Os últimos anos foram marcados por avanços importantes em praticamente todos os campos da tecnologia. Os equipamentos usados no diagnóstico por imagem ficaram mais precisos e acessíveis, e os computadores ganharam poder de processamento e capacidade de armazenamento.
Os softwares evoluíram significativamente, não só no campo da gestão de clínicas veterinárias, mas também no processamento de imagens, na análise de dados e na comunicação com os clientes.
Esse contexto contribuiu para o desenvolvimento de uma das mais importantes inovações tecnológicas na área da medicina veterinária: a impressão tridimensional. Essa tecnologia tem sido aplicada principalmente nas áreas da ortopedia e da cirurgia, na educação, no treinamento, na pesquisa e no fornecimento de medicamentos; contudo, as perspectivas do seu uso na medicina veterinária são ainda muito mais amplas.
A impressão 3D é um tipo de processo de fabricação no qual materiais como plástico ou metal são depositados em camadas para criar um objeto 3D a partir de um modelo digital. Esse método de fabricação aditiva tem a vantagem de fabricar objetos com geometria complexa de forma livre, o que é impossível usando os métodos tradicionais de fabricação.
O processo é relativamente simples: imagens obtidas a partir de exames de tomografia computadorizada, ressonância magnética ou ultrassom 3D são processadas por softwares específicos e geram modelos tridimensionais no formato de arquivos digitais. Esses arquivos são então enviados para uma impressora 3D, que finaliza o processo fabricando de fato a peça em alguns minutos.
Órteses personalizadas
As órteses são aparelhos externos usados para imobilizar ou auxiliar os movimentos dos membros ou da coluna vertebral de animais. A cadeira de rodas de apoio pélvico é o exemplo mais comum na medicina veterinária. Como há uma variação muito grande de tamanho e tipo físico entre os animais que necessitam desse tipo de equipamento, os veterinários têm adotado soluções personalizadas, criadas sob medida para cada caso, usando impressão 3D.
A tendência de aumento da adoção dessa estratégia, aliada à popularização dos equipamentos e à evolução dos materiais, aponta para uma queda dos custos. Além disso, abre mais um leque de possibilidades de atuação do médico-veterinário, como um ramo da ortopedia ou da fisioterapia.
Planejamento cirúrgico
A tecnologia de impressão 3D tem sido usada para imprimir biomodelos em material plástico, usados pelo cirurgião para planejar previamente uma cirurgia de alta complexidade. As peças construídas a partir de imagens tomográficas permitem uma análise criteriosa e precisa dos processos ósseos e dos grupos musculares adjacentes à região de interesse.
Com essa análise em mãos, o cirurgião faz um planejamento cirúrgico prévio, avaliando diferentes técnicas cirúrgicas, selecionando o implante mais adequado e definindo sua posição. Assim, é possível reduzir o tempo de cirurgia e minimizar as complicações durante o período transoperatório.
Em recente artigo publicado no periódico Veterinary Surgery Journal 1, os autores descrevem a aplicação da impressão tridimensional (3D) em cirurgia oral e discutem os benefícios dessa modalidade no planejamento cirúrgico, no treinamento de estudantes e na educação do cliente. Os pesquisadores concluíram tratar-se de uma excelente ferramenta, mas indicam algumas limitações, como o tempo necessário para produzir o modelo 3D. Dependendo do caso, foram necessárias de 18 a 24 horas para concluir o processo de impressão. No Brasil, o alto custo dos insumos representa desafio ainda maior.
Implantes e próteses
Outro benefício da impressão 3D é a confecção de próteses e implantes feitos sob medida para cada situação, considerando as características e as dimensões do paciente. O médico-veterinário Rodrigo Rabello, mestre em ciências veterinárias nas áreas de anestesiologia e cirurgia em animais silvestres pela Universidade Federal de Uberlândia, foi um dos primeiros a usar a tecnologia em animais silvestres.
Rabello tornou-se conhecido após o caso da jabota Fred ter sido tema de uma reportagem exibida no Fantástico pela Rede Globo 2 em 2014. Fred teve uma perda completa do casco em decorrência de uma exposição a um incêndio. Após estabilizá-la clinicamente, Rabello estudou as possibilidades, discutiu o caso com colegas e definiu como objetivo fabricar um casco usando a impressão 3D. A partir desse primeiro caso com a jabota Fred, Rabello teve a oportunidade de aprimorar a técnica, aplicando-a em outros pacientes, como tucanos, papagaios e araras.
No final de 2018, a dra. Michelle Oblak, da Faculdade de Veterinária de Ontário, ganhou visibilidade mundial após divulgar detalhes da cirurgia realizada para a retirada de um osteossarcoma multilobular no crânio de um cão da raça dachshund 3. O tumor foi removido, e a área comprometida foi substituída por um implante de titânio.
Em junho de 2020, Oblak publicou um artigo na BMC Veterinary Research 4, com o objetivo de consolidar um fluxo de trabalho e definir um cronograma para a fabricação aditiva de implantes de titânio indicados na cirurgia craniana. Segundo a autora, trata-se do primeiro artigo científico sobre o fluxo de trabalho para a fabricação de aditivos metálicos para cranioplastia em medicina veterinária.
Bioimpressão 3D
O conceito de bioimpressão pode ser definido como a utilização de células e outros produtos biológicos na impressão por empilhamento para a montagem de tecidos e órgãos a partir da deposição de camadas auxiliada por computador.
A engenharia de tecidos é um campo emergente em que a ciência dos materiais e a biologia celular contribuem para tornar possível a implantação de tecidos biofabricados na medicina regenerativa. O objetivo final da bioimpressão é recapitular o processo natural de formação de tecido por células para montar arcabouços sintéticos que sejam capazes de imitar o microambiente natural do tecido.
Essa técnica vem sendo estudada com o objetivo de promover a regeneração tecidual, e diversos estudos estão sendo conduzidos com foco em tecidos como a cartilagem articular, os tendões e os tecidos muscular e ósseo. Trata-se de uma área de pesquisa relativamente nova e promissora, com grande expectativa de crescimento para os próximos anos.
Impressão de órgãos
Os avanços na área da bioimpressão têm motivado pesquisadores a explorar a possibilidade de imprimir órgãos vivos projetados. Um novo campo de pesquisa está se mostrando promissor: a engenharia de tecidos. Vários institutos de pesquisa ao redor do mundo já estão trabalhando nessa área, oferecendo esperança para preencher a lacuna entre a escassez de órgãos e as necessidades de transplante. No entanto, a construção de órgãos vascularizados tridimensionais (3D) continua sendo a principal barreira tecnológica a superar.
Em um recente artigo publicado no periódico Advanced Healthcare Materials 5, Guifang Gao, pesquisador sediado na Universidade de Tecnologia de Wuhan, juntamente com cientistas de universidades da Alemanha e dos Estados Unidos, apresentam uma visão geral das abordagens de bioimpressão, dos desafios e das tendências atuais para a fabricação de órgãos vivos.
A tecnologia continuará promovendo avanços significativos na área da saúde, retirando médicos-veterinários da zona de conforto, forçando-nos a refletir sobre essas desafiadoras possibilidades e suas implicações éticas.
Referências
01-WINER, J. N. ; VERSTRAETE, F. J. M. ; CISSELL, D. D. ; LUCERO, S. ; ATHANASIOU, K. A. ; ARZI, B. The application of 3-dimensional printing for preoperative planning in oral and maxillofacial surgery in dogs and cats. Veterinary Surgery, v. 46, n. 7, p. 942-951, 2017. doi: 10.1111/vsu.12683.
02-G1. Jabuti recebe prótese de casco feita em impressora 3D após incêndio. G1, 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/07/jabuti-recebe-protese-de-casco-feita-em-impressora-3d-apos-incendio.html>. Acesso em 12 de agosto de 2020.
03-UNIVERSITY OF GUELPH. 3-D printing research opens new possibilities for cancer surgeries, Ontario Veterinary College, 2018. Disponível em: <https://news.uoguelph.ca/2018/09/3d-printing-research-opens-new-possibilities-for-cancer-surgeries/#:~:text=When%20the%20Ontario%20Veterinary%20College%27s,new%20breakthrough%20in%20cancer%20research>. Acesso em 12 de agosto de 2020.
04-JAMES, J. ; OBLAK, M. L. ; ZUR LINDEN, A. R. ; JAMES, F. M. K. ; PHILLIPS, J. ; PARKES, M. Schedule feasibility and workflow for additive manufacturing of titanium plates for cranioplasty in canine skull tumors. BMC Veterinary Research, v. 16, n. 180, p. 1-8, 2020. doi: 10.1186/s12917-020-02343-1.
5-GAO, G. ; HUANG, Y. ; SCHILLING, A. F. HUBBELL, K. ; CUI, X. Organ bioprinting: are we there yet? Advanced Healthcare Materials, v. 7, n. 1, 2018. doi: 10.1002/adhm.201701018.