Serviços veterinários voluntários e gratuitos
Conforme novo código de ética profissional do médico-veterinário

Fernando Gonsales, médico-veterinário e cartunista, criador do personagem Níquel Náusea – http://goo.gl/aI5aqg
Aprovado pela Resolução no 1.138 de 16 de dezembro de 2016 pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) e em vigor desde 09 de setembro de 2017, a quarta versão (1979, 1983, 2002 e 2016) do novo Código de Ética Profissional do Médico-Veterinário traz várias mudanças e novidades, incluindo o enfoque sucinto, laico e em saúde única do novo Juramento do Médico-Veterinário.
Juramento do médico-veterinário Juro que, no exercício da medicina veterinária, cumprirei os dispositivos legais e normativos, respeitando o código de ética profissional, buscando harmonia entre ciência e arte, aplicando meus conhecimentos para o desenvolvimento científico e tecnológico em benefício da saúde única e bem-estar dos animais, promovendo o desenvolvimento sustentável. Assim eu juro! |
Juramento do médico-veterinário, segundo resolução 1.138/2016 do código de ética do profissional médico-veterinário
Novo código de ética e a gratuidade
O código de ética do profissional médico-veterinário está agora sem o antigo Artigo 21, que vedava ao médico-veterinário a prestação de serviços gratuitos ou por preços abaixo dos usualmente praticados, exceto em casos de pesquisa, ensino ou utilidade pública. Segundo o próprio CFMV, o título de utilidade pública tem sofrido inúmeras mudanças de interpretação desde a última versão do código (Resolução no 722/2002), em particular porque a sociedade passou a respeitar mais os animais, conhecer a função do CFMV e entender melhor o papel do médico-veterinário neste contexto.
No entanto, em seu Capítulo IV – Do Comportamento – Artigo 8º, “É vedado ao médico-veterinário: XXIV – desviar para clínica particular cliente que tenha sido atendido em função assistencial ou em caráter gratuito; Artigo 15, É vedado ao médico veterinário divulgar os seus serviços como gratuitos ou com valores promocionais”. A ideia, segundo o CFMV, é que ao vedar a divulgação de serviços gratuitos, sejam reduzidas também as intenções de que a gratuidade do serviço tenha o intuito de promoção do profissional ou de colocar o atendimento sem custos em lugar de outros serviços com valor mais alto.
Princípio constitucional da igualdade
A mudança na interpretação da gratuidade no novo Código de Ética buscou harmonizá-lo com as novas demandas da sociedade brasileira, em particular pela problemática do grande número de animais abandonados e/ou vivendo em condições de risco. Essa situação está intimamente ligada às nossas profundas desigualdades socioeconômicas e culturais fazendo com que a população em risco busque, por falta de condições, o atendimento veterinário gratuito ou com preços reduzidos.
A situação de animais de companhia em vulnerabilidade tem sensibilizado várias categorias profissionais das diferentes áreas da saúde, com atitude prevista na Constituição Federal de 1988 como “princípio constitucional da igualdade”. Essa nova percepção tem desencadeado políticas públicas voltadas à redução das desigualdades históricas no legislativo e executivo municipais, estaduais e federal, garantindo-se a igualdade de oportunidades entre as pessoas e o direito estendido de saúde aos seus animais. Este tratamento desigual tem sido oferecido às populações em vulnerabilidade e seus animais de modo a reduzir ou sanar tais desigualdades.
Deste modo, muitos médicos veterinários têm sentido a necessidade de dedicar parte de seu trabalho ao serviço voluntário, gratuito e ou de valores acessíveis às camadas mais vulneráveis da população. O CFMV esclarece que isso não muda, ou seja, continua sendo permitido que o profissional faça uma atividade social considerando o aspecto social do cliente e o bem-estar do paciente. Ou seja, se a pessoa não tem poder aquisitivo para pagar uma consulta, nada impede que o profissional a faça gratuitamente.
Polêmica esclarecida
O voluntariado nos serviços veterinários foi tema de polêmica e indignação nas redes sociais no início de 2016, quando um médico-veterinário teria sido notificado por realizar consultas gratuitas aos sábados em São Carlos, SP, sem autorização do CRMV-SP. A postagem do ocorrido repercutiu na internet com mais de 7 milhões de visualizações, sendo divulgada amplamente como uma proibição às ações gratuitas por parte do Conselho Regional.
Os esclarecimentos institucionais vieram em seguida, apresentando os aspectos legais relacionados ao caso. À época, o atendimento gratuito eventual aos animais de pessoas carentes era permitido e poderia ser feito dentro da legalidade. No entanto, e ainda válido com o novo Código de Ética, “não são permitidas as prestações de serviços realizadas de forma gratuita com caráter de publicidade, autopromoção, de forma permanente e na busca de captação ilegal de clientela ou para fins eleitoreiros”.
Ainda, segundo o CRMV-SP e o CFMV, “os caminhos para o profissional que deseja prestar serviços beneficentes a animais de pessoas que não têm condições de pagar pelo atendimento passam pelo respeito às normativas existentes e que devem valer para todos, descaracterizando qualquer acusação de que os profissionais de edicina veterinária atuam de forma mercenária”. Continua o texto, “é dever dos Conselhos Regionais a fiscalização do exercício da medicina veterinária, o que é feito por profissionais qualificados, com o objetivo de orientar sobre as normas vigentes e averiguar irregularidades na atuação dos médicos-veterinários, protegendo, assim, a sociedade e os animais de um eventual exercício profissional inadequado. Desse modo, as ações de orientação e fiscalização realizadas pelos conselhos profissionais não podem ser vistas como perseguições”.
Tal normatização não é mero formalismo, mas sim uma garantia de que esses serviços sejam oferecidos com qualidade, dentro dos parâmetros éticos da profissão, com as técnicas e procedimentos empregados de forma adequada. Historicamente, a Medicina Veterinária sempre esteve a serviço da sociedade, promovendo a saúde única, preservando a saúde animal, a saúde humana, o meio ambiente e o bem-estar animal. Por fim, vale destacar que “o Sistema CFMV/CRMVs promove de forma sistemática atividades de orientação aos profissionais, com o intuito de fomentar o debate acerca da conduta ética, primando pela excelência dos serviços médico-veterinários oferecidos à sociedade”.
Em resumo, é fundamental que o profissional esteja atento a algumas questões, tais como a legislação e as normativas vigentes, as necessidades financeiras e administrativas de seu estabelecimento, a sua relação com os demais colegas, a qualidade dos serviços prestados e o possível acúmulo de animais em suas instalações. A seguir apresentamos sucintamente cada um destes itens, de modo a facilitar o serviço legal de gratuidade do médico-veterinário.
Regularidade nos órgãos competentes
As atividades com fins de ensino, pesquisa ou utilidade pública já eram naturalmente isentadas pelo antigo Código de Ética de seguirem tabelas de preços referenciais, e podem exercer seus serviços com gratuidade ou por preços menores que os usuais. Portanto, a população carente já vinha procurando as universidades e as prefeituras para esterilização de seus animais e tratamento mais acessíveis. Agora, caso do atendimento público seja insuficiente no município, o médico veterinário do setor privado pode, desde que faça comunicação prévia, trabalhar voluntariamente para sanar tal deficiência.
O profissional deve estar inscrito e o seu estabelecimento registrado no CRMV, além de possuir Anotação de Responsabilidade Técnica homologada. Além disso, deve possuir Alvará Municipal, de acordo com suas atividades. A fiscalização pelos órgãos competentes tem como objetivo assegurar padrões de qualidade estruturais e técnicos capazes de garantir o bem-estar e saúde dos pacientes, funcionários e da população.
O médico-veterinário deve fundamentalmente exercer a profissão com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade técnica, utilizando material e equipamentos adequados. O atendimento veterinário gratuito não deve ter sua qualidade prejudicada ou diminuída. Ou seja, a proposta não deve priorizar quantidade em vez de qualidade, e a gratuidade não isenta o profissional de seus deveres e de sua responsabilidade perante o consumidor, nem do compromisso com a vida, a saúde e o bem-estar do paciente.
Local para realização dos atendimentos
Os atendimentos clínicos devem ser realizados em consultórios, clinicas, hospitais veterinários, ou a domicilio, sendo vedado o atendimento clinico em veículos de transporte ou em estabelecimentos comerciais. Os procedimentos anestésicos, cirúrgicos e de internamento somente podem ser realizados em Clinicas ou Hospitais Veterinários. Ressaltamos que para todo e qualquer atendimento veterinário deve ser elaborado prontuário clinico. Para toda vacinação deve-se preencher carteira de vacinação. Lembramos que todos os medicamentos e material utilizados devem possuir registro nos órgãos competentes, estar dentro do prazo de validade e armazenados conforme as recomendações do fabricante.
Sistema de triagem e concorrência desleal
O Código de Ética do Médico-Veterinário prevê que os serviços médico-veterinários possam ser oferecidos gratuitamente ou por preços abaixo do usualmente praticados na região, considerando de forma comprovada o aspecto social do cliente e o bem-estar do paciente.
Anteriormente, segundo o Artigo 21 (que não existe mais), poderiam ser realizados serviços gratuitos excepcionalmente apenas em casos de ensino, pesquisa ou de utilidade pública. Atualmente, todo médico veterinário pode realizar estes serviços. No entanto, a ausência de procedimentos de triagem em relação à condição socioeconômica dos tutores pode ocasionar concorrência desleal aos médicos veterinários clínicos da região, contrariando diversos dispositivos do Código de Ética e tirando a oportunidade de tutores carentes terem seus animais legalmente atendidos pelo princípio constitucional da igualdade.
1 | Regularidade nos órgãos competentes: inscrito no CRMV de sua jurisdição, estabelecimento registrado, possuir anotação de responsabilidade técnica homologada e Alvará Municipal, de acordo com suas atividades. |
2 | Local para realização: atendimentos clínicos apenas em consultórios, clínicas e hospitais veterinários registrados ou a domicilio, sendo vedado em unidades móveis não registradas ou em estabelecimentos comerciais. |
3 | Sistema de triagem e concorrência desleal: os serviços médico-veterinários praticados gratuitamente ou por preços abaixo dos usualmente praticados na região podem ser realizados somente após triagem de baixa condição social. |
4 | Publicidade médico-veterinária: é vedada a divulgação em veículos de comunicação de massa e redes sociais de tabelas de honorários ou descontos, bem como divulgar seus serviços como gratuitos ou com valores promocionais |
Resumo dos procedimentos para legalidade da gratuidade dos serviços médico-veterinários
Os atendimentos considerados como tratamento desigual gratuito deveriam estar vinculados a um programa de conscientização e educação da população em guarda responsável e cessarem quando a desigualdade social fosse sanada. Os tutores dos animais deveriam, portanto, ser estimulados a ser tornarem formadores e multiplicadores de opinião sobre a adequada guarda responsável. Ao adquirir ou adotar um animal o tutor deve estar ciente de que é sua responsabilidade fornecer todos os cuidados necessários, inclusive assistência veterinária. Para tanto, deveria previamente possuir condições financeiras compatíveis com os custos permanentes e eventuais gerados pelo animal.
Utilidade pública
Anteriormente, os serviços gratuitos podiam ser praticados apenas por instituições de pesquisa, ensino ou de utilidade pública, geralmente vinculados a projetos desenvolvidos pelas prefeituras. Com a retirada do Artigo 21, todo médico veterinário pode realizar esses serviços de forma subsidiada ou gratuita. Ou seja, é permitido agora que todo estabelecimento médico veterinário com fins lucrativos ou profissional interessado preste serviços gratuitos ou por preços reduzidos aos animais de população carente, uma vez que seja previamente constatada a baixa condição socioeconômica.
Mesmo quando o serviço é realizado de forma sistemática, o estabelecimento continua obrigado a submeter projeto para análise do CRMV do seu estado. O projeto deve contemplar, no mínimo: dados do solicitante, descrição do projeto, justificativa (incluindo dados estatísticos e científicos), materiais e métodos, e metodologia de triagem.
O estabelecimento interessado em realizar esterilizações cirúrgicas com finalidade de manejo populacional de cães e gatos deve ainda seguir o disposto na Resolução CFMV n° 962/2010. De novo, uma maneira adequada e prática de prestar serviços voluntários ou colaborar com a sociedade local seria vincular-se a projetos já desenvolvidos pela Prefeitura Municipal.
Publicidade médico-veterinária
Já não era permitida a divulgação em veículos de comunicação de massa de tabelas de honorários ou descontos, mas a proibição foi agora estendida também às redes sociais no novo Código. Além disso, os atendimentos não podem ter caráter de publicidade, autopromoção, captação ilegal de clientela ou fins eleitoreiros.
Considerações finais
O avanço da sociedade brasileira no cuidado e respeito aos seus animais tem acontecido de modo contínuo e permanente, com ações e políticas públicas de proteção animal que se situam na vanguarda mundial. No entanto, esses avanços devem acontecer de forma ética, voltados apenas à melhoria da condição de vida de animais vinculados às populações em vulnerabilidade, sem objetivos mercenários ou meramente assistencialistas e eleitoreiros.
A educação em guarda responsável, embora sempre esquecida, deveria fazer parte de todo edital público de serviços subsidiados ou gratuitos. Esse montante deveria ser de pelo menos 10% (dez por cento) do total de recursos aplicados, investidos na educação formal (vinculado principalmente às escolas de ensino fundamental circunvizinhas) e ainda na conscientização dos tutores atendidos pelo serviço gratuito. A medicina veterinária do Coletivo é uma especialidade veterinária que trabalha exatamente nesta relação social da medicina veterinária com as populações vulneráveis e seus animais de trabalho e companhia.