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Bem-estar animal

Coelhos domésticos: origens e domesticação

- parte 1

Matéria escrita por:

Isabelle Tancioni

22 de maio de 2021

Coelho europeu (Oryctolagus cuniculus) silvestre. Créditos: Edgar Rene Ruiz Lopez Coelho europeu (Oryctolagus cuniculus) silvestre. Créditos: Edgar Rene Ruiz Lopez

Os coelhos domésticos têm se tornado cada vez mais presentes no dia a dia das famílias brasileiras, e, para que os médicos-veterinários possam lhes dar a devida assistência, é importante que se conheça melhor seu comportamento e como esse padrão comportamental está associado ao dos seus ancestrais selvagens. Este artigo, é a primeira parte de um trabalho que tem como finalidade auxiliar os médicos-veterinários brasileiros a entender melhor a origem do coelho doméstico e as peculiaridades comportamentais desse animal.

 

A domesticação de coelhos

O coelho-europeu (Oryctolagus cuniculus), nativo da península Ibérica, é o único ancestral reconhecido dos coelhos domésticos 1,2. Um estudo sugere que o processo de domesticação dos coelhos se iniciou aproximadamente em 600 d.C. 3. Alguns autores propuseram que a domesticação teve início com os monges franceses e foi promovida pela suposta permissão do papa Gregório I aos cristãos para consumirem carne de coelho recém-nascido durante a Quaresma 4-6. No entanto, não há evidências da existência de nenhum documento em que conste essa permissão, e essa passagem histórica foi desmistificada em 2018 por um grupo de cientistas que associou esse fato a outro documento erroneamente traduzido 7. Nesse mesmo estudo, os pesquisadores avaliaram amostras de material genético provenientes de restos de animais em sítios arqueológicos e mostraram que a divisão entre os coelhos selvagens e domésticos ocorreu entre 12.200 e 17.700 anos atrás 7. Não obstante, como o processo de domesticação é contínuo e dinâmico, resultando em mudanças graduais nas relações entre os seres humanos e outras espécies de animais 8, é impossível afirmar que uma passagem da história tenha sido o marco da domesticação dos coelhos 7.

Charles Darwin afirmou que os coelhos domésticos compartilham com outras espécies de animais domesticados uma variedade de características comportamentais, fisiológicas e morfológicas que estão associadas ao aumento da docilidade e às alterações tanto na cor da pelagem como na morfologia da região craniofacial e das orelhas. Em 2018, alguns cientistas propuseram uma hipótese que explica que a docilidade das espécies domésticas decorre de uma deficiência de células embrionárias da crista neural que, por sua vez, originam células responsáveis pela pigmentação da pele, constituem partes da face e das cartilagens e também produzem adrenalina, elemento essencial para vencer a luta pela sobrevivência 9. Além disso, os cientistas mostraram que os coelhos domésticos têm uma redução acentuada no tamanho da amígdala e apresentam um aumento do córtex pré-frontal medial em comparação com os coelhos selvagens 10. Isso implica que a resposta de defesa ao medo foi atenuada nos coelhos domésticos, adaptando-os a uma vida em cativeiro e ao contato próximo com seres humanos, uma vez que eles têm menos necessidade de exibir os comportamentos de luta ou fuga que se manifestavam na presença de predadores 10.

As diferenças fenotípicas entre os ancestrais de coelhos selvagens e domésticos surgiram a partir do século XVIII 11. Somente em meados de 1800 surgiram coelhos de diferentes tamanhos e com variações no padrão de cores de pelagem, despertando o interesse em criar raças, várias das quais se desenvolveram a partir de 1900 6. As raças de coelhos exibem uma variedade de tamanhos, conformações corporais, tipos e cores de pelame e comprimento das orelhas, sendo que essa grande exuberância de variação morfológica é superior à diversidade fenotípica observada nos ancestrais selvagens 3. Quarenta e sete raças de coelhos são reconhecidas pela Associação Americana de Criadores de Coelhos (American Rabbit Breeders Association – Arba), aproximadamente 50 são reconhecidas no Reino Unido e 40 são encontradas no Brasil 6,12.

A importância de conhecer as vias e razões da domesticação dos animais auxilia a compreender o seu comportamento 5,13. Diferentemente dos coelhos, os cães foram domesticados em um processo comensal, resultando em uma coevolução paralela de seleção de certos genes de seres humanos e cães associados a processos neurológicos 14. Já os coelhos foram selecionados de acordo com certas características como peso e tipo de pelagem, porém as características comportamentais jamais foram essenciais nesse processo 5.

 

 

Coelhos europeus silvestres na entrada da toca. Créditos: Paul Maguire

 

Ancestralidade comportamental do coelho doméstico

A observação do comportamento é uma ferramenta fundamental utilizada em diversas áreas como etologia, bem-estar animal e farmacologia comportamental 15. O coelho doméstico compartilha características comportamentais de seu ancestral selvagem, o coelho-europeu (Oryctolagus cuniculus) 6. O livro intitulado The Private Life of the Rabbit (A vida privada do coelho), de Ronald Mathias Lockley, é um dos poucos que descrevem o comportamento do coelho-europeu selvagem 16.

Oryctolagus significa “lebre cavadora”, e cuniculus, “túnel subterrâneo” 4. O próprio nome “coelho”, em português, deriva da palavra latina cuniculus 4. Os coelhos-europeus selvagens escavam um sistema complexo de túneis com várias saídas e compartimentos; dessa forma, suas características anatômicas e comportamentais evoluíram para permitir que realizem essa tarefa, o que lhes possibilita esconder-se de predadores e proteger a si e aos seus filhotes de temperaturas extremas 4,6,16,17. Os coelhos selvagens e domésticos têm unhas longas e membros posteriores fortes, e usam os membros anteriores para soltar a terra, e os posteriores para chutarem esse material para trás 16,17. Eles permanecem quase todo o tempo vigilantes, já que os ataques de predadores podem surgir de diferentes lugares: no nível do solo, de cima, ou ainda virem do subsolo 6.

Os coelhos selvagens passam parte do tempo nesses túneis subterrâneos e só saem para se exercitar e pastar 6. Geralmente pastam em conjunto, enquanto um deles fica alerta, com o pescoço estendido e as orelhas eretas, para que os outros possam pastar em segurança 6. Eles vivem em grupos grandes de até 100 indivíduos, e cada colônia se organiza em pequenos grupos normalmente compostos por 2 a 8 membros 4,6,16. São animais sociais e gregários, que passam parte do tempo dormindo e comendo juntos, brincando e fazendo a limpeza do pelame (grooming, em inglês) de seus companheiros, porém necessitam de um tempo sozinhos em seus compartimentos nos sistemas de túneis 6. O sistema social é complexo e dispõe de uma escala hierárquica em que um macho está no topo e os outros membros ocupam diferentes posições 4,6. Os coelhos podem conviver pacificamente e desenvolver vínculos mais estreitos com certos companheiros, sendo que os animais que estão em posições mais altas escolhem os parceiros mais disputados 6. Os termos dominante e subordinado descrevem o relacionamento entre dois coelhos, e não o animal, já que um coelho pode ser dominante em um relacionamento com um coelho específico, porém pode ter um relacionamento de subordinação em relação a outro 5. Os coelhos selvagens são animais extremamente territorialistas e defendem sua área de coelhos invasores, geralmente perseguindo-os e raramente combatendo-os 6. Na presença de um predador, eles geralmente fogem e também alertam o resto do grupo batendo simultaneamente as duas patas traseiras no solo, um meio de comunicação conhecido como batida (thump, em inglês) 4,6. Passam boa parte do tempo dormindo em suas tocas e são animais crepusculares 6. No entanto, os coelhos domésticos podem exibir pequenas alterações de seu ciclo circadiano, quando comparados com os que estão naturalmente expostos à luz solar 6,18. Além de o comportamento desses animais ser afetado pela luz artificial, também é influenciado pelos sons da família e pela hora de refeição, e portanto podem ser mais flexíveis 6.

De modo geral, coelhos domésticos herdaram um padrão de resposta comportamental de seus ancestrais selvagens 4-6. Assim sendo, são animais sociais, que correm, saltam, cavam e geralmente fogem e se escondem quando se sentem ameaçados, são territorialistas e vivem em um grupo hierárquico 5,6. Todas essas características devem ser consideradas em estudos e análises do comportamento e do bem-estar de coelhos domésticos.

 

Família de coelhos europeus (Oryctolagus cuniculus) em habitat natural, enquanto um membro vigia os demais se alimentam. Créditos: John Navajo

 

Coelhos como membros da família

Os coelhos estão presentes em várias áreas e setores, diferentemente dos cães e gatos, que já têm status de animais de companhia no Ocidente 4,19. A maioria dos coelhos criados no mundo são destinados ao mercado de carne e pele, ao passo que uma parcela menor é destinada aos laboratórios, para servir como ferramentas de avaliação de testes para cosméticos e produção de anticorpos, além de outras funções associadas às pesquisas da área de biomedicina 4,20-22. Dessa forma, os coelhos podem ter um valor intrínseco quando criados como animais de estimação, um valor instrumental quando destinados aos setores de alimentos, cosméticos, vestimentas e pesquisa científica, e também podem não ter valor algum, quando são considerados pestes 23.

A popularidade dos coelhos domésticos como animais de companhia está aumentando, e há um número crescente de coelhos convivendo e formando vínculos estreitos com os seres humanos, promovendo o conceito de família multiespécie, assim como é observado com os cães e gatos 4. Houve uma drástica mudança em relação ao status dos coelhos nos últimos 25 anos 24,25. Esses animais se tornaram o terceiro mamífero mais comum como animal de companhia nos Estados Unidos e no Reino Unido (aproximadamente 6,2 milhões e 1 milhão de coelhos, respectivamente 26). Já no Brasil, o Instituto Pet Brasil contabilizou 2,3 milhões de répteis e pequenos mamíferos com base em dados levantados pelo IBGE em 2018 27. Apesar de não haver uma estimativa oficial do número de coelhos, pode-se avaliar que há um interesse considerável nessa espécie como animais de estimação, dado o aumento de produtos no mercado pet destinados a eles e o grande número de cunicultores pets localizados no Brasil 28,29. A Associação Científica Brasileira de Cunicultura (ACBC) estima que aproximadamente 468 mil coelhos convivem com seres humanos 29.

Embora estejam entre as espécies mais populares de animais de companhia, os coelhos são uma das mais mal compreendidas e menosprezadas 17. O lado negativo do aumento da sua popularidade como animais de estimação está associado ao aumento do número de coelhos abandonados. Eles são a terceira espécie de animais de estimação mais abandonada nos Estados Unidos, e estima-se que 67 mil coelhos são colocados em abrigos no Reino Unido por ano 26. As razões mais comuns pelas quais os tutores desistem da guarda de coelhos são: perda de interesse, falta de tempo, mudança de moradia e problemas comportamentais 26. Uma vez que eles são erroneamente considerados animais fáceis de manter e cuidar, há uma grande chance de frustração associada às expectativas de tutores de coelhos quando comparados aos tutores de cães e gatos 30. A taxa de coelhos deixados por tutores em abrigos dos Estados Unidos é superior à de gatos e cães, indicando a necessidade de os profissionais que trabalham no mercado pet informarem melhor os potenciais tutores de coelhos sobre as reais necessidades desses animais 30. Muitos tutores de coelhos descrevem seus animais como monótonos, tímidos e agressivos 6,26. Isso é resultado da falta de oportunidades para que eles expressem seus comportamentos normais, da falha em prover um ambiente que supra suas necessidades e também da carência de conhecimento sobre o comportamento da espécie 5.

Quando os coelhos são criados de forma adequada, são amigáveis, sociáveis e brincalhões, o que resulta no estreitamento entre eles e os seres humanos e na diminuição da probabilidade de desistência da guarda e abandono desses animais 17,31. Portanto, auxiliar os tutores de coelhos a compreender o comportamento de seus animais, assim como prevenir e tratar problemas comportamentais, é muito importante na prática da medicina veterinária 17. Além disso, muitos dos trabalhos referentes ao comportamento de coelhos são baseados em animais mantidos em laboratórios; nessas circunstâncias, eles são alojados em gaiolas pequenas, que os impedem de exibir seus comportamentos normais 4.

Em relação à promoção de mudanças resultantes da disseminação de informações sobre os cuidados gerais e a complexidade comportamental dos coelhos, é imprescindível destacar a atuação de profissionais de diversas áreas envolvidos em duas organizações: House Rabbit Society (HRS – Sociedade do Coelho Domiciliado) e Rabbit Welfare Association & Fund (RWAF – Associação e Fundação do Bem-Estar do Coelho) 6. A organização House Rabbit Society (https://rabbit.org), com sede no norte da Califórnia (EUA), fundada em 1988, é responsável por grande parte da divulgação de conhecimento sobre o comportamento de coelhos domésticos e é renomada na defesa, no abrigo e na proteção desses animais 24. A Rabbit Welfare Association & Fund (https://rabbitwelfare.co.uk), com sede no Reino Unido, é responsável pela divulgação de estudos sobre o comportamento, o bem-estar e a saúde dos coelhos 6.

 

Gato e coelho em interação harmoniosa. Créditos: Sharomka

 

Profissionais dedicados aos coelhos

Os médicos-veterinários entram em contato com os coelhos durante a faculdade na área relativa à produção animal – mais especificamente, na disciplina de cunicultura 32. A área de produção animal associa os animais como um produto; esse conceito é conflitante e resulta em um grande paradoxo em relação à área de medicina que visa o tratamento, os cuidados e a cura dos animais 33.

Os profissionais de medicina veterinária comumente ganham experiência em coelhos quando optam por estagiar ou trabalhar em clínicas de animais exóticos 34. Alguns deles acreditam que a persistente designação dos coelhos como animais exóticos constitui um grande obstáculo para que esses animais alcancem o mesmo status dos cães e gatos 35. Apesar de ser fácil adquiri-los como animais de companhia, eles sofrem com a crise de superpopulação e abandono 26,36. Os tutores de coelhos normalmente têm dificuldade de encontrar veterinários que ofereçam a mesma qualidade de atendimento e serviços que estão disponíveis para cães e gatos 37. Por isso, seria importante incluí-los no currículo básico das faculdades de medicina veterinária e assim aumentar as chances de serem tratados de modo similar aos cães e gatos 35,38. A ideia de criar uma área dedicada à medicina de coelhos é recente, e é possível encontrar livros direcionados exclusivamente ao tratamento veterinário dessa espécie 39-42. A médica-veterinária Frances Harcourt-Brown, autora do livro Textbook of Rabbit Medicine (O livro de medicina de coelhos) 39, foi a primeira a ser reconhecida com o título de especialista em medicina e cirurgia de coelhos pela Royal College of Veterinary Surgeons (Faculdade Real de Cirurgiões-veterinários) 34.

A House Rabbit Society foi a promotora da primeira conferência sobre medicina de coelhos, em 1997 24. Desde então ocorreram outras conferências sobre essa especialidade 43,44. Visto que eles são os animais mais abandonados em abrigos, os tópicos referentes às áreas de medicina, cirurgia, comportamento e bem-estar de coelhos também são abordados na grande área conhecida como medicina de abrigos 36,45,46. É importante destacar que a figura de um coelho está incluída no símbolo da Association of Shelter Veterinarians (Associação de Veterinários de Abrigos – ASV – https://www.sheltervet.org/), juntamente com a de um cão e um gato, indicando que os coelhos merecem os mesmos cuidados que esses animais.

 

Considerações finais

Os coelhos são animais amigáveis, sociáveis e podem ser companheiros fantásticos para a família multiespécie. São animais complexos, assim como outros. É importante que o médico-veterinário conheça a origem dos coelhos domésticos e a herança comportamental associada aos seus ancestrais selvagens. Além disso, é fundamental estabelecer uma área da medicina veterinária dedicada aos coelhos domésticos, que ofereça uma assistência especializada a esses animais.

 

Agradecimentos

Agradeço a Carine Diaz, pela revisão deste artigo, e ao médico-veterinário Renato Silvano Pulz, pela revisão técnica.

 

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