Introdução
Keith Thomas, no capítulo “O predomínio humano” do livro O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800) 1, discorre longamente – e com muita propriedade – sobre as justificativas e as razões que o ser humano vem apresentando, ao longo do tempo, para subordinar os animais não humanos aos seus desejos e necessidades.
De maneira geral, os animais têm sido tratados de forma violenta e objetificada 2 como instrumentos da vontade arbitrária dos seres humanos.
No entanto, já se sente uma mudança de perspectiva tendo por base o que as pesquisas científicas descobriram sobre os animais: até o presente momento, todos os vertebrados e alguns invertebrados (como polvos, abelhas e crustáceos) são tidos como seres vivos dotados de consciência, com capacidade de ter sensações e sentimentos subjetivos 3,4, complexos, positivos e negativos.
Nesse sentido, vários neurocientistas, em 2012, assinaram a “Declaração de Cambridge” 5 atestando a existência de consciência em animais não humanos:
Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência, juntamente com a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os seres humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos 5.
Todo esse conhecimento científico sobre a consciência (e a senciência) animal contribuiu para que novas leis passassem a considerar os animais de forma diferenciada, como é o caso da Constituição Federal de 1988 6, que expressamente proíbe as práticas cruéis contra os animais (Art. 225, § 1º, VII).
No Brasil, foi a partir dessa Constituição que surgiu uma nova disciplina jurídica chamada direito animal, composta por regras e princípios que atribuem direitos a animais, considerando-os como um fim em si mesmos, independentemente de sua função ecológica, econômica ou científica 7.
Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é apresentar a mais recente inovação normativa do direito animal: o Decreto no. 11.349 8, de 1° de janeiro de 2023, que “aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e remaneja cargos em comissão e funções de confiança”, pelo qual foram criados a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais e o Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais.
O que justifica o presente artigo é a nota histórica de termos, pela primeira vez, órgãos públicos federais com competências específicas para a promoção dos direitos animais.
Desenvolvimento
Com a introdução de um novo ano e de um novo governo, o direito animal foi objeto de inovação, no plano administrativo, com a entrada em vigor do Decreto no. 11.349 8, de 1° de janeiro de 2023, que aprovou “a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e remaneja cargos em comissão e funções de confiança”.
A inovação é percebida pelas competências da nova Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais e do respectivo Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais.
Pela primeira vez, um ato normativo federal afirma, explicitamente, a existência de direitos animais e, além disso, cria as estruturas administrativas voltadas à implementação efetiva, prática e concreta desses direitos 9.
Dentre as competências atribuídas à Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais está a proposição de políticas e normas e a definição de estratégias (a considerar os biomas brasileiros) atinentes à promoção da proteção, defesa, bem-estar e direitos animais (Art. 18, §I, inciso g).
O Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais – vinculado à referida secretaria –, por sua vez, tem uma detalhada competência administrativa para a promoção dos direitos animais.
Veja-se o Art. 20 do Decreto, in verbis:
Art. 20. Ao Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais compete:
I – elaborar, propor, acompanhar, analisar e avaliar políticas, elaborar e implementar programas e projetos destinados à proteção, à defesa, ao bem-estar e aos direitos animais;
II – articular com órgãos e entidades do Poder Público federal, com a sociedade civil e promover a interlocução com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nos temas de sua competência;
III – coordenar a interlocução do Poder Público federal com as organizações internacionais e com as organizações da sociedade civil que atuem nos temas de sua competência;
IV – coordenar a definição de diretrizes e acompanhar o desenvolvimento, no âmbito do Poder Público federal, das iniciativas relacionadas à proteção da fauna e das ações executadas por órgãos e entidades envolvidos na proteção e defesa e na promoção dos direitos animais;
V – subsidiar tecnicamente a negociação e a implementação de compromissos e de acordos internacionais dos quais o País seja signatário em temas da proteção, da defesa e do bem-estar animal;
VI – identificar e apoiar a disseminação de boas práticas em temas de defesa da fauna doméstica, domesticada e selvagem e de garantia dos direitos animais;
VII – apoiar o planejamento, a organização e o acompanhamento da agenda ministerial, no âmbito de suas competências;
VIII – assistir tecnicamente os órgãos colegiados na sua área de atuação;
IX – apoiar a mobilização das entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de políticas de proteção, defesa e direitos animais;
X – apoiar e subsidiar a criação de medidas protetivas da fauna doméstica, domesticada, selvagem e silvestre em situações de desastres naturais e grandes calamidades, com vistas ao resgate e à adequada alocação dos animais em situação de perigo e vulnerabilidade;
XI – promover a cultura de proteção, defesa e direitos animais;
XII – promover a educação e a prevenção para proteção e defesa de animais domésticos e domesticados e para a preservação da fauna nativa;
XIII – estabelecer medidas preventivas de defesa, proteção, bem-estar e direitos animais;
XIV – estimular a capacitação de recursos humanos para as ações de proteção, defesa, bem-estar e direitos animais;
XV – apoiar ações necessárias à prevenção e ao controle de espécies exóticas invasoras que colocam em risco a conservação da biodiversidade nativa;
XVI – apoiar órgãos públicos competentes na elaboração e implementação de políticas, programas ou projetos para promover o controle populacional ético de cães e gatos; e
XVII – propor normas relativas a:
a) bem-estar, proteção, defesa e direitos animais; e
b) implementação nacional dos acordos internacionais relativos aos assuntos de bem-estar, proteção e direitos animais.
Pela leitura do artigo transcrito, nota-se que a proteção, a defesa e a implementação dos direitos animais se darão por inúmeras iniciativas ligadas a políticas públicas de competência concorrente e cooperada entre os entes federativos, tendo sido elencadas três funções principais dos dois novos órgãos federais: normativa, executiva e social-educativa 9.
A função normativa aponta os referidos órgãos como as principais fontes de articulação para a elaboração de normas de direito animal em âmbito nacional e até mesmo internacional, competindo-lhes a revisão das normas legais e infralegais sobre o tema, que deverão estar em consonância com os princípios de direito animal e com a regra constitucional da proibição da crueldade contra animais.
Essas normas de direito animal incluem tanto as infralegais e administrativas (muitas de competência dos próprios órgãos citados) como também as legais, em todos os planos federativos, para as quais os novos órgãos se apresentam como fontes de proposição qualificada, podendo-se cogitar, inclusive, a proposta de um Estatuto dos Animais, com o intuito de uniformizar o regime jurídico dos direitos animais em todo o território nacional 9.
Já a revisão supracitada abarcará não apenas normas do próprio Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima como também as oriundas de outros órgãos federais – como o Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento.
A função executiva diz respeito à efetivação, à realização e à fiscalização das normas de direito animal, devendo haver a implementação de programas, projetos e medidas executivas para os fins propostos, podendo esses ser delegados aos órgãos com propósitos semelhantes dos demais entes federativos.
Certamente é o desempenho da função executiva o mais esperado, porque é dela que decorrerá a efetiva promoção dos direitos animais, com o aumento da sua qualidade de vida e respeito à sua peculiar condição de seres vivos dotados de consciência.
Por fim, a função social e educativa é imprescindível para que um dia se possa ter um efetivo respeito coletivo pelos direitos animais e é nitidamente prevista nos dispositivos que preveem “identificar e apoiar a disseminação de boas práticas em temas de defesa da fauna doméstica, domesticada e selvagem e de garantia dos direitos animais” (Art. 20, VI), “promover a cultura de proteção, defesa e direitos animais” (Art. 20, XI), “promover a educação e a prevenção para proteção e defesa de animais domésticos e domesticados e para a preservação da fauna nativa” (Art. 20, XII) e “estimular a capacitação de recursos humanos para as ações de proteção, defesa, bem-estar e direitos animais” (Art. 20, XIV), a título exemplificativo.
Discussão
Pode-se afirmar que atualmente, no âmbito do novo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, reconhece-se a existência de direitos animais autônomos e aparelha-se, institucionalmente, para garanti-los por meio da elaboração e da revisão de normas e projetos de lei existentes acerca do tema, bem como por meio da fiscalização da efetivação desses preceitos, que poderão ser delegados a outros órgãos além da própria secretaria e do departamento objetos da análise deste artigo.
O que se deve acompanhar agora é a nomeação das pessoas que ocuparão efetivamente esses novos órgãos federais, que deverão ostentar um perfil vocacionado para a promoção dos direitos animais.
Nesse sentido, a colocação do prof. Bernard Rollin – filósofo norte-americano dedicado à discussão da ética na medicina veterinária – pode ser perfeita em relação ao momento vivido no Brasil:
A maioria dos veterinários agora percebe que a sociedade está em processo de mudar sua visão em relação aos animais e a nossas obrigações para com os eles. Os veterinários de animais de laboratório provavelmente viram a evidência mais claramente articulada de tal mudança ética, mas também é patente para quaisquer profissionais de animais de companhia, de animais de fazenda usados para alimentação ou veterinários de zoológicos que se dão ao trabalho de refletir sobre as novas expectativas que moldam e restringem a maneira como fazem seu trabalho 10.
Neste momento, como subproduto da reflexão ética (o valor que damos ao animal), observam-se mudanças legislativas, com as do Decreto no. 11.349/2023, estruturadas para a defesa dos direitos animais. Pergunta-se: os médicos-veterinários estão preparados para isso?
O Manual de responsabilidade técnica e legislação do CRMV-SP, por exemplo, no Capítulo 3 (denominado “Bem-estar animal”), ressalta:
As pesquisas nesse campo avançam constantemente, e a listagem de espécies consideradas sencientes cresce com rapidez. Evidências científicas indicam que a capacidade de sofrer, como um dos parâmetros da senciência, é própria até mesmo de alguns animais invertebrados. Por isso, a cada dia, a responsabilidade ética e moral das pessoas para com os animais por elas mantidos ou comercialmente explorados ganha dimensões mais amplas. Elas devem ser conhecidas e implementadas por todos os profissionais atuantes nessas áreas, principalmente pelos RTs, médicos-veterinários e zootecnistas 11 (grifo nosso).
Parece evidente que os profissionais da saúde animal têm que conhecer a natureza constitutiva e as capacidades dos animais 12 e ser sensíveis a isso. Como a profissão veterinária atende tanto a animais quanto a pessoas, ela ocupa uma posição única nas discussões atuais sobre bem-estar animal e direitos dos animais 13. A questão não é só técnica, mas também ética e jurídica.
Considerações finais
A toda a evidência, a medicina veterinária deverá ter representantes na nova Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais e no respectivo Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais, que, também de forma evidente, precisarão ter um compromisso declarado com a perspectiva dos animais como sujeitos de direitos fundamentais e não como coisas, objetos ou patrimônio alheio.
Assim, é o momento de os médicos-veterinários e a sociedade civil em geral cobrarem as autoridades responsáveis pela efetivação da proteção animal, estruturada agora pelo Decreto no. 11.349/2023, a fim de que se promovam os programas, projetos e medidas executivas necessários para a efetivação dos direitos animais.
Referências
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