destinação e cuidados 6.
De acordo com o entendimento médico, mutilar significa decepar, extirpar, privar o corpo de algum membro; enquanto ferir pode ser definido como o ato de provocar lesão. Traçando-se um paralelo com o capítulo dos crimes contra a pessoa, no CPB tal conduta criminosa é abarcada pela redação do artigo 129, que tipifica o crime de lesão corporal, descrito na lei como “o ato de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” 2.
As lesões corporais são classificadas, para fins de gradação da punição, em leves, graves e gravíssimas. Não existe definição específica para a lesão corporal leve, entendendo-se, por exclusão, como aquela que não for definida como grave ou gravíssima 2. A lesão grave resulta em incapacidade para ocupações habituais por mais de trinta dias; perigo de vida; debilidade permanente de membro, sentido ou função; e, por último, aceleração de parto. A expressão “lesão corporal gravíssima” é de origem doutrinária, resultando em incapacidade permanente para o trabalho; enfermidade incurável; perda ou inutilização de membro, sentido ou função; deformidade permanente; e aborto 2.
Tal análise deixa clara a abrangência do artigo 32 da Lei n. 9.605/98, que em seu texto abrange vasta gama de condutas criminosas, como maus-tratos, lesão corporal e morte de animais, sendo que a sua adequada interpretação representa importantes consequências no universo jurídico.
Um ser humano envolvido em casos de agressão física pode fornecer um testemunho verbal. Os animais também podem fornecer um testemunho à justiça, mas apenas como vítimas silenciosas 7. A linguagem forense possibilita a sua comunicação, e a interpretação dessa linguagem é papel da medicina veterinária legal, por meio do exame de corpo de delito e da formação da prova material, em auxílio ao direito e à justiça.
Referências
01-BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividade lesivas ao meio ambiente, e de outras providências. 1998. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso em 26 de Agosto de 2017.
02-BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. 2008.
03-DINIZ, M. H. Dicionário jurídico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. ISBN: 978-8502071841.
04-MOLENTO, C. F. M. ; HAMMERSCHMIDT, J. Crueldade, maus tratos e compaixão. Revista CFMV, ano XXI, n. 66, p. 10-11, 2015.
05-MUNRO, R. ; MUNRO, H. M. C. Animal abuse and unlawful killing: forensic veterinary pathology. 1. ed. China: Saunders Elsevier, 2008. 124 p. ISBN: 978-0-7020-2878-6.
06-LOCKWOOD, R. Animal cruelty prosecution: opportunities for early response to crime and interpersonal violence. Alexandria: American Prosecutors Research Institute, 2006. 51 p.
07-TOSTES, R. A. ; REIS, S. T. J. ; CASTILHO, V. V. Tratado de medicina veterinária legal. 1. ed. Curitiba: Medvep, 2017.