Atuação e responsabilidade técnica do médico-veterinário em desastres em massa envolvendo animais
Os eventos de desastres em massa envolvendo animais têm se tornado cada dia mais frequentes, não apenas no Brasil, mas mundialmente. A linha crescente de episódios está vinculada às alterações climáticas correlacionadas à intensa intervenção antropogênica nos ambientes naturais e urbanos, sendo os países não desenvolvidos os mais afetados, inclusive por não haver neles políticas e infraestruturas direcionadas para prevenir, contingenciar e mitigar os desastres e suas consequências.
O papel do médico-veterinário nesse cenário
Não cabem dúvidas quanto à sua prerrogativa privativa e legal, devidamente regulamentada pela Lei Nº 5517/68 , que dispõe sobre o exercício da profissão de médico-veterinário e cria os Conselhos Federal e Regionais de Medicina Veterinária, ao que se relaciona aos atendimentos clínicos e cirúrgicos. Entretanto, também privativamente, são vinculadas ao médico-veterinário a direção técnica, entendida da mesma forma como responsabilidade/gestão técnica, em atividades envolvendo animais, além da perícia em animais no que se refere às questões administrativas e judiciais, cíveis e/ou criminais.
A responsabilidade técnica em desastres e seus aspectos normativos
A normatização da responsabilidade técnica se dá por meio da Resolução CFMV Nº 1562/23, que atualiza e consolida a regulamentação da responsabilidade técnica no âmbito do Sistema CFMV/CRMVs, a qual comanda, seja em caráter temporário ou permanente, que quaisquer atividades da medicina veterinária devem ter responsável técnico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado (CRMV) onde ocorram, por meio da Anotação de Responsabilidade Técnica. Não fogem ao caso os desastres que envolvem animais.
No Brasil, ante os recentes e graves eventos registrados nos últimos anos, vem se desenvolvendo a medicina veterinária de desastres e aperfeiçoando-se os estudos e técnicas para a atuação profissional nas fases dos desastres que envolvem animais, destacando-se o resgate técnico, o atendimento clínico cirúrgico especializado, o abrigo, a profilaxia de doenças contagiosas e parasitárias, o controle reprodutivo e o transporte, vinculando-se a essas atividades a presença de um responsável técnico.
Atento a isso, o médico-veterinário deve conhecer o que dispõem os normativos do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) que se aplicam às atividades executadas nas etapas dos desastres. No caso da fase de resposta, destacam-se a Resolução CFMV Nº 1511/23 , que institui diretrizes para a atuação de médicos-veterinários e zootecnistas em desastres em massa envolvendo animais domésticos e selvagens, a qual aborda a responsabilidade técnica do Posto Médico-Veterinário Avançado (PMVA), e a Resolução CFMV Nº 1275/19 , que conceitua e estabelece condições para o funcionamento de estabelecimentos médico-veterinários de atendimento a animais de estimação de pequeno porte e dá outras providências, aplicável aos estabelecimentos veterinários que atendem animais de companhia.
No caso dos abrigos, operantes nas fases de resposta e recuperação, deve o profissional aprofundar seus conhecimentos na área da medicina veterinária de abrigos, tendo como orientação técnica do CFMV as Diretrizes de Atuação para a Responsabilidade Técnica em Abrigos. O CFMV disponibiliza ainda diretrizes de atuação para responsabilidade técnica direcionadas a outras atividades, como estabelecimentos veterinários e laboratórios, podendo essas também ser úteis aos profissionais que atuam em desastres.
O profissional deve atentar não somente ao regulamentado pelo CFMV, mas ainda pelo normatizado por todos os demais órgãos que tenham interface com as atividades realizadas. Os desastres em massa envolvem diversas espécies além dos animais de companhia, como é o caso dos de produção e dos silvestres, aos quais se aplicam normas específicas do Ministério da Agricultura e Pecuária, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), além de outros possíveis órgãos federais, estaduais, distritais e municipais.
Uma visão ampliada da atuação profissional nos desastres
Quando se fala em gestão de desastres inicialmente são apontadas quatro fases que envolvem esses eventos: prevenção, preparação, resposta e reconstrução. Em que se destaque a atuação do médico-veterinário nas duas últimas, há que se considerar seu papel nas primeiras, ampliando assim a visão da importância da medicina veterinária em toda a cadeia.
Visando aprofundar essa reflexão, é oportuno destacar a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil – PNPDEC, instituída pela Lei Nº 12.608/12, que apesar de ser voltada principalmente à população humana, aborda a preservação dos bens, dos serviços e do meio ambiente nos cenários de desastres. A atual relação das pessoas com seus animais de companhia, constituindo a família multiespécie, chama a atenção dos órgãos que atuam na gestão dos desastres, pois em variadas situações o cidadão afetado se nega a sair das áreas de risco sem os seus animais. Esse problema também é vivenciado com os animais de produção, pois são eles que garantem a muitas famílias a subsistência e a fonte de renda.
Assim, os órgãos da Defesa Civil federais, estaduais, distritais e municipais estão preocupados em gerir a questão dos animais nos desastres e integrá-la aos planos de ações que se aplicam nas suas diversas fases. Conclui-se que é indissociável a atuação dos médicos-veterinários para o aprimoramento e a aplicação das políticas públicas voltadas à gestão de desastres no país.
A fase de preparação considera o mapeamento, a gestão e o monitoramento das áreas de risco, a implantação de medidas preventivas, a estruturação de ações para a redução de riscos e danos, o estabelecimento de providências para otimizar a resposta local, a formação, a estruturação e o treinamento de equipes de resgate técnico animal e diversas outras ações. Nesse sentido, verifica-se a necessidade da participação dos médicos-veterinários na composição das equipes multidisciplinares dos órgãos gestores de desastres, contribuindo com conhecimentos para a adequada atuação preventiva e a construção de protocolos voltados aos animais.
Tanto na fase de prevenção como na de preparação, os animais devem ser vinculados às áreas de risco, às populações e aos recursos a elas relacionados. Dessa forma, informações sobre os presentes em locais com potencial de desastres podem contribuir para a elaboração dos Planos de Contingência de Proteção e Defesa Civil Municipais, previstos na PNPDEC e, em alguns estados, para a alimentação de sistemas informatizados da Defesa Civil, nos quais é possível inserir dados das espécies e quantitativos de animais em ambientes vulneráveis, auxiliando as tomadas de decisão durante as fases de resposta e recuperação.
Visando mitigar os efeitos dos desastres sobre os animais e, também, estabelecer a preparação para atender aqueles vitimados, são importantes ações como: o mapeamento de estabelecimentos veterinários, de voluntários e de locais para abrigos e propriedades rurais; e a orientação e o treinamento da população para identificar, evacuar, transportar e abrigar seus animais em áreas seguras, entre outras, podendo essas atividades ser geridas por médicos-veterinários, principalmente pelos que atuam em órgãos públicos.
Na fase de resposta, a atuação dos médicos-veterinários ocorre de forma mais direta, pois nela a intervenção é focada no resgate técnico e atendimento dos animais vitimados.
Essencial destacar que as atividades dos profissionais e das equipes veterinárias devem estar vinculadas e sob o comando do Sistema de Comando Integrado (SCI), coordenado pelos órgãos públicos responsáveis pelo atendimento aos desastres, geralmente o Corpo de Bombeiros e ou a Defesa Civil.
São diversos os trabalhos geridos e/ou executados por médicos-veterinários nessa fase, por exemplo, o resgate técnico, os procedimentos clínicos e cirúrgicos para salvaguardar a vida até a transferência e o alojamento, a identificação, o registro e a garantia da elaboração de prontuários, a identificação animal e a estruturação de abrigos, o estabelecimento de protocolos para triagem, intervenções e transporte e tudo mais relacionado ao adequado atendimento dos animais vitimados e à preservação da segurança dos colaboradores, voluntários, responsáveis e, inclusive, do ambiente.
Há que se destacar outra questão primordial nessa fase; os desastres causados por ação antropogênica envolvem a identificação e a responsabilização de possíveis causadores. Cabe muitas vezes ao médico-veterinário participar na execução e garantir a segurança de ações que compõem as fases investigativas e judiciais de processos cíveis e/ou criminais envolvendo animais vitimados, como o levantamento de provas, a coleta de amostras e materiais dos animais e da cena da ocorrência, a preservação do local do fato, a manutenção da cadeia da custódia, a elaboração de laudos e pareceres e tudo mais que se relaciona à medicina veterinária legal.
Chegada a fase de recuperação e superado o momento da intervenção emergencial, o papel do médico-veterinário segue, considerando que muitos animais perderam seus habitats e responsáveis. Salienta-se que essa etapa geralmente torna-se a mais longa e complexa, pois sobrevém com demandas de médio e longo prazo, principalmente no que concerne ao abrigamento, à manutenção, às profilaxias contra doenças infectocontagiosas e parasitárias, ao controle reprodutivo e à devolução ou à recolocação dos animais vitimados.
Para tanto, o profissional deve estar preparado para atuar dentro dos conceitos técnicos da medicina veterinária do coletivo, especialmente os relacionados aos abrigos. A gestão técnica mitigará os efeitos deletérios causados pelos desastres aos animais vitimados, permitindo a adequada recuperação e preservação da sua saúde física e mental, dando-lhes mais chances para serem devolvidos aos responsáveis ou realocados.
Não se pode esquecer nessa etapa o quão importante é o olhar do profissional voltado aos aspectos das saúdes ambiental e pública, que envolvem a prevenção e o controle de zoonoses, o manejo populacional de animais não abrigados, a atenção às necessidades hídricas e alimentares dos animais silvestres e de produção, possibilitando-os de se manterem em seus habitats, mesmo que esses locais tenham sido afetados e haja a impossibilidade de removê-los, além de outros diversos pontos ligados à fase de recuperação.
Portanto, instiga-se os médicos-veterinários a observarem, por meio de uma visão sistêmica, a possibilidade de ampliar a aplicação dos conhecimentos da medicina veterinária na cadeia de gestão dos desastres.
Preservar, mitigar, atender, abrigar e recuperar animais atingidos, como, também, preservar as saúdes animal, humana e ambiental, tão fortemente impactadas pelos constantes e cada vez mais frequentes eventos de desastres, eventos esses que têm se tornado uma das grandes responsabilidades dos profissionais médicos-veterinários da atualidade.
Referências
1-Lei N. 5.517 de 23 de outubro de 1968. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5517.htm#:~:text=LEI%20No%205.517%2C%20DE%2023%20DE%20OUTUBRO%20DE%201968.&text=Disp%C3%B5e%20s%C3%B4bre%20o%20exerc%C3%ADcio%20da,e%20Regionais%20de%20Medicina%20Veterin%C3%A1ria.&text=Art%201%C2%BA%20O%20exerc%C3%ADcio%20da,%C3%A0s%20disposi%C3%A7%C3%B5es%20da%20presente%20lei.
2-CFMV. Resolução N. 1.562 de 16 de outubro de 2023. Disponível em: https://manual.cfmv.gov.br/arquivos/resolucao/1562.pdf.
3-CFMV. Resolução N. 1.511 de 28 de março de 2023. Disponível em: https://manual.cfmv.gov.br/arquivos/resolucao/1511.pdf
4-CFMV. Resolução N. 1.275 de 25 de junho de 2019. Disponível em: https://manual.cfmv.gov.br/arquivos/resolucao/1275.pdf
5-CFMV. Diretrizes de atuação da responsabilidade técnica em abrigos. 2023. Disponível em: https://www.cfmv.gov.br/wp-content/uploads/2023/10/Diretrizes-de-RT-de-Abrigos.pdf
6-CFMV. Diretrizes de atuação da responsabilidade técnica em estabelecimentos veterinários. 2023. Disponível em: https://www.cfmv.gov.br/wp-content/uploads/2023/10/Diretrizes-de-RT-de-Estabelecimentos-Veterinarios.pdf
7-Diretrizes de atuação da responsabilidade técnica em laboratórios clínicos e de diagnóstico veterinário. 2023. Disponível em: https://www.cfmv.gov.br/wp-content/uploads/2023/10/Diretrizes-de-RT-de-Laboratorios.pdf
8-Lei N. 12.608 de 10 de abril de 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12608.htm