Maus-tratos
Uma análise do conhecimento da população sobre a identificação de casos e legislação
Melhorar a compreensão a respeito de maus-tratos e de como a população de maneira geral lida com essas situações é fundamental para que se possam criar e implementar políticas públicas. As leis relacionadas com o assunto não são devidamente conhecidas pela população geral, e diversas vezes a ignorância é usada como justificativa de ações de maus-tratos. É necessário mudar os fundamentos sociais para evitar a ocorrência desses casos, e a melhor forma de fazer isso é diminuir a ignorância e educar o povo brasileiro, para que as próximas gerações saibam como lutar pelos direitos dos animais e denunciar esses crimes. Muitas pessoas sentem que são capazes de identificar um caso de maus-tratos e que é dever da sociedade denunciá-lo, mas mesmo assim a maioria dos casos não chega às autoridades responsáveis. O objetivo deste trabalho foi determinar o conhecimento da população sobre o tema e as formas de denúncia.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2013, 44,3% dos domicílios do país (28,9 milhões) tinham pelo menos um cachorro e 17,7% dos domicílios do país (11,5 milhões) tinham ao menos um gato 1. Os registros de denúncias de maus-tratos a cães e gatos aumentaram 81,5% em São Paulo no primeiro semestre de 2020, em comparação com o mesmo período de 2019 2. A população costumeiramente se mostra revoltada perante uma situação de crime contra um animal; diante de tal circunstância, muitas vezes se manifesta a intenção de fazer justiça com as próprias mãos, até pelo desconhecimento a respeito das leis e dos meios de denúncia.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a violência é definida como o uso intencional de força ou poder, por meio de ameaça ou literalmente contra a própria pessoa, outra pessoa, um grupo ou uma comunidade, que resulta, ou tem altas chances de resultar em prejuízo do desenvolvimento, dano psicológico, privação ou morte 3. A definição da OMS associa a intenção de cometer o ato, independentemente do resultado obtido.
Atualmente, o acesso à informação pode ser obtido por celular; entretanto, em momentos críticos esse meio pode deixar de ser fácil e instrutivo, sendo importante o entendimento das leis e dos meios de denúncia. No Brasil, a denúncia contra casos de abuso animal é ressalvada pelo Artigo 32 da Lei nº 9.605/98 4 e pela Constituição de 1988 5.
Foi feita uma pesquisa com 174 pessoas para compreender o nível de conhecimento que tinham sobre a legislação e as formas de queixa, tendo enfoque na Lei no 9.605/98 (instituída para que aqueles que lesem a fauna e a flora sejam punidos com sanções penais e administrativas derivadas de sua conduta) e nos seus meios de denúncia, a seguir:
– Polícia Militar:190;
– Disque Denúncia:181;
– Ibama (no caso de animais silvestres) – Linha Verde: 0800 61 8080; www.ibama.gov.br/denuncias;
– Ministério Público Federal: http://www.mpf.mp.br/servicos/sac;
– Safer Net (crimes de crueldade ou apologia aos maus-tratos na internet): https://www.safernet.org.br.
A pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2021, com o objetivo de estimar o conhecimento da população sobre a legislação brasileira contra maus-tratos e abuso animal. Para isso foi empregado um formulário na plataforma Google Forms, com foco na população geral. O questionário contou com nove perguntas que pesquisavam os conhecimentos sobre a Lei nº 9.605/98, entre as quais: se haviam presenciado casos de maus-tratos; se esse caso foi denunciado para as autoridades responsáveis; assim como se eles se sentiam capazes de identificar um caso de maus-tratos, de quem seria a responsabilidade de denunciar esses casos; e se conheciam os meios de denúncia para casos de agressão e maus-tratos a animais.
Para a realização do estudo foram averiguados 174 questionários. Os questionários foram respondidos por pessoas de diferentes faixas etárias: abaixo de 20 anos (13,8%); de 20 a 30 anos (26,4%); de 31 a 40 anos (13,2%); de 41 a 50 anos (24,7%); de 51 a 60 anos (19%); acima de 60 anos (2,9%). Com relação ao grau de escolaridade, os participantes se dividiram nas categorias: ensino médio incompleto (8,6%); ensino médio completo (9,8%); ensino superior incompleto (24,7%); ensino superior completo (30,5%); pós-graduação (24,1%); mestrado (1,7%); doutorado (0,6%). Quanto ao gênero, os participantes representaram: feminino (54,6%) e masculino (45,4%). Quanto às regiões, as respostas se dividiram em: Região Sudeste (90,2%), Região Centro-Oeste (5,2%), Região Nordeste (2,9%), Região Sul (1,1%) e Região Norte (0,6%).
Em relação ao conhecimento da população a respeito da Lei nº 9.605/98, 62,1% responderam que não a conheciam, enquanto 37,9% responderam que estavam familiarizados com ela (Figura 1).
Os cidadãos que conheciam a lei foram questionados sobre a obtenção desse conhecimento: 1,3% disseram ter obtido essa informação em palestras e congressos; 10,5%, na graduação; 51,3%, na internet ou em redes sociais; 11,8%, em livros, revistas ou artigos; e 25% não se recordavam de onde obtiveram esse conhecimento.
Quanto a já terem presenciado alguma ocorrência de maus-tratos, 38,5% já tinham presenciado um caso, e 61,5% negaram tê-lo feito. Para a parcela dos entrevistados que afirmaram ter presenciado uma ocorrência de maus-tratos foi feita uma pergunta sobre a denúncia de tal caso; 25,5% dos respondentes disseram ter feito a denúncia, ao passo que 74,5% negaram ter denunciado.
Quanto a se sentirem capazes de identificar um caso de maus-tratos, 96,6% afirmaram ter essa capacidade, e 3,4% negaram. Para a pergunta sobre de quem é a responsabilidade de identificar um caso de crueldade animal, 93,7% disseram ser responsabilidade da sociedade, e 6,3% manifestaram que a responsabilidade é dos médicos-veterinários. Quando questionados se a responsabilidade deveria ser apenas do médico-veterinário, 98,9% apontaram que não; no entanto, 1,1% reiteraram que a responsabilidade é apenas dos médicos-veterinários.
Em relação a se conheciam os meios de denúncia para agressões contra animais, 44,8% afirmaram conhecer, enquanto 55,2% negaram ter esse conhecimento (Figura 2).
Notou-se que a grande maioria dos entrevistados desconhecia a Lei nº 9.605/98, incluindo aqueles com alto grau de escolaridade, uma vez que não sabiam o que deve ser feito ao presenciar maus-tratos. A divulgação insuficiente e o consequente desconhecimento dessa lei acaba por impedir que as pessoas denunciem casos de maus-tratos, visto que nela consta a definição desse crime, além dos tipos de pena que o infrator pode sofrer e como denunciar 4.
Apesar de mais de 96% dos entrevistados relatar que se sente capaz de identificar uma situação de crueldade, boa parte não conhece os meios de denúncia. Isso, atrelado ao número de pessoas que presenciaram casos mas não os denunciaram, chama a atenção para a necessidade de divulgar essa lei.
O desconhecimento da população do real significado de maus-tratos também precisa ser destacado. Muitos acreditam que se resume apenas a bater em um animal ou machucá-lo fisicamente. No entanto, a caracterização de maus-tratos inclui o abandono, a prisão em espaço incompatível ao porte do animal ou em local sem iluminação e ventilação, e o manejo em locais sem higiene e limpeza adequados 6. Não apenas animais domésticos sofrem abuso, mas também animais silvestres e exóticos – que muitas vezes são contrabandeados –, além dos animais de produção. Como muitos desconhecem esses fatos, identificar essas situações com clareza e denunciá-las acaba sendo muito difícil.
O nível de educação que mais conhece a legislação é o de pessoas com ensino superior completo (36,5%), entre 20 e 30 anos (33,5%) e que se identificam como do gênero feminino (56,1%). O interesse na lei pelos jovens pode estar relacionado ao crescimento do ativismo em defesa dos animais 7.
A maior parte dos entrevistados (62,1%) não se julgava familiarizada com a lei; entretanto, uma grande parcela (96,6%) se sentia capaz de identificar ocorrências de maus-tratos. Entre aqueles que afirmaram ter presenciado um caso de abuso animal (38,5%), apenas a minoria (25,5%) o denunciou às autoridades apropriadas. A baixa taxa de casos denunciados é semelhante à dos dados encontrados em 2019 2.
O conceito de maus-tratos abrange muito mais do que é de conhecimento geral, e isso reforça a necessidade de maior divulgação da Lei nº 9.605/98. A internet pode permitir uma divulgação melhor, uma vez que hoje é a maior fonte de informação do mundo, além de uma forma mais rápida e fácil. Ela foi a principal fonte dos 51,3% dos indivíduos que tinham conhecimento dessa lei. A utilização da internet pode permitir que se conscientizem mais pessoas a respeito dos maus-tratos, de como identificá-los e denunciá-los, além de contribuir para sua diminuição, garantindo maior proteção e bem-estar animal.
A denúncia de casos de maus-tratos é essencial. A pesquisa demonstrou que a maioria das ocorrências presenciadas pela população brasileira não é denunciada às autoridades, o que impede que os criminosos sejam processados e punidos como dita a lei. Sugere-se a educação também dos servidores públicos, para que, junto com a sociedade, se obtenha um trabalho mais eficaz na luta contra maus-tratos, abusos e agressões.
O conhecimento da Lei nº 9.605/98 entre os residentes e profissionais da área de medicina veterinária no Brasil é importante, em especial para aqueles que militam nas áreas de pequenos animais e medicina do coletivo, nas quais esses profissionais se deparam com uma frequência maior de casos de maus-tratos.
Referências
1-IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Brasileiro de 2010. IBGE, 2013. Disponível em: <https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?id=1&idnoticia=2902&view=noticia> Acesso em 26 de maio de 2021.
2-MAUS-TRATOS contra animais são frequentes, mas poucos denunciam. Pesquisa do Ibope feita com internautas revelou que a maioria já presenciou maus-tratos contra animais, mas só 17% denunciaram a prática. R7, São Paulo, 6 nov. 2019. Disponível em: <https://noticias.r7.com/sao-paulo/maus-tratos-contra-animais-sao-frequentes-mas-poucos-denunciam-06112019#/foto/1>. Acesso em 28 de maio de 2021.
3-KRUG, E. G. ; DAHLBERG, L. L. ; MERCY, J. A. ; ZWI, A. B. ; LOZANO, R. World report on violence and health (Geneva: World Health Organization, 2002). Disponível em: <https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/full_en.pdf>. Acesso em 26 de maio de 2021.
4-BRASIL. Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm>. Acesso em 11 de maio de 2021.
5-BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 10 de maio de 2021.
6-Frequently Asked Questions About Reporting Animal Cruelty. Animal Welfare Institute, 2020. Disponível em: < https://awionline.org/content/frequently-asked-questions-about-reporting-animal-cruelty>. Acesso em 4 de junho de 2021.
7-OSTOS, N. S. C. A luta em defesa dos animais no Brasil: uma perspectiva histórica. São Paulo, Ciência e Cultura, 2017, v. 69, n. 2. Disponível em: <http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252017000200018>. Acesso em 28 de maio de 2021.