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MVColetivo

Manejo populacional de gatos ferais por captura, esterilização e devolução (CED)

Vantagens e desvantagens no Brasil


Introdução 

A população mundial de gatos domésticos tem sido estimada em 272 milhões, sendo 58% dessa população provavelmente de rua e não domesticada, o que tende a agravar a situação de animais abandonados, a superlotação de abrigos, os maus-tratos, os acidentes de trânsito e a transmissão de zoonoses 1. O gato doméstico (Felis catus domesticus) pode ser classificado em quatro categorias, de acordo com o ambiente em que vive:

– gato domiciliado: animal abrigado com um responsável, mantendo vínculo e dependente dele;

– gato semidomiciliado: animal que vive entre um ambiente livre e um domiciliado; pode ou não ter um responsável, ou então ser tratado por uma comunidade local; aceita a aproximação e o contato humano;

– gato perdido ou abandonado: já teve responsável e residência, depende de cuidados humanos e permite a aproximação;

– gato feral: animal arisco (assilvestrado) que não tem dependência em relação a seres humanos, vive livre e se organiza de maneira solitária ou em colônias 2,3.

Os gatos domésticos, especialmente os semidomiciliados, são considerados dos mais importantes predadores de aves e algumas espécies de pequenos mamíferos do mundo, contribuindo para a extinção de diversas espécies 4 (Figura 1).

 

Figura 1 – Gato doméstico semidomiciliado na ilha de Superagui, área de proteção ambiental permanente do litoral do Paraná. Esses gatos são considerados dos mais importantes predadores de aves, pequenos mamíferos e répteis, contribuindo para sua extinção. Créditos: Alexander W. Biondo

 

É importante mencionar que os gatos apresentam tempo reduzido de socialização com sua própria espécie e com outras, quando comparados a outros animais domésticos. Enquanto os cães são socializados entre 4 e 6 meses de idade, os gatos têm oito semanas para interagir e reconhecer outros gatos e outras espécies. Desse modo, os gatos ferais que nasceram e foram criados sem a presença humana são agressivos mesmo com poucos meses de vida (Figura 2).

 

Figura 2 – Filhote capturado na Penitenciária Feminina do Paraná para manejo populacional, em ação de parceria com a UFPR. Gatos ferais que nasceram e foram criados sem a presença humana são agressivos, mesmo com poucos meses de vida. Créditos: Alexander W. Biondo

 

Impacto na saúde animal e na saúde pública

Os gatos são transmissores em potencial do vírus da raiva e de outros agentes com potencial zoonótico, como Toxoplasma gondii, Bartonella spp., Toxocara cati, Microsporum canis, Cryptosporidium spp., Campylobacter spp. e Giardia duodenalis (Figura 3). Vetores como a pulga também podem transmitir agentes patogênicos como Rickettsia felis, R. typhi, R. rickettsii e Coxiella burnettii 5. As doenças infectocontagiosas como a imunodeficiência felina (FIV) e a leucemia felina (Felv) têm alta virulência entre os gatos, e sua transmissão se dá por meio de brigas ou durante a procriação. Doenças do complexo respiratório felino também ocorrem com frequência em colônias de gatos ferais 6,7. O manejo de gatos ferais e semidomiciliados interfere na saúde dos animais do local, uma vez que esses patógenos são fonte de infecção para outros gatos, como os domiciliados, além do impacto nos seres humanos 7.

 

Figura 3 – Penitenciária Feminina do Paraná. A) Gato feral no solário da instituição, um potencial transmissor da larva migrans visceral/ocular/neurotoxocaríase, particularmente em ambientes com alta exposição de pessoas às fezes de gatos não desverminados. B) Coleta de amostras de fezes e de solo com ovos de Toxocara cati. Créditos: Alexander W. Biondo

 

A suscetibilidade e o risco de transmissão por doenças infectocontagiosas são maiores em gatos machos adultos, não castrados e que têm livre acesso à rua. Devido ao comportamento territorialista, costumam brigar mais com outros gatos por recursos do que os castrados, além de realizar mais cópulas 8,9. O crescimento de uma colônia está relacionado às características do ciclo reprodutivo da fêmea (poliéstrico sazonal); as gatas não castradas podem ter de duas até três gestações em um ano, e cada gestação pode gerar de um a seis filhotes. Com isso, as colônias se multiplicam rapidamente, de dezenas a centenas de indivíduos 10. Os filhotes de ninhadas de fêmeas semidomiciliadas ou abandonadas crescem geralmente sem muito contato com os seres humanos, e quase todos os animais se tornam ariscos. A falta de socialização nas primeiras fases de vida desses animais tem como consequência que a sua doação em abrigos é dificultada 5.

 

Protocolo CED no Brasil

Uma das estratégias utilizadas para o controle populacional de gatos ariscos e ferais é o protocolo de captura, esterilização e devolução (CED) – em inglês, trap, neuter and return (TNR) –, que teve início na Inglaterra na década de 1960 e que vem sendo utilizado com sucesso no Brasil há vários anos. Anteriormente, os métodos utilizados incluíam a captura dos gatos e a soltura em outras áreas, a eutanásia e o encaminhamento para abrigos, que se mostraram ineficazes para o controle populacional desses animais, além de proporcionarem um fenômeno biológico descrito como “efeito vácuo”. O efeito vácuo é determinado quando uma população de animais se estabelece em um território que dispõe de água, alimento e abrigo, e, ao retirar essa população do local (sem retirar os recursos disponíveis para a manutenção de indivíduos), outros animais em situação de nomadismo se alojam no local, formando uma nova colônia. Ou seja, qualquer redução populacional abaixo da capacidade de carga ambiental leva a nichos abertos que são eventualmente preenchidos por outros gatos migrantes 13.

Um dos problemas enfrentados no processo de adoção desses animais capturados é seu manejo, pois esses animais sofrem muito com o estresse do processo, desde a captura até sua estadia no local para adoção, e seu consequente comportamento geralmente torna essa adoção difícil 5,14.

Para evitar a captura e a sedação desnecessárias dos animais, realiza-se um corte reto na ponta da orelha durante o procedimento cirúrgico de esterilização, com o animal anestesiado – sendo de convenção nos protocolos de CED o corte na orelha direita em machos e na orelha esquerda em fêmeas; essa marcação não contraria a resolução no. 877/2008 do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) que trata das cirurgias mutilantes e/ou estéticas, por se tratar de um método de marcação destinado a facilitar a visualização e o controle das colônias de gatos ferais castrados monitorados 3. O controle populacional – principalmente por meio de métodos cirúrgicos –, a educação da comunidade a respeito da guarda responsável e do combate ao abandono e a construção de políticas públicas vêm se mostrando em outros países alternativas eficazes para a redução da eutanásia. Sem educação em guarda responsável, o manejo de cães e gatos não é eficaz 10,14.

 

Protocolo CED

Para ser implantado e bem-sucedido, o protocolo CED necessita de alguns passos obrigatórios. São eles:

– iniciar o projeto com a observação das colônias e o mapeamento territorial;

– contagem de indivíduos com fotos ou outras formas de identificação;

– mapeamento dos locais de alimentação e descanso desses animais;

– planejamento de captura e do local de colocação das armadilhas para obter o melhor efeito;

– captura e transporte dos animais;

– encaminhamento para a castração;

– devolução ao local de origem da colônia; e

– monitoramento e manutenção da colônia pós-castração.

Cada etapa da implementação do protocolo gera novos desafios e barreiras a superar, pois para esses animais, que têm hábitos crepusculares, a visualização e a identificação dos indivíduos é prejudicada, demandando (dependendo do tamanho da colônia) dias e até meses para essa etapa ser concluída. É de extrema importância iniciar a captura e a esterilização dos indivíduos assim que possível, diminuindo significativamente o número de filhotes. Pelo comportamento de defesa de território natural desses animais, eles impedem que outros indivíduos ainda não castrados penetrem no espaço da colônia.

As capturas demandam pessoal treinado, pois os gatos ferais apresentam um nível de estresse maior se comparado ao dos gatos domesticados, além da montagem e da vistoria frequente das armadilhas (Figura 4).

 

Figura 4 – Gato feral capturado por armadilha para exame sanitário periódico na Penitenciária Feminina do Paraná, em parceria com a UFPR, para manejo populacional. A) A captura evidenciou a importância do corte de ponta de orelha, mostrando que o gato já estava castrado (corte na ponta da orelha esquerda). B) Os gatos são pesados com o auxílio de puçás. C) Utilizam-se microchips para controle sanitário individual. Créditos: Alexander W. Biondo

 

Para maior sucesso na captura desses animais, o ideal é acostumá-los à armadilha, seguindo alguns passos. Inicialmente, deve-se colocar a armadilha aberta, porém não armada, no ponto de escolha. Posteriormente, deve-se iniciar a retirada das fontes de alimentos externos e fornecer alimento apenas dentro da armadilha, para que os animais percam o medo dela. Depois de um período no qual os animais se acostumaram a se alimentar dentro da armadilha, pode-se armá-la para que a porta se feche assim que eles penetrarem nela (Figura 5). É fundamental haver recursos suficientes para a operação ao longo de muitos anos, fazendo o acompanhamento das colônias, uma vez que as populações de gatos têm altas taxas de crescimento intrínseco 13.

 

Figura 5 – Penitenciária Feminina do Paraná. A) Armadilha com isca de alimento para captura de gatos ferais para manejo populacional em parceria com a UFPR. B) Inicialmente, as armadilhas são colocadas desarmadas, de modo a acostumar os gatos com a alimentação dentro das gaiolas. Créditos: Alexander W. Biondo

 

Procedimento cirúrgico

No procedimento cirúrgico das fêmeas, fazem-se necessários os cuidados especiais de uma ovariossalpingo-histerectomia tradicional, que demanda profissional experiente e habilitado nessas técnicas, sendo recomendada uma cirurgia pouco invasiva utilizando gancho cirúrgico para facilitar a exposição dos órgãos reprodutores das fêmeas. A utilização do gancho cirúrgico diminui a linha de incisão necessária para a realização da técnica e, junto com uma boa assepsia, minimiza os riscos de infecções secundárias, pois evita a exposição demasiada da cavidade abdominal do animal. Devido à dificuldade de captura desses animais, para o padrão de sutura dos planos cirúrgicos e o protocolo de antibioticoterapia pós-procedimento cirúrgico recomenda-se utilizar padrão de sutura intradérmica com fio sintético absorvível e antibiótico combinado com analgésico de longa duração.

Outra técnica que pode ser utilizada é a de castração pelo flanco, indicada para animais lactantes, que permite o aleitamento dos filhotes. Essa técnica também deve ser efetuada de forma minimamente invasiva; apresenta a vantagem de não ter o peso dos órgãos abdominais pressionando a linha de incisão, evitando a deiscência dos pontos, e de facilitar a identificação e o acompanhamento da cicatrização da ferida e das fêmeas castradas, pois geralmente na área da incisão nasce um pelame de cor diferente.

Outros procedimentos que podem ser empregados no protocolo de CED são a castração pediátrica e a vacinação dos animais, principalmente contra o vírus da raiva.

 

Legislação

O Protocolo de CED ainda não está inserido na legislação federal, porém a legislação de algumas cidades do Brasil regulariza essas ações, como é o caso dos municípios de Lorena, SP, Campo Grande, MS, Rio de Janeiro, RJ e Araraquara, SP, cuja legislação prevê uma forma de marcação e identificação dos animais; em dois desses municípios, esse protocolo pode ser utilizado para animais cujos tutores se encontrem em situação de rua (Figura 6).

 

Cidade Legislação Detalhes
Lorena, SP Lei ordinária n°3.715, de 8 de dezembro de 2015 Art 6, III – Controlar a presença de animais soltos em vias públicas e demais logradouros, mediante captura, esterilização cirúrgica e devolução ao local de origem (método CED); Art. 34 – Os animais recolhidos em vias e logradouros públicos deverão ser registrados e identificados, vacinados, esterilizados e, após sua recuperação, devolvidos ao local de origem, conforme o método CED (captura, esterilização, e devolução).
Campo Grande, MS Decreto nº 15.147, de 15 de março de 2022 Art 6, III – Controlar a presença de animais soltos em vias públicas e demais logradouros, mediante captura, esterilização cirúrgica e devolução ao local de origem (método CED); Art. 34 – Os animais recolhidos em vias e logradouros públicos deverão ser registrados e identificados, vacinados, esterilizados e, após sua recuperação, devolvidos ao local de origem, conforme o método CED (captura, esterilização, e devolução). Art. 4. VII – CED (captura, esterilização e devolução): método não letal de controle populacional de caninos e felinos em situação de vida livre. Art. 28 – O método de captura, esterilização e devolução (CED) implica captura, esterilização reprodutiva por cirurgia veterinária minimamente invasiva, medicação analgésica e antibiótica que se fizer necessária e vacinação obrigatória contra raiva, com imediata devolução dos animais ao mesmo ambiente de captura. Art. 32 – Os animais sem possibilidade de socialização serão devolvidos ao mesmo local de sua captura assim que se recuperarem do procedimento anestésico e estiverem em boas condições clínicas. Art. 33 – No caso dos felinos, consideradas as suas características particulares, poderá ser feita a identificação da esterilização com marcação reta na orelha esquerda, uma vez que, se realizada por médico-veterinário, com o animal ainda anestesiado, em ambiente cirúrgico apropriado e seguindo os protocolos científicos corretos, é um procedimento técnico viável, não configurando maus-tratos nem ato de crueldade, conforme regulamentos expedidos pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV).
Rio de Janeiro, RJ Lei n° 6.943, de 4 de junho de 2021 Altera dispositivos da Lei n° 6.435, de 2018, e institui o protocolo CED. Art. 26-A – Fica instituído o protocolo CED (captura, esterilização e devolução) para o controle populacional de animais sem tutor conhecido (ASTC) no Município do Rio de Janeiro. § 1º – O protocolo poderá ser realizado pelos órgãos públicos municipais, por instituições não governamentais e ainda por protetores independentes. § 2º – Para aplicação do protocolo CED, entendem-se como animais sem tutor reconhecido (ASTC): I – cães; e II – gatos. § 3º – Estende-se a utilização do protocolo CED aos animais cujo tutor se encontre em situação de rua.
Araraquara, SP Lei complementar n° 952, de 6 de outubro de 2021 Altera a Lei Complementar n° 827, de 10 de julho de 2012. Art. 36-A. – Fica a Coordenadoria Executiva de Bem-Estar Animal autorizada a adotar o protocolo de captura, esterilização e devolução (protocolo CED), tendo por objetivo o controle populacional de cães e gatos sem tutores conhecidos no município de Araraquara. § 1° – O protocolo CED poderá ser: I – implementado também por instituições não governamentais e ainda por protetores independentes; e II – executado sobre espécimes de cães e gatos cujos tutores sejam pessoas em situação de rua. § 2° – Para fins da execução do protocolo CED, a captura dos animais deverá ser realizada sem sofrimento e de forma a gerar o mínimo de estresse possível no animal. § 3° – Todo animal submetido ao protocolo CED deverá ser identificado mediante marca no interior da orelha, nas cores azul ou verde, devendo a identificação ser feita de forma minimamente invasiva, durante a cirurgia de esterilização ou com o animal anestesiado. § 4° – O pós-cirúrgico do animal submetido ao protocolo CED ficará a cargo da entidade que o iniciou e o executou, sendo os animais devolvidos ao seu local de origem após a plena recuperação.
Figura 6 – Legislações brasileiras disponíveis sobre a técnica de captura, esterilização e devolução (CED)

 

Gatos ferais versus fauna nativa

Vale ressaltar o impacto que os gatos geram na fauna local, ocupando o topo da cadeia alimentar (Figura 7). Devido a sua eficiência predatória, os gatos desequilibram o ecossistema de anfíbios, répteis, pequenos mamíferos e aves, competindo também por alimento com certas aves 21. As características biológicas e comportamentais dos gatos domésticos, como alta fecundidade, comportamento predatório generalista e habilidade de ficar longos períodos sem acesso a água potável, permitem grande adaptabilidade às áreas naturais, favorecendo a exploração e a ocupação dos ambientes. A ação dos felinos é apontada como um dos principais motivos da extinção de algumas espécies, principalmente em ilhas, sendo o gato considerado uma das principais causas de declínio de outras espécies em diferentes áreas do mundo 23,24.

 

Figura 7 – Ilustração de impacto da mudança da cadeia alimentar, particularmente nos centros urbanos brasileiros. Quando há redução de predadores naturais, a população da base da cadeia alimentar aumenta, como no caso das capivaras. No entanto, a proliferação de cães e gatos em parques ou áreas de proteção ambiental pode causar a extinção da fauna nativa. Créditos: Alexander W. Biondo

 

A introdução de uma espécie exótica invasora em ambientes silvestres leva a impactos que ameaçam diversas espécies nativas, por meio da predação, da competição com espécies nativas e da veiculação de doenças domésticas para a vida silvestre, o que representa mais um grande risco para essa fauna. Estratégias conjuntas como a esterilização dos felinos para frear o crescimento desordenado da população e a guarda responsável devem ser incentivadas para minimizar os impactos causados pela presença desses animais em áreas silvestres 25.

 

Esporotricose

Entre as doenças importantes para a saúde pública e a saúde animal, a esporotricose é uma zoonose de grande relevância quando mencionamos gatos ferais e aqueles que têm acesso à vida livre. É causada pelo fungo Sporothrix schenkii por inoculação profunda, e normalmente a transmissão é associada a mordidas e arranhões de um gato infectado em outro indivíduo, que pode ser outro gato, um cão ou um ser humano 26. Segundo a literatura, os mais acometidos são os gatos machos e não castrados, sendo que as fêmeas castradas têm menor porcentual de acometimento 27.

A doença é caracterizada por lesões epiteliais ulcerativas com secreção seropurulenta, apresentando-se nas regiões mais acometidas nos ataques entre gatos, geralmente na face, no dorso e nos membros 28 (Figura 8).  Nos gatos, além das lesões, a doença também se caracteriza por sinais sistêmicos, evoluindo a óbito se não for tratada 26. Em pessoas, a infecção pode acontecer tanto pelos ataques quanto pelo contato de pele lesionada com as feridas do animal.

 

Figura 8 – Gato feral com lesões características de esporotricose, capturado na Penitenciária Feminina do Paraná em 2022. Créditos: Alexander W. Biondo

 

A esporotricose é uma doença que tem cura se o tratamento com medicamentos antimicóticos, geralmente de longa duração, for realizado corretamente. Caso ele seja interrompido antes do recomendado pelo médico-veterinário responsável, há grande possibilidade de recidiva das lesões 29. Por conta da necessidade de um tratamento contínuo por longos períodos e da aproximação física com o paciente felino, há a exigência de que o animal seja dócil. Nos casos de gatos ferais com diagnóstico positivo para a esporotricose, a recomendação atual é a de realização de eutanásia, haja vista a impossibilidade de tratar o paciente adequadamente, obedecendo aos devidos protocolos de segurança. O corpo de um animal infectado que falece deve ser descartado corretamente, por meio de cremação, e nunca enterrado ou jogado no lixo 28,30. Além disso, mesmo um animal já tratado precisa ser mantido restrito em ambiente domiciliar, por conta da possibilidade de reinfecção 29.

 

CED no mundo

O CED (TNR) é controverso em todo o mundo. Um estudo recente de cinco anos em Oklahoma, EUA, mostrou a ineficácia no manejo populacional de gatos ferais 31. Dentre as organizações que apoiam o TNR como método eficaz e humanitário estão a American Society for the Prevention of Cruelty to Animals (ASPCA), a Humane Society of the United States (HSUS) e a American Humane (AH). Dentre as que se opõem, principalmente pelo impacto negativo na vida selvagem, na conservação ecológica natural e na preservação do meio ambiente, estão a WSU Wildlife Society e a American Bird Conservancy (ABC).

A Austrália tem sido um dos países com maior polêmica a respeito do TNR, com polarização entre protetores dos animais domésticos contra a eutanásia, a caça e o envenenamento e os protetores da fauna nativa e conservação do meio ambiente 32. Uma publicação recente afirmou que o TNR não é uma solução ética para o manejo de gatos de rua, pois é menos efetivo que a adoção e a eutanásia, e não é ético, factível e nem efetivo para o manejo de gatos, além de apresentar impacto negativo na conservação de fauna nativa. Esse estudo considera mais efetiva a parada de oferta de alimentação, associada a políticas e leis de manejo de gatos, com redomicílio responsável ou eutanásia 32.

Na Nova Zelândia, o problema e a polêmica também são parecidos. Falta legislação federal relativa a gatos ferais não protegidos por leis de fauna selvagem, considerados como peste e passíveis de controle considerado antiético, como caça por arma de fogo e envenenamento 33. Além das leis de proibição de alimentação de gatos ferais e da redução de abandono, o estudo conclui que o país deve estabelecer políticas públicas para regrar pessoas que gostam de gatos mas não querem pagar o preço de gatos soltos não castrados, e ainda proteger mamíferos marinhos, fauna nativa, gatos e pessoas das diversas zoonoses, particularmente a toxoplasmose.

Nos Estados Unidos também há controvérsia a esse respeito. O TNR parece ser o caminho ético e efetivo de manejo populacional pelo grupo de pesquisas da profa. Julie Levy, da Universidade da Flórida, que questionou o modelo Ricker (2005) baseado em peixes para avaliar o TNR em gatos, propondo outro modelo que demonstra eficácia ao longo dos anos 34. O próprio papel do abrigo de animais (animal shelter) no manejo de gatos de rua deveria ser repensado, pois a captura e a eutanásia de milhões de gatos de rua sem planejamento exige a discussão do TNR, já que impacta a conservação de fauna nativa e a saúde pública. Esse estudo sugere que não há solução perfeita, mas potenciais vantagens, e que os abrigos de animais deveriam parar de investir recursos em ações ineficazes e eticamente problemáticas. Ela conclui que há três possibilidade de ação dos abrigos: a remoção de gatos das ruas para os abrigos, o recebimento dos gatos, a esterilização e soltura nos mesmos lugares – considerados como shelter-neuter-return (SNR), return-tofield (RTF), return-to-home (RTH) e community cat programs (CCP) – ou ainda manter os gatos onde estão e deixar outros órgãos atuarem 5. Nesse estudo há uma estimativa de 55 milhões de gatos de rua (não domiciliados) nos Estados Unidos, além de 26 milhões de gatos domiciliados com acesso à rua.

Uma vasta revisão de literatura publicada recentemente sobre o impacto de gatos domésticos na fauna selvagem mostrou que os gatos de vida livre têm impacto negativo substancial na fauna selvagem, incluindo predação, medo, doenças e competição, contribuindo para o declínio e a extinção de populações selvagens no mundo todo 6. Foram 332/2.245 artigos discutidos, e o trabalho incluiu contexto geográfico, métodos e tipos de impacto. A maioria dos estudos focalizou ilhas oceânicas, Austrália, Europa e América do Norte, áreas rurais, a predação e o impacto de gatos sem tutor, concluindo pela necessidade de estudos em regiões com sub-representação e alta biodiversidade, como África, Ásia e América do Sul.

A figura 9 apresenta uma comparação entre pontos positivos e negativos do método CED.

 

Pontos positivos Pontos negativos
Evitar a superpopulação em abrigos, uma vez que são animais de difícil adoção, devido ao comportamento e à falta de socialização. Privação da I e II liberdades, (nutricional e sanitária); incorrer em maus-tratos.
Impede que o animal fique preso em um abrigo onde não pode desenvolver seu comportamento natural. Interação negativa com a fauna nativa, devido a predação, aumentando o risco de extinção de espécies ameaçadas.
Diminui comportamento de migração após a esterilização, e assim os acidentes e brigas entre colônias. Contaminação do solo, água e alimento com fezes e urina dos animais, que podem ser fonte de transmissão de zoonoses.
Diminui taxa de infecção de doenças fúngicas e infectocontagiosas entre os animais. Poluição e distúrbio das áreas urbanas devido à procura de alimentos no lixo doméstico.
Figura 9 – Comparativo dos pontos positivos e negativos do protocolo de captura, esterilização e devolução (CED) de gatos ferais

 

Considerações finais

O método CED deve ser utilizado em situações de exceção, quando não houver possibilidade de adoção nem risco à saúde pública ou à preservação da fauna nativa. A colônia deve ser gerenciada, o que envolve o fornecimento de água e comida aos gatos já estabelecidos no local, de forma que não aumente a capacidade de suporte do ambiente e atraia novos animais para a colônia, além de cuidados de saúde, capturando e castrando os recém-chegados, e sempre marcando os animais esterilizados com corte na ponta de orelha e microchipagem, realizados por equipe capacitada e treinada (Figura 10). Os programas CED requerem, para sua eficácia, recursos suficientes para operar ao longo de muitos anos, altas taxas de esterilização e adoção, além de uma população fechada (nenhum novo gato não esterilizado na população). A medicina veterinária do coletivo estabelece sempre como prioridade a prevenção de formação das colônias de gatos ferais, com manejo reprodutivo e educação em guarda responsável de maneira contínua.

 

Figura 10 – Equipe de agentes carcerárias, residentes e pós-graduandos da UFPR que atuam em parceria na captura, esterilização e devolução (CED) de gatos ferais na Penitenciária Feminina do Paraná, em programa de manejo populacional. O local é isolado e não tem fauna nativa em risco de predação pelos gatos ferais, que têm água e alimento ofertados pela própria administração durante o programa. Créditos: Alexander W. Biondo

 

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20-RIO DE JANEIRO. Lei n° 6.943, de 4 de junho de 2021. Altera dispositivos da Lei n° 6.435, de 2018, e institui o protocolo C.E.D. – Captura, Esterilização e Devolução, para controle populacional de Animais Sem Tutor Reconhecido – ASTC, no âmbito do Município do Rio de Janeiro, na forma que menciona. Rio de Janeiro: Diário Oficial do Rio de Janeiro. ano XXXV, n. 66, p. 5, 2021.

21-ARARAQUARA. Lei complementar n°952, de 6 de outubro de 2021. Altera a Lei Complementar n° 827, de 10 de julho de 2012, estabelecendo regras para a retirada de animais de grande porte resgatados e criando o protocolo de captura, esterilização e devolução. Araraquara: Legislação Digital, 2021.

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