Introdução
Em cenários de desastres, os médicos-veterinários desempenham um papel fundamental, não apenas no cuidado dos animais, mas também na proteção da saúde pública, atuando no controle de doenças, nas operações de busca e resgate de animais, na identificação de locais seguros para alocar os animais resgatados e na coordenação com hospitais e abrigos locais 1.
Esses profissionais enfrentam desafios complexos, que envolvem desde o cuidado direto com os animais até a interação com seus tutores, frequentemente lidando com casos de negligência, maus-tratos, traumas e situações intensas de perda e luto. Essas condições podem resultar em elevados níveis de estresse emocional e impactos negativos significativos na saúde mental dos envolvidos.
Os médicos-veterinários que atuam em cenários de desastre costumam se dedicar excessivamente ao trabalho, muitas vezes em detrimento de seu descanso e bem-estar, o que os coloca em risco de exaustão. Além disso, a tomada de decisões críticas sobre quantos animais podem ser salvos e quantos permanecerão saudáveis pode gerar frustrações intensas 2.
De acordo com o Ministério da Integração Nacional (2007, 2010), desastres são situações que causam danos à vida humana, materiais e ambientais, gerando prejuízos econômicos e sociais, que podem ser definidos em termos de intensidade ou frequência 3. As dificuldades estruturais e a limitação de recursos frequentemente restringem as ações desses profissionais, que precisam lidar com uma realidade na qual os recursos econômicos, materiais e humanos para o enfrentamento de catástrofes são escassos 4.
Além das condições restritas, esses profissionais estão sujeitos ao luto vicário, que corresponde ao sofrimento vivido indiretamente ao presenciar a dor e a perda de outras pessoas e animais, mesmo sem manter uma relação de proximidade com eles 5,6.
O vínculo estabelecido durante as operações de resgate pode aumentar o engajamento, mas também pode provocar identificações e projeções com experiências pessoais do próprio médico-veterinário, afetando-o emocionalmente 6.
A rotina do médico-veterinário é caracterizada por múltiplos contextos de estresse, frequentemente associados à necessidade de múltiplos empregos 7. A atuação em resgates durante desastres é parte dessa gama de tarefas múltiplas. Nessas situações, os altos níveis de estresse emocional, somados às experiências traumáticas enfrentadas por médicos-veterinários e estudantes de veterinária em grupos de resgate animal, tornam esses indivíduos particularmente vulneráveis ao desenvolvimento de luto vicário, síndrome de burnout e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) 8.
O cuidado com a saúde mental desse profissional
A síndrome de burnout é uma condição crônica, caracterizada por exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal, sendo comumente associada a profissionais que trabalham em áreas de alta demanda e estresse 9. Por sua vez, o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é um distúrbio psiquiátrico que pode se desenvolver após a exposição a um evento traumático, seja emocional ou fisicamente ameaçador, ou que envolva risco de vida, caracterizado por sintomas como reexperiência do evento, evitação e hiperativação.
Esse diagnóstico deve ser considerado caso os sintomas significativos persistam por mais de um mês após o evento traumático 10. É essencial diferenciar esses sintomas dos apresentados no transtorno de estresse agudo (TEA), o qual se manifesta como recordações invasivas do trauma que ocorrem dentro de um período de até quatro semanas após testemunhar ou vivenciar um evento traumático 11.
Embora exista uma vasta literatura sobre bem-estar animal, ainda são escassas as pesquisas focadas na análise dos impactos psicológicos em estudantes e profissionais de medicina veterinária que atuam em grupos de resgate animal 12. Apesar de essas condições serem amplamente estudadas em várias áreas profissionais, a pesquisa específica sobre sua ocorrência e impacto em estudantes e profissionais de medicina veterinária envolvidos em resgates de animais é limitada 13.
Compreender os desafios psicológicos enfrentados por esses indivíduos é crucial, tanto para garantir o bem-estar desses profissionais quanto para assegurar a qualidade do cuidado prestado aos animais.
Efeitos na saúde mental
A exposição contínua a situações traumáticas e a processos de luto, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, pode ter um impacto duradouro na saúde mental dos profissionais de resgate. Estudos indicam que esses profissionais apresentam taxas mais elevadas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade em comparação com a população geral 14.
Além disso, a fadiga por compaixão – um estado de esgotamento físico e emocional resultante da constante exposição ao sofrimento – é comum entre esses trabalhadores. Esse estado pode levar à despersonalização e à perda de empatia, comprometendo a qualidade do atendimento prestado e afetando a vida pessoal dos profissionais.
Esses indivíduos estão sujeitos a uma intensa carga emocional, enfrentando situações que envolvem vida e morte, com o risco de se lesionarem ou de causarem lesões aos animais que tentam resgatar. A identidade profissional e pessoal muitas vezes se funde ou entra em conflito, o que pode provocar mudanças na atenção, na percepção sobre as pessoas, nos locais frequentados e na forma como vivenciam o mundo ao seu redor 14.
A importância do suporte e da intervenção
Reconhecer a importância da saúde mental dos profissionais de resgate é o primeiro passo para a implementação de medidas eficazes de suporte. Programas de suporte psicológico, incluindo sessões de aconselhamento e terapia, são essenciais para ajudar esses profissionais a lidar com o estresse e o trauma associados ao seu trabalho.
Além disso, a promoção de um ambiente de trabalho saudável, onde os profissionais se sintam valorizados e apoiados, pode fazer uma grande diferença. Isso inclui oferecer treinamentos regulares sobre gerenciamento de estresse, promover a conscientização sobre a saúde mental, realizar grupos de descompressão, e facilitar o acesso a recursos de suporte 15.
Estratégias de promoção da saúde mental
Existem várias estratégias que podem ser implementadas para promover a saúde mental dos profissionais de resgate.
Treinamento em saúde mental
Treinamentos regulares que abordem o reconhecimento e a gestão dos sintomas de estresse e trauma são essenciais. Esses programas podem incluir técnicas de mindfulness, estratégias de enfrentamento e habilidades de resiliência 16.
Apoio entre pares
Programas de apoio entre pares permitem que os profissionais compartilhem suas experiências e ofereçam suporte mútuo. Esse tipo de rede pode ser extremamente eficaz para aliviar a sensação de isolamento e promover um sentimento de camaradagem 17.
Acesso a serviços de saúde mental
Facilitar o acesso a serviços de saúde mental, como terapia e aconselhamento, é crucial. Isso pode incluir a disponibilização de serviços no local de trabalho ou a parceria com organizações de saúde mental 18.
Cultura organizacional de apoio
Promover uma cultura organizacional que valorize a saúde mental e o bem-estar dos profissionais é fundamental. Isso inclui a implementação de políticas que incentivem pausas regulares, horários de trabalho flexíveis e um ambiente de trabalho seguro e acolhedor 9.
Descompressão e autocuidado
Incentivar práticas de autocuidado, como atividades físicas, hobbies e técnicas de relaxamento, pode ajudar a reduzir o estresse. Além disso, sessões regulares de descompressão após incidentes traumáticos podem ser benéficas 20.
Exemplos de sucesso
Diversas organizações ao redor do mundo já implementaram programas de suporte à saúde mental para profissionais de resgate com sucesso. Por exemplo, o Serviço de Resgate de Queensland, na Austrália, oferece um programa de apoio entre pares e sessões de aconselhamento regulares para seus funcionários 21. Nos Estados Unidos, a Cruz Vermelha Americana proporciona acesso a serviços de saúde mental e promove treinamentos em resiliência para seus voluntários e funcionários.
Em Belo Horizonte, Minas Gerais, o Grupo de Resgate Animal de Belo Horizonte (GRABH) vem sendo acompanhado há um ano por atendimento psicológico oferecido pela dra. Bianca Gresele. Esse acompanhamento tem como objetivo preparar os profissionais para lidar com as demandas emocionais inerentes ao trabalho de resgate, assim como capacitá-los para a aplicação dos primeiros socorros psicológicos. Essa ferramenta busca oferecer apoio humano básico em situações de emergência e desastres (Figura 1).
O projeto de saúde mental é estruturado com foco na prevenção e posvenção. Os membros do grupo se reúnem e recebem suporte psicológico contínuo, e são organizados grupos de descompressão após o retorno de cada missão, visando a mitigação de impactos psicológicos adversos decorrentes das atividades de resgate (Figura 2).
A psicóloga também tem participado dos Simpósios Internacionais de Medicina Veterinária de Desastres, organizados pelo grupo (Figura 3). Durante o simpósio, abordam-se temas relacionados à psicologia das emergências e desastres, além do acompanhamento das atividades realizadas, oferecendo suporte aos participantes e destacando a importância do cuidado com a saúde emocional nesse contexto.
O papel dos líderes e gestores
Os líderes desempenham um papel crucial na promoção da saúde mental dos profissionais de resgate. Eles devem estar cientes dos sinais de estresse e esgotamento em sua equipe e tomar medidas proativas para oferecer suporte. Isso inclui a criação de um ambiente de trabalho onde os profissionais se sintam confortáveis para falar sobre suas dificuldades e buscar ajuda sem medo de estigmatização 23.
Considerações finais
A saúde mental dos profissionais de resgate é uma questão de importância crítica que não pode ser ignorada. Ao reconhecer os desafios únicos que esses profissionais enfrentam e implementar estratégias eficazes de suporte, podemos ajudar a garantir que tenham os recursos necessários para cuidar de si mesmos enquanto cuidam dos outros.
Investir na saúde mental desses profissionais não só melhora seu bem-estar, mas também a qualidade do serviço que prestam, beneficiando assim toda a comunidade. Ao promover um ambiente de trabalho saudável e de apoio, podemos garantir que os profissionais de resgate continuem a desempenhar seu papel vital com eficácia e compaixão.
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