Introdução
Acidentes envolvendo automóveis e animais geram prejuízos e problemas para a segurança pública, além de impactos negativos na biodiversidade. Em 2018, de acordo com dados estatísticos da Polícia Rodoviária Federal (PRF), foram registrados 856 acidentes com animais nas pistas, causando 75 óbitos humanos. Em 2017 foi bem pior, segundo dados do Anuário Estatístico de Segurança Rodoviária: 2.612 acidentes com 103 óbitos humanos em rodovias federais causados por animais nas pistas 1.
Embora as rodovias sejam consideradas importantes empreendimentos e estejam relacionadas ao desenvolvimento econômico do país, podem representar impactos sociais e ambientais adversos. As consequências negativas vão além do local onde a rodovia foi implantada, podendo causar danos a quilômetros de distância 2.
Os efeitos desastrosos ao meio ambiente são causados principalmente pela fragmentação de habitats e das populações que viviam no local antes da implantação da via, alterando substancialmente a função e a estrutura da paisagem original. Esses efeitos incluem alteração da estrutura química e física do meio ambiente por meio da remoção da cobertura vegetal, da erosão do solo, do desvio de rios, do aumento da emissão de gases poluentes e do aumento de ruídos sonoros 3,4.
Um estudo feito na região metropolitana de São Paulo mostrou que 13% dos óbitos de cães foram ocasionados por traumatismos 5, sendo o atropelamento por veículos a principal e mais prevalente causa de traumas e óbitos 6. O abandono de cães nas proximidades de rodovias agrava a situação, causando um número ainda maior de acidentes e atropelamentos.
Em 2010, segundo a reportagem do site G1, a concessionária responsável pelas rodovias Castello Branco e Raposo Tavares realizou ações educativas com o intuito de sensibilizar a população acerca da colisão de veículos e animais domésticos nesses locais. Devido ao grande número de sítios e pequenas propriedades rurais na extensão dessas rodovias, o tema da campanha de conscientização foi: “Pior do que ir para o brejo é ir para a pista”. O trabalho de sensibilização foi realizado de casa em casa, com distribuição de panfletos e conscientização sobre os perigos de equinos e bovinos irem para a pista 7.
Uma amostragem de notícias sobre acidentes com veículos envolvendo animais foi realizada utilizando a mídia online, por meio do buscador Google. Das notícias analisadas, 88/125 (70,4%) envolviam animais domésticos e 37/125 (29,6%) afetavam a fauna silvestre, com 135 animais de grande porte, como equinos e bovinos, envolvidos nos acidentes. Dentre os grandes animais acidentados, 53 (73%) vieram a óbito, e 97 (58%) vítimas humanas se feriram nesses acidentes 8 (Figura 1).
Responsabilidade civil
No âmbito jurídico, as situações que envolvem animais em acidentes de trânsito podem ser julgadas a partir de três diferentes abordagens. Estas são estruturadas basicamente pelo tipo de rodovia ou estrada e pelo animal envolvido no episódio, assim como por sua ligação com o proprietário. Desse modo, os acidentes de trânsito causados por animais agrupam-se em: a) por animais pertencentes a particulares; b) por animais sem proprietário; c) ocorridos em vias administradas por concessionárias de serviço público 9.
a) Acidentes de trânsito causados por animais pertencentes a particulares. Existem inúmeros processos em andamento no Brasil envolvendo incidentes entre automóveis e animais que têm proprietários. Nessas situações, entende-se legalmente que as consequências são de responsabilidade do tutor do animal, que deve zelar pela segurança dele, ou seja, exercer a guarda responsável. Assim, o responsável pelo animal deve ressarcir os prejuízos gerados pelo acidente, segundo o apresentado no artigo 936 do Código Civil.
b) Acidentes de trânsito causados por animais sem dono. Existem muitas especulações nas situações que envolvem animais abandonados. Questiona-se a responsabilidade objetiva do estado de arcar com os prejuízos gerados. No Brasil existem em aberto inúmeros processos de pessoas prejudicadas em acidentes, principalmente com grandes animais em rodovias federais ou estaduais, cujos custos com os reparos dos danos são altos, por conta do estrago causado no veículo ou até mesmo em acidentes fatais.
c) Acidentes ocorridos em vias administradas por concessionárias de serviço público. Manter as vias em condições seguras de trânsito, com adequada vigilância das pistas, é responsabilidade da concessionária. Dessa maneira, segundo o Código de Defesa do Consumidor, os danos gerados num acidente ocasionado por animal trafegando na via serão ressarcidos ao condutor. Também em alguns casos, o proprietário, quando identificado, deverá arcar com as despesas, assim como a empresa em questão.
Em áreas urbanas, o atropelamento de animais é uma das principais causas de morte, particularmente de cães e gatos, e o socorro imediato pode salvar vidas. Por essa razão, o Projeto de Lei nº 1.362 de 2019 10 pretende alterar a Lei nº 9.503 de 23 de setembro de 1997 que institui o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) 11. A nova medida visa proteger a saúde animal e promover a segurança das pessoas que transitam por essas vias. O PL pretende tornar obrigatória a prestação de socorro a animais atropelados ou a solicitação de auxílio da autoridade competente, sendo a última opção aplicada aos acidentes que envolvam animais silvestres, pois a participação de profissionais qualificados pode aumentar as chances de vida do animal; além disso, a prestação de socorro pelo condutor torna-se inviável, por ameaçar a própria segurança.
Apesar disso, ainda não existe no Brasil um sistema público ou particular amplo, com uma equipe veterinária especializada que resgate a fauna silvestre em casos de atropelamentos. Embora a responsabilidade do resgate seja dos órgãos fiscais como Ibama, Polícia Ambiental, institutos ambientais estaduais e secretarias municipais de Meio Ambiente, esses órgãos não possuem os recursos de primeiros socorros necessários. Na verdade, muitas vezes não dispõem de médicos-veterinários capacitados para o resgate e a estabilização do paciente antes e durante o transporte até um local especializado no atendimento veterinário de fauna silvestre. Essa falta de suporte médico-veterinário durante o resgate pode diminuir as chances de sobrevivência do animal acidentado, dependendo da situação clínica em que ele se encontre.
De acordo com a equipe veterinária do Serviço de Atendimento a Animais Selvagens (Saas) da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro/PR), muitos dos animais que chegam para serem atendidos no Saas são vítimas de traumatismos. Grande parte dos casos de trauma são ocasionados por colisões com automóveis, tanto em vias urbanas e rodovias como no perímetro rural, onde também ocorrem acidentes envolvendo maquinário agrícola.
Mamíferos como veados, roedores, primatas, felídeos, marsupiais, canídeos e aves de médio porte, como piciformes, psitaciformes e rapinantes, são as vítimas mais frequentes de acidentes automobilísticos com registro no Saas; também foram registrados alguns casos envolvendo cágados, lagartos e serpentes. A maioria dos animais que são atropelados por veículos em alta velocidade não resistem ao impacto e vão a óbito no local, ou fogem e morrem em seguida aos ferimentos, sendo os socorridos e registrados apenas uma pequena parcela do total de acidentados.
Os animais silvestres traumatizados, quando sofrem sequelas, são sacrificados ou destinados a viver em cativeiro por tempo indefinido. Muitos dos animais silvestres atropelados vão a óbito mesmo após o atendimento veterinário, pois, apesar dos esforços, dentre os sobreviventes são poucos os que conseguem se recuperar suficientemente para serem reintroduzidos à vida livre. Por conta disso, são necessários projetos mais amplos de monitoramento de fauna que visem o resgate e o recolhimento eficiente dos animais silvestres vítimas de acidentes automobilísticos. Além disso, também são necessárias medidas eficazes de informação e alerta para que os condutores tenham consciência de que dividem o ambiente com a fauna nativa das regiões próximas das rodovias. Finalmente, é preciso entender os prejuízos ambientais e materiais que podem ser causados pelo excesso de velocidade e pelo desrespeito à sinalização em áreas de circulação de fauna.
Perda de biodiversidade
Apesar da dificuldade de monitorar os casos de atropelamento da fauna nativa de maneira ampla na imensa malha rodoferroviária, o Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE) da Universidade Federal de Lavras/Ufla elaborou o sistema Urubu (Rede Social de Conservação da Biodiversidade – http://cbee.ufla.br/portal/sistema_urubu/), a maior rede com a finalidade de reunir, analisar e disponibilizar informações sobre mortalidade de fauna selvagem nas rodovias e ferrovias, auxiliando nas medidas de conservação da biodiversidade brasileira 12.
Nesse sistema, os usuários podem enviar informações sobre o animal atropelado por meio do aplicativo denominado Urubu Mobile (http://cbee.ufla.br/portal/sistema_urubu/urubu_mobile.php). O registro é enviado para o banco de dados, o animal é classificado por avaliadores conforme a sua taxonomia e por fim o registro final é validado pelo CBEE e disponibilizado para visualização no Urubu Map 12.
No portal da CBEE é possível visualizar uma estimativa em tempo real de quantos vertebrados terrestres silvestres foram atropelados e mortos durante o ano nas rodovias brasileiras (Figura 2). Estima-se que mais de 15 animais silvestres morram vítimas de atropelamento por segundo, ou seja, que mais de 1,3 milhões de animais morram diariamente, e aproximadamente 475 milhões de animais silvestres morram anualmente no território brasileiro. Cerca de 90% desse contingente são constituídos de pequenos vertebrados, como anfíbios, pequenas aves e répteis, seguidos de aproximadamente 9% de animais vertebrados de médio porte, e, por último e não menos importante, de cerca de 1% dos vertebrados de grande porte, muitos deles já ameaçados de extinção 12.
Além do aumento da mortalidade por colisão com veículos, as estradas proporcionam alterações químicas e físicas do meio ambiente, causando a fragmentação do habitat e, consequentemente, barreiras geográficas populacionais 13. Podem ser consideradas também como aceleradoras da degradação ambiental, devido ao povoamento humano e ao uso desordenado de recursos naturais 14.
Algumas estratégias podem ser utilizadas de maneira isolada ou aplicadas em conjunto com o objetivo de mitigar os impactos diretos provocado pelas rodovias, visando diminuir ou até mesmo evitar casos de atropelamento envolvendo a fauna silvestre. A finalidade está na conectividade entre áreas fragmentadas e em reduzir a mortalidade por colisão com veículos, devendo essas estratégias ser planejadas e embasadas em um diagnóstico ambiental adequado, levando em consideração a biodiversidade local e seu comportamento 15. Essas ações podem ser classificadas em intervenções estruturais, manejo de fauna e manejo de usuários (Figura 3).
Tipo | Características | Medidas mitigatórias |
Intervenções estruturais | São executadas obras de engenharia específicas para o uso da fauna ou podem se desenvolver adaptações nos padrões construtivos já existentes, a fim de proporcionar o deslocamento seguro da fauna. | Passagens inferiores Passagens inferiores grandes Passagens inferiores multiuso Túneis para anfíbios e répteis Ecodutos ou pontes de ecossitemas Passagens superiores Passagens superiores multiuso Passagens de estrato arbóreo Túneis rodoviários Viadutos e elevados Pontes e pontilhões Bueiros modificados Barreiras anti-ruído Ampliação do canteiro central |
Manejo dos usuários | São realizadas campanhas educativas com o objetivo de divulgar a informação para os usuários das vias por meio de panfletos e de sinalização e pela utilização de medidas restritivas, como redutores de velocidade. | Campanhas educativas Sinalização viária Limitação de velocidade Redução do volume de tráfego Interdição temporária Sistema de detecção de fauna |
Manejo biológico | São realizadas ações de manejo diretamente na fauna afetada. Objetivo: alertar os motoristas sobre a presença da fauna nas rodovias, assim como modular ou até mesmo alterar o comportamento da fauna por meio de dispositivos artificiais e/ou biológicos. | Alerta e afugentamento Balizas Alimentação Remoção de carcaças Modificação de habitat Cercas e barreiras Redução populacional |
Figura 3 – Diversas medidas mitigatórias podem ser utilizadas para reduzir os impactos diretos de rodovias sobre a fauna. Adaptado 15
Considerações finais
São notáveis os prejuízos gerados nos acidentes envolvendo colisões com animais, incluindo os ambientais, os econômicos e os inúmeros casos fatais para motoristas, passageiros e pedestres humanos. Os estudos em desenvolvimento são importantes para auxiliar na estruturação de estratégias que permitam a redução e a prevenção dos atropelamentos.
As estatísticas geradas pela PRF não mostram a espécie de animal que ocasionou o acidente, tampouco diferenciam se se trata de animal silvestre ou doméstico. O conhecimento desses dados facilitaria a elaboração de estratégias mitigatórias do problema. Torna-se fundamental a criação de políticas públicas de subsídio para melhorar a sinalização e a conservação das rodovias.
As campanhas de educação deveriam visar o impedimento do acesso de animais às vias sem supervisão, tanto no caso dos animais de produção quanto de qualquer outro animal doméstico.
Com relação à fauna silvestre, é preciso criar e estruturar medidas com agilidade. A elaboração de planos de ação deve envolver as concessionárias de rodovias e o próprio estado – tanto em âmbito federal como no estadual e municipal –, assim como pesquisadores, biólogos e médicos-veterinários, trabalhando a sensibilização de toda a população envolvida.
Referências
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